—Kayra, a neve baixou. Estou indo embora.Digo, caminhando com passos firmes em direção à casa, tentando não demonstrar a torrente de emoções que me consome.—Agora? Mas você disse que ia ficar.Entramos na sala, onde Okan está sentado ao lado do pai. Eles conversam em turco, as palavras fluindo entre eles como um laço ancestral que me exclui por completo.—Sim, como viu, o gelo se foi. Não há perigo algum de eu ir. — Digo para ela, a voz soando resoluta, ainda que dentro de mim tudo esteja em frangalhos.Okan interrompe a conversa, levantando os olhos em minha direção. Seu olhar desliza por meu rosto, avaliando-o com uma expressão indecifrável.—Você não ficará até amanhã? — pergunta ele.—Não. — Respondo, a garganta apertada. Tento soar indiferente, mas minha voz trai um pouco da mágoa que transborda em mim. — Ah, e parabéns pelo seu noivado. Kayra me contou. Disse que Sila é uma pessoa maravilhosa e será uma ótima esposa.Seus olhos brilham com um entendimento que confirma minhas s
Kayra meneia a cabeça e ri com deboche.—Outra cultura? Nunca! Meu pai não permitiria. Já teve mesclas e não deu certo. Acabou em separação. Por isso ele nos fez prometer que nos casaremos com pessoas que seguem nossos costumes.Ela fala com tanto orgulho que chega a me enojar. A doce garota se transforma diante de mim, uma defensora feroz das tradições familiares.—E você acha que ele está feliz com essa situação? — Pergunto, a voz mais baixa, como se tentasse arrancar a verdade.Kayra dá de ombros, indiferente.—Não! Realmente ele parece desconfortável com isso. Ele estava acostumado a vida regrada de mulheres. Saídas clandestinas, casos. É por isso que ele está infeliz. Acabou isso! Ele vai criar raízes e agora a comidinha será caseira. Mas isso passa. Já estava na hora de ele tomar jeito.As palavras dela me atingem como uma facada. Sinto-me uma idiota, uma peça descartável na vida de Okan. Claro que sou mais uma. Claro que o que tivemos não significou nada para ele. Não me engano
EmilySaio do quarto puxando minha mala de rodinhas, com o coração pesado. Por fora, meu rosto está tranquilo, mas por dentro estou despedaçada. Na sala, dou de cara com Okan, sentado em frente à lareira, um copo de uísque na mão.— E papai? — Kayra pergunta a ele.— Foi se deitar.— Não é cedo para beber?— É cedo, mas me deu vontade.Os olhos de Okan encontram os meus. Há algo neles, uma mistura de angústia e cansaço, mas tudo que consigo sentir é minha própria raiva, ardente e sufocante. É maior que a dor, maior que a decepção. Ele me traiu de todas as formas possíveis, e eu preciso me proteger. Ergo o queixo, alimentando meu orgulho ferido.— Bem, vou indo. — Minha voz soa firme, mas por dentro estou desesperada para ir embora, fechar esse capítulo da minha vida e nunca mais olhar para trás.Abraço Kayra com força.— Obrigada por tudo, pela sua amizade, sua hospitalidade.Ela sorri levemente, sem perceber o turbilhão em mim.— Foi um prazer tê-la conosco.Quando nos afastamos, olh
EmilyMais tarde, na sala com Kayra, consigo rir de um programa humorístico, mas sei que meu riso é mais nervoso do que genuíno. As cenas na tela parecem distantes, desconectadas do peso que carrego no peito. Minha mente está presa à ideia da conversa que preciso ter com Okan. O que ele ainda quer comigo? Por que se importa em esclarecer algo, sabendo que está comprometido? Agora que entendi a verdadeira natureza de seu noivado, minha apreensão é ainda maior. Cada minuto que passa torna o confronto inevitável.Quando o programa acaba, lanço um olhar discreto ao relógio. Dez horas.— Vou me deitar. — Digo, sentindo o coração martelar desordenado no peito.Kayra boceja e se alonga preguiçosamente.— Então vamos. A cama quentinha está me chamando também.Caminhamos juntas pelo corredor, e noto que a porta aberta que vira antes está agora fechada. Um desconforto cresce em mim, como se algo me alertasse. Respiro fundo, afastando o pensamento. Entro no meu quarto, acendo a luz e fecho a por
Eu o olho, em completo silêncio, enquanto meu coração pulsa com um misto de emoções. Okan me observa como se pudesse enxergar minha alma: o desapontamento esmagador, a dor lancinante, e o emaranhado de sentimentos que nutro por ele. Sinto como se cada escolha minha me puxasse para um abismo. O peso das minhas decisões recai sobre mim com uma intensidade quase insuportável. Como posso esperar que alguém confie em mim, se nem eu mesma consigo?Se ele realmente gostar de mim, vai desfazer o noivado. Ele precisa escolher. Essa decisão não é minha para tomar!— Não! A resposta é não. Quer me conhecer melhor, como diz? Termine com sua noiva e me procure.Ele balança a cabeça, desapontado, e seus olhos brilham com algo entre dor e cansaço.— Não posso fazer isso, Emily. O que me pede é impossível. Se eu te assumir agora, meu pai não entenderá. Nos conhecemos muito pouco. Eu estaria lutando por algo que nem sei se vai dar certo.— Tudo bem, concordo que não nos conhecemos muito. Mas você acha
No dia seguinte, o rosto abatido de Okan diz tudo: ele não teve uma boa noite de sono. E eu também não. Passei horas revirando na cama, revivendo os últimos acontecimentos desde o momento em que o conheci.— Seu carro está pronto. — Ele declara com o semblante frio, uma máscara perfeita que não deixa transparecer nada além de neutralidade.Kayra sorri, um sorriso caloroso que tenta, em vão, aliviar o ambiente.— Eu não disse que ele entendia de carros?Aceno de leve, incapaz de confiar na minha própria voz. Kayra se vira para mim, me abraça com força, e eu sinto sua preocupação em cada movimento.— Quando chegar em casa, me liga.Esforço-me para abrir um sorriso que parece mais falso do que gostaria.— Claro.Okan se aproxima, o olhar duro e desgostoso cravado em mim. Antes que eu possa dizer qualquer coisa, ele pega minha mala e segue em direção ao carro. Meu coração pesa, mas meus pés se recusam a seguir de imediato. Corro as mãos no casaco, num gesto nervoso, e me viro para o senho
Mamãe entra no meu quarto sem bater. Sua expressão é um misto de preocupação e determinação.— O que você tem, Emily? Se abra, vamos! — diz, a voz firme, mas embargada de afeto. — Cheguei te contando sobre minha viagem, mas você me olhou como um zumbi, o olhar perdido, está sempre tão longe. Ontem foi se deitar cedo e agora rejeitou o convite da Carol para sair. E tenho reparado que anda sem fome. Vamos! Desembucha! Você nunca foi de me esconder as coisas. Você sempre se abriu com sua mãe. Não é agora que começará a me esconder as coisas, não é?Sento-me melhor na cama, ajeitando o travesseiro atrás de mim. O desânimo pesa sobre meu peito como uma âncora, e um longo suspiro escapa antes que eu fale:— Eu conheci uma pessoa.Ela estreita os olhos, me estudando como quem busca decifrar um enigma.— Conheceu uma pessoa? Na casa de Kayra? Mas eles não são turcos? Não me diga que ficou ligada em algum turco?— Sim, no irmão dela.— No irmão dela? — questiona, os olhos arregalados, a incred
EmilyUm mês sem Okan. Tenho me esforçado para encarar tudo de forma melhor. Talvez eu simplesmente esteja exausta de sentir pena de mim mesma. Entendi que posso sobreviver sem ele, embora o vazio deixado por sua ausência pareça ter criado raízes profundas dentro de mim. Tornei-me forte o suficiente para suportá-lo, mas ele ainda está lá, constante, como uma sombra que me acompanha.Tenho preenchido meu tempo com o trabalho e a universidade, tentando sufocar as memórias que insistem em emergir. Durante os intervalos, converso com Kayra, mas ela, ultimamente, não tem me feito bem. Sua presença traz à tona lembranças de tudo, como o dia em que ela tocou no assunto: Okan.A animada Kayra comentou que seu irmão finalmente “tomou jeito”, que está mais presente em casa e vê Sila todo final de semana. Suas palavras foram como um golpe certeiro, desferido diretamente no meu coração. Saber que ele segue em frente, vivendo sua vida sem olhar para trás, enquanto eu atravesso um deserto árido, me