Um grito lhe provocou sobressalto. Olhou para trás. Dois homens discutiam perto de um bar de esquina. Não era com ele. Voltou a olhar para frente enquanto caminhava. O dinheiro emprestado ainda estava no bolso; a trouxa, ainda no ombro. Não tinha para onde ir, não sabia se queria ir a algum lugar. Por isso, apenas continuou andando. Pretendia parar em breve, mas ainda não.
Aquela era a área mais decadente da Zona Baixa. Do outro lado da calçada, um enorme viaduto era sustentado por arcos e colunas, que um dia deviam ter atraído turistas, mas que haviam se transformado há muito tempo no covil de mendigos e drogados. Demitre não observava as paredes pichadas com assinaturas tortas, palavrões e desenhos fálicos. Tampouco se importava com os esmoleiros descabelados, com uma crosta negra de sujeira nas solas dos pés e no rosto; os infelizes dormiam sobre papelão, ou arrastavam seu lençol imundo de um lado para o outro; organizavam-se nas vielas sob a avenida; havia uma espécie de
A luz era muito mais intensa do que ele esperava, embora não houvesse nenhuma lâmpada acesa. Vinha de uma janela grande na parede do outro lado. As cortinas de voal, feitas de tecido leve e transparente, sacudiam-se abertas à brisa que adentrava a sala. Não havia tapete na entrada, apenas um par de tênis esportivos surrados ao lado do batente, em meio aos grãos de areia depositados pelas solas no chão de taco cru. Vince deu o primeiro passo para dentro, mas não fechou a porta imediatamente. O cômodo diante de si não deveria fazer parte do prédio da OneBionics, de maneira nenhuma. Era ensolarado e morno, apesar do frio de fim de tarde que acompanhara Vince até ali. O papel de parede, com figuras indistintas e padronizadas, parecia já ter visto dias melhores; apesar do tom bonito de um amarelo quase bege, descascava nas pontas, revelando um pouco da madeira escura e escalavrada pelo tempo. Ele olhou para trás, para garantir que o corredor de porcelanato ainda permaneci
27 de julho, segunda-feira,Duas semanas e meia antes do lançamento.Entrou em seu escritório na companhia de Castello. Após a sala de conferências se esvaziar, a mulher finalmente concordara em conversar com Estefen a sós. Já conseguira o que queria, afinal. Estefen, por outro lado, não havia nem começado.— Você podia ter conversado comigo de verdade antes de fazer todo aquele show — investiu ele, fechando a porta.Castello cruzou os braços. Não olhava diretamente para ele. Em vez disso, caminhava pelo escritório, observando as paredes que serviam de suporte para os certificados emoldurados.— Podia. Tem razão. Mas não teria obtido o efeito que eu queria, não acha? Além do mais, é melhor não falarmos sobre o que deveríamos ou não fazer. Do meu po
Lexia subiu o pequeno lance de degraus e parou diante da porta de casa. Remexia o molho de chaves na mão, pensando no longo dia de estágio que finalmente se encerrava para ela, quando uma voz fantasmagórica a chamou. Virou-se imediatamente e quase deixou as chaves caírem. O que viu foi ainda mais assustador do que ouvir seu nome pronunciado daquele jeito lânguido e sofrido. Demitre estava com uma mão no corrimão e um pé no primeiro degrau, como se em algum momento houvesse tido a intenção de subir, mas tivesse congelado no lugar. Lexia nunca havia visto algo parecido. Os olhos dele estavam esbugalhados, seus lábios eram apenas um traço fino, e o resto… o resto estava molhado e tingido de vermelho. Parte dos cabelos grudados nas bochechas, carregados pela substância escura e pegajosa. Ele vestia apenas uma regata, cuja cor original era indecifrável no escuro. Tremia. Tremia demais. — Demitre, o que…? — Levou a mão ao coração. Era sangue? Aquilo tudo era… sangue?! — Is
Pela maneira como Vince apertava os braços da poltrona, talvez pudesse deixar marcas de suas palmas quando finalmente se levantasse. Vinham-lhe à mente suposições que ele jamais pensaria em fazer. Artur ainda curtia a música que saía da caixa de som, as gaivotas ainda grasnavam para além da janela, e o calor do sol fictício havia esquentado o corpo de Vince o suficiente para que ele tivesse removido seu casaco. Mesmo assim, ele ainda não havia deglutido totalmente as novas descobertas. Por mais que sua especialidade fosse a designação de máquinas eficientes e a inteligência artificial, por muito tempo vivera sob a ilusão de que nenhum biônico pareceria completamente humano — ao menos, não enquanto ele vivesse. Agora, via-se obrigado a readaptar suas certezas. Estudava a compleição do rapaz. Se Giella não lhe houvesse garantido que se tratava de um autômato, e caso Vince o tivesse conhecido em qualquer outro lugar senão na OneBionics, acreditaria que o sujeito
28 de julho, terça-feira, Duas semanas antes do lançamento. A maioria dos funcionários da OneBionics não tinha permissão para usar serviços da empresa enquanto estivessem em fase de teste. Como chefe de seu setor, isso não se aplicava a Estefen — ou, pelo menos, não costumava se aplicar. Após uma conversa curta com Octavia, a dirigente concedera à Castello direito à palavra final nas decisões do setor de gestão criativa; remover Estefen completamente de seu cargo, no entanto, seria burocrático demais e pouco prático, portanto ele ainda continuaria coordenando possíveis reuniões durante a próxima semana. Estefen sabia que, de uma maneira ou de outra, destituí-lo do máximo de voz e recursos dentro da OneBionics se encaixava perfeitamente nos interesses de Octavia, afinal esse havia sido o motivo por que ela colocara Castello no encalço dele em primeiro lugar — o sorriso grande que a dirigente esboçara, no dia anterior, a
Demitre estaria morto. Ele estaria morto. Estaria morto. Morto como Jota-jota. Pálido, flácido. Morto. Não conseguia parar de olhar para ela. Então era assim que uma pessoa morta parecia normalmente. Essa informação atualizava a anterior, a imagem do homem rasgado no chão do banheiro. Era assim que pessoas costumavam morrer quando não eram atacadas. Exceto que Jota-jota havia, sim, sido atacada. E não existia modo “normal” de morrer, existia? Pensando bem, se num primeiro momento Demitre tivera a impressão de que a ex-colega de alocação dormia, agora se perguntava como pudera ter se enganado tão grosseiramente. Aquela nem sequer parecia Jota-jota. Ele nunca a havia visto com aquela expressão tão neutra no rosto, nem mesmo enquanto dormia — perfeitamente posicionada; frouxa, não como se descansasse, mas como se derretesse. O que era preciso fazer com uma pessoa para que ficasse daquele jeito? Será que todos ficavam daquele jeito em seu leito derradeiro
Os lençóis não pareciam novos, já deviam ter conservado o calor de muitos outros homens em situações semelhantes. Vince prezava isso. Havia algo de especial em como nada era especial no que se tratava dele. Estava na casa de um conhecido — agora podia chamá-lo de conhecido, considerando que era a terceira vez que o via —, o rapaz que conhecera na lanchonete perto de onde vinha morando; o primeiro com quem Vince arriscara deixar de ser quem havia sido por tantos anos. A essa altura, já não se lembrava muito de tê-lo encontrado por meio de um aplicativo; sabia seu nome: Raffe; perguntara à porta do apartamento dele naquele primeiro encontro concupiscente, depois que tudo já havia sido feito e dito, com corpos encobertos pelas roupas que minutos atrás teriam atuado como obstáculo. Admirou-lhe as costas nuas; eram tão brancas que ainda conservavam o contorno da palma de Vince, há pouco pressionada contra elas. Raffe se sentava na beirada, tragando e esbaforindo seu cigar
29 de julho, quarta-feira, Duas semanas antes do lançamento. — Abra os olhos quando estiver pronto — ciciou Ton. Estefen estava pronto desde que os fechara. Mesmo assim, respirou fundo uma última vez e soltou o ar. Gostava de meditar, apesar de nunca sentir que o fazia corretamente. Continuava praticando quase sempre que visitava Ton em sua câmara de simulação. Fitou outra vez o senhor de barbas brancas sentado à sua frente, com um sorriso sereno e acolhedor. — Como se sente? Sua resposta foi um acenar de cabeça quieto. A tensão que vinha petrificando os músculos dos ombros e do pescoço diminuía um pouco. Juntou os dedos e esticou os braços, espreguiçando-se. Depois, olhou pela janela, para as nuvens escuras e pesadas. Toda a apreensão continuava presente, de um jeito ou de outro, porém um feixe de esperança começava a competir por espaço dentro de Estefen. — Você tinha razão. Eu estava olhando