Primeira Parte: II

16 de julho, quinta-feira.

Quando Fédra deu duas batidas na porta do chefe de gestão criativa, conseguia imaginá-lo soltando um murmúrio incomodado.

O corredor era composto por fileiras longas de estandes, e dentro de cada um havia um escritório particular. Por determinação da empresa, eram blocos feitos de vidro transparente. “Transparência em primeiro lugar” poderia ser o lema da OneBionics. As passagens eram sempre largas, as esquinas eram esquadrinhadas por câmeras, os relatórios e e-mails eram publicamente acessíveis no ciberespaço. era difícil até mesmo usar o banheiro sem que alguém ficasse sabendo. Conversas particulares não demoravam a virar fofocas disseminadas, e o histórico registrado nas máquinas de lanche — ativadas por leitura biométrica — possibilitava que uns acompanhassem a dieta diária dos outros.

Ainda assim, as paredes do escritório de Estefen eram cobertas por cortinas de persianas. Uma caixa completamente fechada, uma ilha inexplorada em meio a uma imensidão de oceano aberto.

A porta se destrancou. Fédra fez com que ela se deslizasse para o lado e deu um passo para dentro, forçando os olhos. O escritório estava, como de costume, quase mergulhado em escuridão, exceto por um abajur de luz pálida acoplado à escrivaninha.

Estefen se sentava diante da mesa. Seu calendário digital — que marcava o início do segundo semestre de 2093 — era um dos poucos objetos ocupando espaço, além do computador (que quase não realmente o fazia, uma vez que era plano como papel). O chefe não olhou para a assistente de imediato, estava concentrado demais na objetiva em seu olho; continuou gesticulando no ar por meio minuto e contemplando imagens que Fédra não podia ver, antes que ela finalmente decidisse soltar um pigarro.

— Eu perguntaria “estou atrapalhando?”, mas a resposta é sempre a mesma — lançou Fédra.

A luz da objetiva no rosto de Estefen se apagou perante um movimento de mão. Ele finalmente abaixou o braço e virou o rosto para a assistente.

— E eu poderia perguntar “por que se deu ao trabalho de me dizer uma coisa óbvia dessas?”, mas nós dois sabemos o que é um ato de fala. — Levantou-se e abotoou o terno azul-escuro. — Então, a pergunta que vou fazer é: por que você não me critica diretamente, em vez de deixar seu julgamento implícito?

Fédra mordeu o lábio sardonicamente.

— Porque adoro a maneira como você reage.

Estefen sorriu com vontade. Curvou-se breve e sutilmente.

— Nesse caso: não tem de quê. É sempre um prazer entretê-la.

Fédra sacudiu a cabeça em negativa e lhe lançou um olhar que beirava o desprezo, mas Estefen sabia que essa era sua maneira de demonstrar admiração. Era o tipo de pessoa que dificilmente usava palavras elogiosas, mas, em segredo, possuía um coração grande. Era jovem, tinha cerca de quinze anos menos que Estefen; um corpo rechonchudo, bem-marcado pelas calças de couro que costumava usar; uma pele clara surpreendentemente livre de acne ou de marca de noites maldormidas; seus cabelos tingidos, muito negros, estavam sempre impecavelmente cortados à altura da mandíbula.

Estefen bateu duas palmas, e as demais lâmpadas do escritório se acenderam. Seu espaço encontrava-se sempre impecavelmente limpo, quase como se ninguém nunca entrasse nele. Tudo era muito cinza: o carpete, as cadeiras, a escrivaninha… até a moldura dos poucos quadros pendurados na parede. Fazia com que Fédra se sentisse num bunker subterrâneo contra ameaças nucleares.

— Deve imaginar que eu não escolheria entrar nesta sua caverna a menos que realmente precisasse — alfinetou ela.

— Imagino. Claro. O que posso fazer por você?

— Por mim? Nada. Mas por esse cara aqui atrás de mim… — Fez um gesto e se encolheu na porta, liberando passagem.

Um adulto, que vinha esperando no corredor, entrou no escritório com movimentos maquinais. Estefen sabia se tratar de um sintético apenas por dois motivos: o semblante sem expressão e o corpo completamente nu.

Foi a vez de Fédra movimentar a mão, enviando comando para a objetiva em seu próprio rosto. Assim, ela ordenou silenciosamente que o homem desnudo se posicionasse no centro do recinto, com os braços relaxados nas laterais do corpo e a cabeça sustentada sobriamente para frente.

Estefen o contemplou por um instante, tentando se lembrar de quem ele estava destinado a ser. Desde que a OneBionics criara uma maneira de fazer com que os sintéticos tivessem uma aparência indistinguível da humana, vinha sendo difícil evitar a impressão de que eram pessoas de verdade à primeira vista. Os sintéticos que se popularizaram no mercado cerca de vinte anos atrás mais se assemelhavam a marionetes sem cordões — robôs capazes de repetir linhas escritas por programadores, captar emoções por meio de reconhecimento facial e reagir de acordo com um estado de espírito internamente simulado —, feitos basicamente de silicone, plástico e fibras de carbono. Dez anos atrás, entretanto, a OneBionics mobilizara seus melhores engenheiros a fim de conferir mais realismo ao aspecto daquelas máquinas e à maneira como se comportavam. Os avanços vinham sendo tão grandiosos que a dirigente da empresa transmitira uma nota para todos os funcionários, pedindo que deixassem de chamá-los de biônicos.

“Uma vez que, do ponto de vista antropológico, seria como chamar seres humanos de primatas”, Estefen sempre se lembrava dessa citação e gargalhava sozinho, pensando no tamanho daquela estupidez. Na época, tivera vontade de responder à nota: “do ponto de vista cladístico, codornas são dinossauros. Desse modo, minha querida primata, seguir sua sugestão seria como enfeitarmos uma privada com fita vermelha”. Claro que não o fizera — primeiramente porque sua chefe tinha o senso de humor equivalente à de uma colher de chá; e, em segundo lugar, porque ele sabia como palavras tinham expressivo efeito na maneira como as pessoas funcionavam.

A essa altura, poucos conseguiam ver princípio orgânico, biológico, nas máquinas humanoides utilizadas em todo o país; e isso era esperável. Os primeiros modelos comercializados há duas décadas fizeram alguns queixos caírem — e havia sido comum, por alguns poucos anos, tratá-los como se tivessem mais do que apenas senciência artificial. Mas, já há muito tempo, os órgãos externos pouco críveis, os mecanismos eletrônicos aparentes e as marcas deixadas durante a fabricação haviam dessensibilizado os usuários, de maneira que (aplicando o termo da nota geral enviada pela dirigente) todos passassem a parecer primatas.

Sim, palavras tinham força, e era também por meio delas que a OneBionics pretendia revolucionar o universo da robótica. Os sintéticos já haviam deixado a fase de protótipo, embora ainda não tivessem sido divulgados à massa. “Por que tentar causar boa impressão com um jantar sofisticado se não formos capazes de servi-lo em baixelas caras?”, a dirigente também costumava dizer. E era por isso que, até o momento, todo aquele avanço tecnológico era tratado com a discrição de um segredo de Estado. Apenas os funcionários da OneBionics, os associados e alguns seletos usuários beta tinham acesso aos novos modelos de inteligência artificial.

Estefen se orgulhava, em algum nível, por ser uma das principais cabeças à frente do projeto Dédalo, mesmo que sua função se consistisse única e exclusivamente em conceder personalidade aos sintéticos, bem como criar as histórias deles, com pano de fundo e cenários inclusos. Não era um entusiasta pela matemática e não compreendia quase nada de programação. Tão próximo era das consideradas “máquinas perfeitas”, e tudo o que entendia era de seres humanos.

Estefen estudou o homem nu em seu escritório apenas o suficiente para ter certeza de que a equipe de montagem não havia cometido erro algum — não que fosse obrigação dele reparar nessas minúcias, mas, como ele mesmo costumava pensar, nenhum músico que se preze aceita tocar instrumentos desafinados.

Esse sintético não se parecia com a maioria. Ao menos metade dos homens produzidos e armazenados pela OneBionics costumava afigurar características físicas condizentes com o padrão de beleza renascentista, ou até mesmo ao da antiguidade clássica: muitos músculos, quase nenhum pelo e pele branca; por vezes um soldado espartano, esculpido em mármore e à semelhança dos deuses. Esse era um pouco diferente: seus músculos pareciam ter sido adquiridos sem planejamento; tinha um peitoral definido, mas massa adiposa significativa nas ancas; braços treinados, mas coxas não tão impressionantes. Tinha os cabelos raspados, olhos escuros; um bronzeamento de aparência muito natural. A equipe de estética havia feito um bom trabalho nele.

Então, Estefen pegou um roupão de dentro de uma gaveta da escrivaninha, que guardava lá especialmente para esses casos, e o usou para cobrir o homem. Fédra soltou uma risada perante o gesto. Para ela, não fazia sentido cobrir as genitálias daquelas máquinas, uma vez que não estavam cientes da exposição de seu corpo — um corpo que nem existiria caso ninguém houvesse lhes dado um.

— Me diga o designativo dele, querida — demandou. Assim que ela lhe pronunciou o código, ele reativou sua objetiva com o movimento usual e inseriu os algarismos no sistema. Acessou as informações armazenadas na rede. — Vitor Correia. 33 anos. Nascido em 27 de março de 1983, em Alta Fortaleza, antes da queda do Estado Único. Vive na época de 2017. Agnóstico. Cor favorita: azul. Não acredita em signos do zodíaco. Ah, sim! — Chegou à parte mais importante: o homem havia trabalhado informalmente durante parte da adolescência e da fase adulta em canteiros de obra, o que explicava o formato e a cor do corpo dele. — Por que este sintético específico veio para revisão?

Fédra cruzou os braços e se apoiou no batente.

— As lembranças e os traços psicológicos dele foram concebidos pelo estagiário novo.

Estefen balançou a cabeça em desaprovação.

— Este tem um enredo complexo demais para o designarem a alguém ainda em treinamento. Por que não deram ao estagiário a dona de casa do século dezenove?

— O resto da equipe levou sua sugestão em consideração. O enredo dela era desinteressante. Enviaram o modelo para o setor de montagem outra vez.

Ele soltou o ar.

— Minha sugestão era que aprimorassem alguns detalhes do enredo dela. Faltava motivação e alguns conflitos. Não precisava m****r desmantelá-la.

— Acho que a equipe não estava tão inspirada na criação dela — suspirou. — Aliás, se quiser saber minha opinião, esse aí parece mesmo bem mais interessante. Sem pais nem irmãos vivos, teve filho na adolescência e entrou para o crime organizado depois de adulto.

Estefen precisava concordar.

— Certo. Vou fazer um teste rápido nele — inteirou. Usou a objetiva para tirar o sintético do estado de letargia e sorriu para o homem. Vitor não parecia nada simpático, sua primeira reação foi fechar o rosto. Nesse sentido, o estagiário havia atingido o objetivo. Pelas características emocionais descritas na ficha do sintético, caso sua vontade própria e percepção de local estivessem ativos, Vitor provavelmente partiria para briga. Estefen o coordenou para fornecer respostas sinceras antes de lhe perguntar: — Como você definiria sua visão de mundo?

Vitor encolheu ombros.

— Caladão, esse aí — zombou Fédra.

Estefen assentiu, e aquilo era um bom sinal. Um homem simples, que tivera acesso apenas à educação formal básica, não saberia responder a uma pergunta complexa como aquela. E, levando em consideração sua personalidade introspectiva, era previsível que preferisse não se expressar verbalmente.

— Vitor, o que existe de mais importante para você no mundo? — questionou Estefen.

O homem olhou para o chão e franziu a testa, pensativo.

— Nada. — Voz firme, grave, mas contida.

Curioso.

— O que já foi importante para você?

A expressão do homem se modificou drasticamente. Ele cruzou os braços à altura do peito e levou a mão à boca, como se, no fundo, quisesse impedir que as palavras saíssem — ou que as lembranças fossem revividas em sua mente.

— Minha filha — respondeu. Sua voz finalmente se embargou. Piscava com mais frequência.

— Não é mais tão importante?

Ele sacudiu a cabeça. Então, lágrimas começaram a rolar por suas bochechas. A mão ao redor da boca se apertou.

— Ela… minha filha. Eles… — vacilou. Um soluço arrebatador escapou. Ele fechou os olhos. Uma dor insuportável se imprimiu em sua figura. Arfou, enquanto tentava se obrigar a falar, mas logo um choro copioso tomou conta de sua garganta, paralisando-a.

Estefen usou sua objetiva para colocar Vitor de volta em estado de letargia. O pranto se findou de uma só vez. O rosto do homem voltou a apresentar neutralidade, enquanto seus braços retornaram à posição relaxada de antes. Nenhuma sombra de consciência por trás dos olhos.

Fédra tomou fôlego e perguntou:

— Então… posso aprová-lo e mandá-lo para a equipe de caracterização?

Estefen a olhou com incredulidade.

— Está falando sério? Não viu o que acabou de acontecer?

Ela estranhou. Acessou a ficha do sintético em sua própria objetiva.

— Estou lendo aqui que a filha dele foi assassinada aos oito anos, quando policiais confundiram seu carro com o veículo de um criminoso procurado e alvejaram a traseira. Foi depois disso que ele realmente entrou para o crime, não é? — listou. — O que há de errado?

— A reação que ele teve quando mencionou a filha. — Estefen enfiou as mãos nos bolsos da calça social.

— Pareceu uma reação normal para mim. O que ele deveria fazer ao se lembrar dessa história horrível? Rir?

— Também não — rejeitou, categoricamente. — Você não o está vendo como um todo, Fédra, apenas como um pedaço. A morte injusta da filha é o ponto de virada no enredo dele, mas, nas lembranças que inserimos nele, isso aconteceu cerca de dez anos antes. Ele não deveria esboçar toda essa dor, como se tivesse acabado de receber a notícia. A essa altura, deveria esboçar sinais de raiva. Afinal de contas, foi por isso que ele entrou para o mundo do crime, como uma maneira de se vingar do sistema de justiça da sociedade em que vive. Não entende? Essa é a motivação dele.

— Mas então, só por conta disso, ele não deveria chorar?

Estefen fez que não uma segunda vez.

— Não só por isso. Dê uma olhada no perfil psicológico dele. — Começou a enumerar nos dedos. — Ele é solitário, rancoroso e circunspecto. Não confia em ninguém e convive com criminosos diariamente. Não é o tipo de pessoa que deixa suas emoções transparecerem com facilidade diante de estranhos, por mais que elas o toquem profundamente. — Estefen se aproximou outra vez de Vitor e o segurou pelo queixo, estudando seus olhos escuros, como se fosse capaz de enxergar para além de um espelho turvo. — Este aqui é uma alma torturada, sim. Mas é preciso haver sutileza na maneira como se expressa. Uma espécie de… poesia críptica, entende?

Fédra revirou os olhos. Ao ver Estefen segurar a cabeça do sintético daquela maneira, enquanto falava naquele tom condescendente e o encarava com olhar contemplativo, ela podia imaginá-lo citando “ser ou não ser, eis a questão”.

— Você e essas suas alegorias melodramáticas… — resmungou.

Estefen recolheu a mão e a encarou.

— Discorda de mim?

Fez uma careta.

— Sei lá. Acho que ninguém realmente vai se importar com a maneira como esse cara processa os sentimentos dele depois que o projeto estiver finalizado.

Estefen sorriu.

— É natural que pense assim. E é justamente aí que está o diferencial do projeto Dédalo — exortou. — Talvez você tenha razão. Talvez ninguém nunca tente mergulhar profundamente no espírito deste homem; mas isso não significa que ele pode ser mal construído. Verossimilhança é o que atrai nossos usufrutuários ao OneConnect. Cada um dos nossos modelos, não importa qual seja o enredo criado para eles ou o cenário em que ficarão expostos, precisam transmitir plausibilidade, fazer com que os usufrutuários acreditem na existência deles. — Olhou outra vez para o homem. — Essa é a beleza da mente humana. Suas motivações, suas crenças, seus medos, seus desejos e seus objetivos; tudo forma um mosaico intrincado. Cada elemento formador da personalidade de um indivíduo deve influenciar na maneira como ele se estabelece no mundo; e esse mundo, em contrapartida, deve influenciá-lo de volta. É assim que nós, humanos, operamos. E é assim que eles, feitos à nossa semelhança, devem operar também.

Aquilo estava soando como um dos discursos acalorados e emotivos que Estefen costumava apregoar à equipe criativa no início de cada temporada. Ele falava com propriedade e uma espécie de paixão típica de artistas ufanistas. Fédra costumava admirar aquele jeito quando começara a trabalhar na OneBionics nove anos atrás, poucos meses depois de Estefen, mas hoje parecia achar apenas irritante.

— Está bem. Anotado — respondeu com cara de tédio, enquanto registrava as palavras de Estefen na objetiva, digitando no ar. — Vou encaminhar esse sujeito a um criador mais experiente e pedir que faça as modificações necessárias.

— Ei, ei, ei! — chamou Estefen, aproximando-se e segurando a assistente delicadamente pelos ombros. Ele era mais alto que ela, tinha um metro e setenta e cinco, portanto olhava para baixo enquanto sorria em sua direção. — Você não dá bola para nada do que digo, não é?

Fédra parou um instante e o encarou de maneira desafiadora, com um indício de sorriso nos lábios.

— Acho que você se empolga demais. Só isso.

Ele fez que sim.

— Vá em frente, me chame de pedante.

— Vou fazer como vocês, escritores, e tentar uma abordagem mais criativa: você é um pé-no-saco.

Estefen soltou uma risada alta.

— Você também é maravilhosa! — E a puxou para um abraço.

Ela retribuiu com sinceridade. Sentiu o cheiro do perfume amadeirado dele. Os abraços de Estefen eram sempre os melhores, quentes e apertados.

Após soltá-la, Estefen desabotoou o terno e partiu para se sentar de volta à escrivaninha, não antes de remover o roupão do sintético. A assistente comandou que o modelo a seguisse para fora do escritório, de volta à área de criação, e deixou que a porta se trancasse às suas costas.

Sozinho de novo, Estefen bateu palmas uma segunda vez, fazendo com que as luzes se apagassem. Ele preferia o escritório assim, na penumbra. Costumava trabalhar melhor durante a madrugada, num silêncio tranquilo que geralmente não existia durante o dia. O andar de escritórios da OneBionics costumava ser silencioso, mas nunca escuro como a noite — muito pelo contrário, era mais iluminada que uma manhã estiva. Por isso, Estefen mantinha as cortinas fechadas e as luzes desligadas. Acomodava-se em sua cadeira de encosto alto. Apenas ele, a luz tímida do abajur e as histórias que escrevia.

Estalou os dedos e girou o pescoço. Seu expediente estava perto de acabar, mas, apesar de ele se sentir fisicamente cansado, trabalhar naquele último sintético o deixara inspirado. Por costume, ele lançaria olhar para o certificado de graduação em Artes Cênicas, pregado à parede atrás de si, ao lado da pós em Roteiro Cinematográfico e o profissionalizante em Técnicas Narrativas; mas, também por costume, havia parado de fazer isso há alguns anos, passando a apenas imaginar a ação.

Era uma reação em cadeia. Primeiro, vinha a animação de moldar a mente de seus personagens e construir narrativas. Estefen era um bom contador de histórias; sempre havia sido. Começara aos dois anos de idade, utilizando giz de cera e papel como ferramentas, mesmo quando os dispositivos portáteis já serviam para esse propósito. Daí, recordava-se da primeira peça de teatro que assistira. Conseguia se lembrar das luzes se apagando; do burburinho da audiência, que ia diminuindo à percepção de que o espetáculo estava para começar… então, as cortinas se abrindo — o primeiro ato; a música, a interpretação; o arrebatamento por meio da arte. Por último, também se remetia aos textos dramáticos que escrevera durante os últimos anos da faculdade, todos rejeitados por uma indústria que cada vez mais fechava portas, até finalmente nunca ter a chance de assistir a uma única peça autoral. Os teatros deixaram de existir em 2084.

O mais próximo de um roteiro cênico próprio que ele havia conseguido trazer à vida tinha sido na OneBionics, as histórias que existiam detrás das portas do OneConnect. Por mais que isso lhe apertasse o peito — hoje não tanto quanto no passado —, ele sabia que era um privilegiado. As indicações certas, o carisma necessário e a presença de liderança o haviam colocado num cargo único. Não era algo a ser menosprezado.

O OneConnect, nome provisório para projeto Dédalo, seria um “serviço de relacionamentos semivirtuais programados” quando fosse lançado oficialmente no mercado, no dia 13 de agosto, com o intuito de permitir que pessoas engolfadas pela rotina vivessem sua própria cena dramática nas horas vagas.

Como seria conhecer pessoas de outras épocas e lugares? Como seria ouvir suas histórias e compartilhar vivências com elas? Como seria fazer amizades que jamais existiriam no mundo como era hoje? A OneBionics forneceria isso por um preço acessível, e seria a pioneira no uso da tecnologia a serviço de um cotidiano mais rico em experiências construtivas.

Por outro lado, Estefen se sentia enojado ao pensar no que de fato ocorria de modo tão generalizado dentro das câmaras de simulação. Interação social podia existir de muitas maneiras, mas os usufrutuários quase sempre optavam por explorá-las da mais primitiva possível. O estágio beta do OneConnect deixava isso bem claro. Todo o esforço que a equipe de criação aplicava em construir universos imersivos perdia valor quando tudo o que os usuários desejavam era a possibilidade de praticar sexo dos modos mais esdrúxulos e repreensíveis. Não demorara muito, a partir dos primeiros testes fechados, para que a OneBionics começasse a apostar em fetiches populares — e a decisão não havia sido indeliberada. Não era à toa que a maioria dos sintéticos eram construídos com características físicas apelativas, quase todos com corpo torneado, cabelos perfeitos, pés enormes e uma estrutura óssea invejável. O que fosse tendência nas mídias sociais se tornava padrão a ser seguido, não apenas fora do complexo da OneBionics, mas principalmente dentro dele.

Para Estefen, tratava-se de uma hipocrisia coletiva. A maioria dos engenheiros, programadores e escritores passava cerca de quatorze horas diárias sentada numa cadeira, anos a fio — sedentários; alimentando-se e dormindo mal. Mas os produtos de seu trabalho eram jovens, saudáveis e desejáveis.

Escritores tinham o péssimo hábito de viver mais dentro da própria cabeça do que do lado de fora, é verdade, mas ele não se colocava, de todo modo, na categoria dos mal-apessoados. Não mais. Há alguns anos, ao perceber sinais de fadiga, marcas ao redor dos olhos e uma aparência progressivamente detonada diante do espelho, começara a cuidar de si. Por sorte, tomara essa decisão a tempo. Exigia ao menos dois dias de folga durante a semana, com um máximo de cinquenta horas de trabalho semanais; tratava de seguir sua dieta, realizar exames de sangue anualmente e se exercitar todos os dias pela manhã. Seu cargo de destaque permitia que ele fizesse tais adaptações em sua rotina. Para sua satisfação, não eram muitos os homens que chegavam aos trinta e oito anos com uma aparência como a dele. Além de tudo o que fazia para manter a boa forma e o vigor, sua genética o abençoara com ombros largos e uma tendência excepcional ao ganho de massa muscular.

Gostava, de todo modo, das poucas marcas de expressão e da cor grisalha dos cabelos que ele mantinha em topete; combinavam bem com seu queixo marcante e rosto vagamente anguloso. Não era como se pudesse desmontar membros e substituí-los por partes mais atraentes, assim como se fazia com sintéticos; no entanto, também não era como se precisasse disso.

Cuidar de si, de todo modo, excedia o visual. Já fazia cerca de um ano que ele planejava abandonar a OneBionics, distribuindo sorrisos pelos corredores e se comportando como uma pessoa amável. Esse, sim, seria o melhor cuidado que poderia ter consigo mesmo.

Mas ainda não, pensou. Não de mãos vazias. Não antes de fazer aquilo que precisava ser feito.

Estefen se levantou e foi até a cortina de persianas. Abriu uma fresta, de modo que pudesse olhar para fora. Fédra já havia voltado ao posto dela, distraída com seu computador à escrivaninha.

Transparência era, de fato, uma determinação da empresa, mas nenhuma parede de vidro ou leitura biométrica permitiriam que vissem aquilo que apenas Estefen e mais uma única pessoa no mundo sabiam tão bem: ele era um homem cheio de segredos.

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