Don Giorgio segura o rosto de sua esposa pela última vez antes da sua morte, essa é a ordem final da doce Genevieve. A mão dele mancha a pele pálida dela com seu próprio sangue e apesar disso ela sorri, venera ele com seu olhos grandes e azuis como o mediterrâneo, tenta agarrar-lhe o tecido da camisa como se desejasse compartilhar as suas últimas palavras antes do grito final que veio cedo demais e interrompeu a cena. Ela se contorce e o Don assiste em completo silêncio, sozinho, apenas ele e tua dama, a mulher que traz ao mundo seu herdeiro.
— Giorgio... — Ela tenta chamar, ofegante, a voz entrecortada e tão baixa que só podia ser ouvida porque ele não era humano.
— Si bella mia. — Ele diz sem emoção, ainda segurando seu rosto como uma boneca.
— Gio... C’e... Gio... — Ela tentava e sua palavras seguiam presas pelas contrações que vinham uma após a outra.
O suor fresco de Genevieve se mistura ao sangue em seu rosto, Giorgio solta sua amada com a impressão de que algo está prestes a dar errado, afinal, à essa altura a criança já devia ter rasgado sua mãe e nascido como deve ser. Ele mais uma vez ergue o vestido manchado e procura por algum sinal de seu filho, mas há apenas uma quantidade exorbitante de sangue e os gritos incessantes da pobre mulher. Ele se levanta, sabe que não poderia pedir ajuda a ninguém, pois ninguém estaria bem alimentado o suficiente para não matar a mãe da sua cria. Ele se vê encurralado, volta a se ajoelhar ao lado dela e seus sentidos o confundem, ele sabe bem que o sangue perdido já significa a morte da sua companheira, ela já não responde as contrações como antes e aos poucos desfalece e ele faz uma escolha rápida que talvez lhe custaria o respeito do clã, respeito que estava disposto a recuperar à ferro e fogo se isso fosse manter a existência da sua querida. O ato desesperado dele significa o rompimento de uma veia por suas presas, aonde rapidamente verte seu sangue espesso e escuro que ele gentilmente derruba nos lábios trêmulos da pequena Geni. Apesar disso, o único som que Don Giorgio ouve no quarto é o choro desesperado do recém nascido que inesperadamente repousa entre as pernas da mulher, coberto de sangue e pele.
O choro penetra em seus ouvidos como o som de uma banshee anunciando a morte eminente, lhe amaldiçoa e perturba como nada jamais foi capaz de fazê-lo. Ele olha a pequena criatura com repulsa, recolhe o pulso que antes derramava o precioso licor da vida nos lábios da esposa e percebe que ela o rejeitou, não foi capaz de cumprir a ordem e por isso, está morta. Ele desejava poder dar a ela a imortalidade, mas os costumes condenam o desrespeito com a decisão das moiras. Insatisfeito e incrédulo Giorgio se retira, deixando naquele quarto o corpo inerte de Genevieve e a existência frágil e agora insignificante de sua cria.
Horas se passam, a criança chora em plenos pulmões, e como um animal selvagem, se move em busca de alimento sob o corpo da mãe e com dificuldade encontra-lhe os seios e suga a vida restante da falecida. De uma fresta na porta o Don encontra o filhote lutando pela sobrevivência e decepciona-se com os seus deuses pela primeira vez, não queria conviver com uma cria bastarda, não queria ter sua oração ouvida, não queria mais um guerreiro. A arma em sua mão serviria para acabar com o choro irritante daquela aberração, mas agora... Como poderia encerrar-lhe a vida e negar o desejo de Jupiter?
Giorgio bateu a porta atrás de si e em um piscar de olhos estava na companhia dos cavalheiros da famiglia que antes esperavam para brindar pelo nascimento do herdeiro e agora lamentavam pelo erro de Giorgio ao escolher la dama, que fora incapaz de dar aos seus o presente prometido pelos céus.
— Il bastardo è un miracolo. — Diz o líder em desgosto.
Rafaello, o conselheiro e irmão de sangue de Giorgio, cuja energia permitia rever fatos recem vistos através dos olhos de outrém, toca no enlutado com hesitação, temia o que seu amigo queria dizer com aquela frase e a cena da criança escalando a mãe como um filhote de felino em busca de alimento o fez questionar o que os Deuses desejavam com tal mensagem. Os outros encaravam curiosos, poucos tinham qualquer habilidade então estavam no escuro, enquanto o Don encarava a arma em sua mão buscando motivação para tomar uma decisão.
— Il bastardo vive! Combatti come uno di noi... Non possiamo negare il tuo sangue, Don Giorgio. — Anuncia Rafaello quebrando o silêncio, com a mão firme no ombro do amigo.
Poucas coisas entre os Capadócci eram mais importantes do que a vontade dos deuses antigos, dentre elas, o respeito pela tradição do herdeiro. A tradição os tornou independentes de seus antigos senhores, deu a eles o reinado em Favignana, deu a eles o controle de sua imortalidade. Negar o sangue é o maior pecado que um Capadócci pode cometer e Don Giorgio não gostaria de ter isso contra ele.
Ele solta a arma em sua mão e se retira da sala como sinal de que não lutaria contra o destino, desaparece, não pretendia ver aquela cria novamente e nem enterrar a mãe. Não poderia enterrar sua amada Genevieve, preferia guardar a imagem viva dela.
Rafaello, no entanto, assumiu a responsabilidade sob a criança sem ao menos ter recebido tal ordem. Estava determinado a criar o menino ao qual ele chamou por Giovanni em homenagem ao mestre, confiante de que faria Don Giorgio enxergar o propósito do menino um dia.
Dias Atuais, Jalines – RS, BrasilO corpo da morena reluzia sob o Sol e seus óculos refletiam a amiga acima dela, de pé com sua frustração estampada nos olhos castanhos e braços cruzados para enaltecer sua raiva. Dalila, no entanto, estava bastante relaxada e não se deixava afetar pela postura intimidadora da outra.— Jenifer tu ta bem na frente do Sol. — Reclamou com a voz morosa.— Nossa Dalila! Dá pra tu pelo menos parecer um pouco incomodada com o mundo acabando? — O cabelo liso e curto se agitava conforme ela se movia.— O mundo não ta acabando Jenifer. — Dalila se dá por vencida, senta-se na areia rapidamente porque sabe que sua amiga não aceita ser simplesmente ignorada.Ela tira os óculos escuros e respira pesadamente. Há algumas semanas foi despejada da moradia estudantil e por não ter aonde por suas coisas, precisou vender todos os móveis que tinha até então, menos o piano de seus pais é claro... Esse estava posicionado em um canto da parede, junto com seus equipamentos de D
Jenny finalizava seu batom roxo no espelho do carro e a regra é que ninguém podia sair até que ela estivesse pronta e por isso seu namorado batucava freneticamente no volante, ansioso para ver de perto a decoração colorida que já conseguiam notar da rua em que estacionaram. As tendas gigantes cobertas de tecidos variados de cores vibrantes e psicodélicas davam um ar de festival de música, mas eles sabiam que era apenas uma festa de aniversário, no caso o aniversário de João Guilherme, filho de ator famoso e amigo de infância do Jotapê. Dalila era o presente do Kiper e para ela fazia sentido, considerando que o idiota era um rato trapaceiro... Claro que daria um jeito de dar um presente que não pagou para ter.Finalmente a amiga saiu do carro arrumando sua roupa e o namorado a acompanhou como um pequeno labrador feliz, dando espaço para Dalila segui-los de uma distância segura das demonstrações de afeto. A morena analisou o campo que eles conheciam como Pico Da Forca, dado sua históri
— Eu mesma, prazer. — Ela não queria parecer tímida então foi cordial se aproximando dele para lhe dar um singelo aperto de mão.Ele tinha aquele olhar misto de algum tipo de luxúria e o constante ar de riso e deboche como um verdadeiro maníaco, mas Dalila podia notar mesmo com a luz colorida e distante a sua beleza no meio das inúmeras tatuagens, o cabelo loiro claríssimo e propositalmente bagunçado e as roupas despojadas demais para um menino rico do Sul; na verdade o loiro parecia um verdadeiro marginal das ruas de São Paulo, ao menos como Dalila os imaginava, com o pequeno detalhe de que na verdade era italiano e esperava que não fosse um marginal.Apesar de ela ter estendido a mão, ele aceitou apenas para se levantar e puxá-la para dar dois beijos demorados em suas bochechas. Ela ficou tão perplexa com a atitude repentina que mal se moveu, mas sabia que era costume do país dele cumprimentar com beijos no rosto, só não sabia se o faziam com recém conhecidos.— Tommaso Capadócci, m
Mesmo bêbado, Gabe era extraordinariamente cuidadoso naquele veículo quando se tratava de levar Dalila aonde quer que fosse, deu para ela o deu capacete e dirigiu apenas com seus óculos escuros, provavelmente porque se preocupava com os gatilhos que uma direção arriscada poderia disparar nela. Desde a morte dos Feigenbaum, Gabriel era um porto seguro para a morena, sendo sempre o primeiro a se preocupar com as suas verdadeiras necessidades, medos e pesares, os meios que usava para lidar com a dor e o que a deixava confortável de verdade. Ele sabia tudo sobre ela e cada detalhe das suas ações era milimetricamente pensada, desde as provocações até os momentos de distanciamento. Ele sempre sabia o que fazer.Não é que Elias e Jenny não soubessem como cuidar de Dalila, mas eles tinham dificuldades quanto a personalidade dela. Elias, por exemplo, era o tipo que nunca fazia perguntas ou questionava sua amiga porque não queria bater de frente com ela, que já tem personalidade o suficiente po
Jenny morava em um condomínio na parte mais alta da cidade, porém no sentido oposto ao Pico da Forca, o bairro em si era um dos mais antigos de Jalines e por sua vez, o mais rico. Ela não gostava que pensassem que era uma daquelas princesinhas mimadas, a jovem sempre fez questão de parecer uma garota simples, tratava todos muito bem e nunca fazia acepção de ninguém por causa da pele, status social ou gênero e sexualidade. Quase sempre muito sensata, Jenifer lutava pelas pessoas, mesmo que não as conhecesse... Talvez fosse uma herança genética de seu pai, o deputado estadual Armando Bünchen, um dos poucos ainda honestos. Dalila se orgulhava da amiga em muitos aspectos, muitas vezes até se espelhava nela, mas não no momento em que percebeu que o senso de autopreservação dela fora prejudicado. Assim que Gabriel estacionou sua moto no jardim dos Bünchen, a morena encarou a Lamborghini Aventator cor de chumbo com irritação e surpresa, porque sabia que certamente pertencia ao loiro petulant
— Nem vou precisar falar nada, Tommy... Tu é do tipo que deixa uma marca, sabe? — Dalila provocou, mesmo incomodada com toda a desconfiança que foi gerada a respeito dele desde a noite anterior.— Essa é uma verdade, signorina Feigenbaum. — Ele respondeu com uma cortesia regada de sarcasmo, acompanhada pelo mesmo olhar psicopata da outra noite, encarou Gabriel demoradamente.Dalila esperava que o amigo cumprimentasse o loiro, mas não foi o que aconteceu, os dois se encararam como se estivessem lendo um ao outro e foram interrompidos por Jenny que desceu as escadas dissipando o clima estranho com um gritinho de felicidade.— Gabes! E aí, migo? Estava te esperando. — Ela correu até ele agitando o cabelo curto e pulou nele para um abraço.Dalila e Tommaso se encararam, o olhar parecia nunca desaparecer e ela abraçou a si mesma, mantendo sua postura séria mesmo ao receber da amiga um beijo no rosto.— Gabriel Villa Lobos, esse é o Tommaso Capadócci. — Apresentou Jenny com uma cortesia for
Uma luz forte e estável atingiu os olhos de Dalila e ela soube que uma das janelas do quarto que dormira havia sido repentinamente aberta. Ela sentiu falta de quando Jenifer também gostava de dormir e as duas conseguiam 12 horas de sono sem nenhum problema, agora a amiga entrou nessa vida de mulher produtiva e responsável e isso criava um abismo entre elas as vezes.— Por quê? — Resmungou e Jenifer subiu na cama.Dalila afastou o edredom quentinho para olhar o que a amiga queria, ainda com os olhos semicerrados na tentativa de evitar o Sol. Jenny a encarava preocupada, mas também parecia culpa-la por algo que não estava tão claro, na verdade, a noite anterior ainda estava enevoada na memória da morena que nem tinha acordado direito e já tinha que lidar com os inquéritos da senhorita Bünchen.— Lila, a gente precisa conversar. — Pediu com uma honestidade preocupante.Ela se sentou na cama esfregando os olhos, séria, olhava a amiga com atenção.— O que aconteceu, Jenny?— Eu que pergunt
Dalila tentou ligar para Gabriel três vezes enquanto estava no Uber e concluiu que ele estava ocupado, não quis insistir. Organizou na sua mente o que pretendia fazer quando chegasse na casa de Elias, o amigo provavelmente ficaria feliz pela oportunidade dela, ele acreditava fortemente no seu sucesso na música embora ressaltasse com frequência que ela deveria tentar a carreira de cantora. Pensou que poderiam conversar e beber uma coca-cola, bebida favorita do Eli, enquanto ela empacotava seus pertences e procurava uma casa aos arredores da faculdade aonde pudesse pagar e tivesse espaço suficiente para seus instrumentos. Lhe pareceu uma ideia confortável para um dia como aquele.Ela não prestou atenção a princípio, estava distraída, no entanto quando já estava próxima da sua casa olhou para trás e se deu conta de que um carro antigo fazia o mesmo caminho que eles há algum tempo, não reconheceria facilmente, mas se tratava de um corvette stingray 69 na cor preta. Dalila entendeu rapidam