Réstos de nós
Réstos de nós
Por: Sthe
Capítulo 1

Observar Gabriel sempre foi algo que me prendeu de uma forma que eu nunca consegui explicar. Até hoje, mesmo depois de tudo, meus olhos buscam os dele instintivamente. Como agora, enquanto ele está sentado no sofá da sala, a alguns metros de mim. Estamos aqui juntos, mas separados por um abismo invisível, o mesmo abismo que se abriu entre nós ao longo dos últimos anos. O som da televisão preenche o ambiente, mas é apenas ruído de fundo. Nem ele está prestando atenção, e eu muito menos.

Nosso filho, Davi, de cinco anos, está brincando no chão com seus carrinhos. Ele parece alheio à tensão que permeia o espaço entre Gabriel e eu. Olho para o pequeno, e meu coração se enche de um amor imenso, mas logo depois, como sempre acontece, sinto aquele aperto familiar. O amor que eu ainda sinto por Gabriel é uma ferida que nunca cicatriza. Ele é o pai do meu filho, o homem com quem imaginei envelhecer, e, por mais que eu tente, não consigo deixar de amá-lo. Mesmo que ele já tenha deixado de me amar há muito tempo.

A maneira como ele olha para mim mudou tanto ao longo dos anos. Antes, havia ternura, desejo, aquela faísca que acendia o coração toda vez que ele me olhava. Agora, o que vejo é apenas gentileza distante, quase cordial. É como se eu fosse alguém que ele respeita, mas não ama mais. E, de certa forma, é isso que somos agora: dois adultos que compartilham a responsabilidade de criar um filho, mas não compartilham mais uma vida.

— Preciso te falar sobre a festa na escola do Davi na próxima semana — ele diz, interrompendo o silêncio.

— Claro, eu já tinha visto no calendário — respondo, tentando manter a voz estável.

Essas trocas casuais sobre Davi são tudo o que sobrou do nosso antigo casamento. Eu odeio o fato de que nos tornamos quase estranhos, e que nossa comunicação se resume a agendas, tarefas e pequenos detalhes da vida do nosso filho. Mas o que mais me dói é a maneira como ele age. Gabriel não é cruel. Pelo contrário, ele sempre foi gentil, até demais. A forma como ele se preocupa com Davi, como tenta ser o melhor pai possível… é isso que torna tudo mais difícil. Ele é um bom homem. Apenas não me ama mais.

Houve um tempo em que eu pensei que poderíamos superar tudo. Que talvez, com Davi, pudéssemos nos reconectar. Que o amor que tínhamos poderia renascer, ser alimentado pelas memórias, pelos anos juntos. Mas aos poucos fui percebendo que Gabriel já tinha seguido em frente, de uma forma que eu não consegui. Ele não mudou drasticamente, mas o afastamento foi gradual, como a maré que recua devagar até que você percebe que está muito longe da praia.

Eu queria ser forte o suficiente para deixar isso para trás, para aceitar que nosso casamento acabou. Mas toda vez que ele entra na casa, para buscar Davi ou para participar das atividades da escola, uma parte de mim se ilumina, esperando, desejando que ele olhe para mim como antes, que algo desperte nele, que ele perceba que ainda há algo entre nós. Mas isso nunca acontece. Ele segue com sua vida, educado e sempre presente por causa do nosso filho, mas é só isso. Ele seguiu em frente. E eu… ainda estou presa a nós.

Davi me puxa para fora dos meus pensamentos, trazendo um carrinho e me pedindo para brincar com ele. Sorrio, tentando esconder o aperto no peito, e me sento no chão ao lado dele, fingindo que tudo está bem, que estou bem. Gabriel nos observa por um instante, e por um breve momento penso que talvez ele também sinta algo. Mas logo ele pega o telefone e se distrai com alguma mensagem. Essa é a realidade agora.

Enquanto brinco com Davi, sinto que, de certa forma, ele é a única coisa que ainda nos une. Não há mais “nós” para Gabriel e eu. Existe apenas nosso filho, e o amor que ambos sentimos por ele. Isso é o que nos mantém em contato, é o que ainda nos faz cruzar os caminhos um do outro. Mas fora isso, a vida dele já tomou outro rumo, e a minha… a minha ainda está presa em um amor que não sei como deixar ir.

Quando ele se despede, sempre da mesma maneira gentil, me sinto vazia por dentro. Ele se inclina para beijar a testa de Davi e me lança aquele sorriso cortês antes de sair pela porta. E eu, como sempre, fico aqui, segurando um pedaço de algo que já se foi, sabendo que, para Gabriel, o fim do nosso amor foi apenas uma parte da vida. Para mim, no entanto, é uma ferida aberta que eu não sei como fechar.

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