Joanita voltou para casa, após uma semana na cidade maravilhosa. Não tinha dinheiro. Os novos amigos lhe ajudaram.
A recepção, porém, não foi das melhores. Alguns parentes estavam em sua casa. Quando abriram a porta e a viram, o primeiro impulso foi de querer matar a menina. Sua avó estava branca, com olheiras profundas, e não conseguiu falar quando viu Joanita. Apenas cobriu seus olhos e chorou. Seus tios e tias a xingavam. Em meio à balbúrdia do desespero familiar, Joana se desvencilhou de todos e correu para o seu quarto. Trancou a porta e enterrou-se debaixo dos cobertores. Não precisava daquilo. Não merecia tamanho drama. Parentes que nunca fizeram nada por ela, de repente se mostravam preocupados. Sua avó, que mal falava com ela, chorava. O que era tudo aquilo?
Se o
Era 1988. Dingo e Taco completaram 15 anos de idade naquele ano. Dingo cursava o ensino médio, enquanto Taco repetia a oitava série. Ambos estudavam de manhã. Nenhum deles tinha atividades extras. Taco se ocupava com as coisas do orfanato, embora se afastasse progressivamente, e Dingo, ao contrário dos irmãos, não fazia cursos de administração nem ia para a empresa do pai durante a tarde. Seus dois irmãos, desde muito jovens, já acompanhavam o pai, para aprender as artes do ofício. E iam com prazer. Gostavam de fazer parte daquilo. Dingo foi pouquíssimas vezes. Seu pai não via nele potencial que valesse a pena investir. Não fazia a mínima questão da companhia do filho quieto e mimado. Sorte que tinha outros filhos mais capazes, senão a empresa afundaria. Tê-lo como único herdeiro seria o fim. Pelo menos era seu pensamento
Não muito longe dali, mas um pouco mais distante no tempo (fins de 87) uma garota três anos mais velha que Taco e Dingo encarava as delícias da fissura em uma clínica de desintoxicação. Cada um dos 50 dias parecia valer por pelo menos cinco. Certamente, o momento mais tenebroso da cada vez mais raquítica Joanita que, recusando-se a comer, só vomitava oxigênio, em sua abstinência. Os órgãos internos pareciam querer saltar boca afora, explodindo seu corpo cada vez mais fraco. Nos primeiros dias, não tinha acesso a nada. Nem TV, nem revistas ou livros. Era o seu pequeno e abafado quarto, sua cama e o velho sofá num dos cantos, para as raras visitas. A rotina era rígida e padronizada. Era acordada às 07 horas da manhã por uma sirene. Os viventes se encaminhavam para os banheiros, e de lá, para o refeitório, onde faziam a primei
Dingo ainda era um nerd apaixonado pelas suas coisas. Gibis, livros, o computador com seus códigos de programação. Saía mais de casa, sentia o sangue correndo pelas veias, mas ainda era um eremita boa parte do tempo. E, mesmo em casa, seu único refúgio era o quarto. Muitas vezes saía para não ouvir as cobranças de seu pai e os choros de sua mãe. O ambiente não era tão caseiro quanto gostaria. Invejava em segredo seus amigos, que pareciam ter vidas tão tranquilas e felizes em suas casas (e será que eram tão felizes assim)? A grama do vizinho é mais verde, uma expressão que ele já ouvira. Talvez, mas ele queria mesmo era conferir e experimentar novos gramados
Uma vadia na cama. No quintal, uma cabra. Dentro de casa, um demônio. Em minha face, estampada a imagem do Diabo.4 Assim eu sou, assim eu viverei. Uma irrequieta bruxa entre as brancas paredes desta maldita clínica de recuperação de normalidades. Daqui mais louca sairei. As veias desentupidas, o cérebro a mil, a mil por hora. É assim que eu sou, é assim que eu viverei. E nunca mais venham me dizer o que e como devo fazer.Em seu décimo sétimo dia na clínica, Joanita escreve o fragmento acima, logo após acordar. Seu interesse pela escuridão e pelo mundo natural aumentavam à medida que sua abstinência - de drogas e de sexo - a chamava para reflexões trêmulas. Era difícil. Sem as duas pe&cced
— E essa construção aí, Taco? Sabe o que é?— É uma clínica pra doidos, cara! Malucos, esquizóides, doidões, esquisitos, despiroquetas, gente mais louca que o Taco aqui, mermão!— É, tua próxima casa, talvez…— Teu senso de humor não bate com essa cara fechada. Mas você também podia passar umas férias aí dentro. Eu tenho curiosidade de saber como é esse povo que vive aí.— Hum… eu acho que não. Tenho medo de gente assim. Alheia a tudo isso, Joana entrava em suas últimas semanas na clínica para maluquetes incorrigíveis. Ela não tinha a menor sombra de dúvidas de que sua passagem por ali estava sendo útil. Talvez não deixasse de usar drogas (embora nem sentisse tanta vontade delas), mas aproveitou a estada para ler e escrever muito. Só por isso, já estava valendo. Porém, naquele momento ela não sabia quanto tempo ficaria emparedada. Mais um lindo Natal em família estava chegando, e ela pensava se não era melhor passar a data ali mesmo, na clínica. Novos textos nasciam, e pensava até mesmo em se tornar escritora. Filosofia erótica parecia um bom tema para trabalhar em seus escritos. Mas ainda não escrevera nada nesse estilo. Na noite de seu trigésimo terceiro dia na clínica, sonhara que conversava com um interlocutor oculto, que lhe perguntXXVI Visita
Taco pouco via Dingo no ano de 88, em função da carraspana de Dingo e seu pai. Assim, natural procurar seus outros tantos amigos. O Peita estava solto, e além do Japa e do Padre, tinha mais alguns, que iam e vinham. Havia a Bibi também, como representante feminina mais assídua no grupo, embora outras garotas circulassem pela área. Personagens cuja vida Dingo conhecia muito pouco ainda, criaturas noturnas que eram. Dingo era também uma criatura noturna, mas enjaulada. Não podia sair e mesmo durante o dia era controlado, como pôde perceber quando flagrou alguém o observando por dias seguidos. Não tinha dúvidas de que era a mando de seu pai. Acuado e perseguido, trancou-se em casa para curtir a solidão. Taco, descontrolado, seguia nas ruas de pedra do centro da cidade, na calada d
Pegou o cigarro, como num ritual e, quase em transe, o acendeu. Absorveu lentamente.— Hum… ah, que sensação reconfortante… isso foi o pior na clínica, sabia? O resto a gente se acostuma… tinha dias que eu achava que ia pirar. Tudo faz falta, mas de repente você percebe que quase nada faz falta de verdade. A gente vicia em muita coisa inútil. Taí algo que aprendi.— Tá sabendo que o Tropicaliente fechou?— Como assim, fechou?— É, deu polícia lá e fecharam o bar.— Puta merda, e agora…?