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Prólogo
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“Não conseguia parar de pensar em como devia ser o cotidiano dele. Sabia que isso se dava porque ele exalava poder e notoriedade feito feromônio, e porque o gosto dela por filmes românticos da década de noventa lhe despertavam fascínio por ternos de caimento perfeito e ares de mistério a ser investigado. Heiler possuía aquele fator peculiar, que deixava os outros se perguntando ‘como será que é ser esse cara?’.”
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Capítulo 1
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Ocorreu-lhe que conseguiria amá-lo para sempre, reconhecia em si grande tolerância a dor. O que não suportaria, no entanto, seria conviver para sempre com uma decisão tão burra.
— Rebecca Chase, pelo amor de Deus! — Ash urgiu, impaciente.
Ela respirou fundo e bloqueou a tela do seu telefone, na qual vinha espiando o dia todo, sempre que um instante de distração parecia passar despercebido pelos demais.
Ash, com a mochila aberta no ombro, encarava-a com o cenho franzido, reprovação nos olhos cinzentos e uma mão estendida em sua direção, como se exigisse alguma coisa.
Ela poderia mesmo amar Ashton Smith para sempre. Gostava de como seus cabelos, curtos demais para serem longos e compridos demais para serem curtos, sugeriam cachos que nunca realmente se formavam, salpicados displicentemente sobre a testa e em torno da mandíbula angulosa. Tê-lo por perto fazia com que se sentisse privilegiada, e ela o admirava por lhe causar tal efeito com tão pouco esforço.
— Estou pronta — respondeu, em tom de justificativa.
Ele sacudiu os dedos como se fosse insistir “me deixe segurar sua mão, meu amor”:
— Me passe a porra do taser. Já é a terceira vez que peço, cacete!
— Ah… desculpe. — Voltou a atenção ao momento presente. Esquadrinhou a mesa diante de si, abarrotada de itens corriqueiros: algemas, rolos de silver tape, garrafa de clorofórmio, uma 9mm… — Não vamos precisar do taser.
— É melhor prevenir do que remediar — argumentou.
Ash se sentia nu sem a possibilidade de eletrocutar seus problemas a um estado inconsciente. Nada surpreendente, uma vez que ele já parara atrás das grades duas vezes por falta de uma eficiente arma não letal a qual pudesse recorrer numa ocasião desfavorável. Rebecca preferia, é claro, que ele ficasse desarmado dessa vez; não confiava em seu temperamento. Mesmo assim, obedeceu, passou-lhe o taser.
Timberly, sua colega de quarto, permanecia de guarda na janela do galpão vazio, binóculos nos olhos e um boné esportivo cobrindo a cabeça raspada. Rebecca pensou em pedir que ela saísse dali, considerando que, grande como era, seria facilmente avistada mesmo pelo mais alheio dos transeuntes.
Como se sentisse o olhar de Rebecca em si, Timber se virou e declarou:
— A hora é esta. Limpem o galpão e saiam ao meu sinal. Vou esperar no furgão.
— Sim, senhora! — respondeu Stain, antes de inspirar uma carreira de pó do outro lado do recinto. Deu mais uma longa fungada, tapando uma das narinas com o indicador; e então, soltando o ar, deu um tapinha na furadeira mecânica que descansava sobre o balcão. — A princesa aqui já está no esquema.
Ash apoiou a mochila no chão, verificou seu conteúdo uma última vez e fechou o zíper.
A luz fraca do único poste da rua adentrou o galpão tímida e momentaneamente quando Timber abriu a porta e saiu.
Rebecca verificou sua aparência na tela do telefone mais uma vez. Estava irreconhecível, transformada numa loira californiana artificialmente bronzeada. Seus proeminentes olhos bem redondos pareciam pequenos com a linha d’água pintada de preto e o corretivo carregado sobre as pálpebras. Era outra pessoa com lentes azuis nas pupilas castanhas e um contorno na boca que transformava seus lábios já carnudos em verdadeiros airbags.
Sacou do bolso, mais uma vez, seu lápis de olho e se dedicou a desenhar mais alguns fios baby hair sob a peruca de cabelo humano, longa e ondulada. Ela seria a única dentre os quatro que exporia o rosto.
Era um tanto terapêutico se pintar daquela forma, não por vaidade, mas pela natureza quase artística de sua função no grupo. Posso me tornar artista plástica, pensou. Na verdade, todo dia pensava em se tornar algo novo. Qualquer coisa diferente daquilo que a havia levado a Winterfelt, pouco mais de um ano e meio atrás. Pisara na terra da liberdade com um objetivo muito peculiar em mente, e trabalharia cuidando de crianças pequenas enquanto se estabeleceria. Seus planos mudaram ao menos uma dúzia de vezes desde então.
— Puta que pariu! — exclamou Ash, puxando-a carinhosamente e virando-a em sua direção. — Você fica tão gostosa vestida assim. — Estalou-lhe um beijo no rosto.
O coração de Rebecca saltou no peito, e ela não soube identificar se era a vontade de morder com lascívia e paixão aquele seu queixo esculpido, ou o completo horror perante a concepção de que as mãos de Ash não deveriam mais se encaixar tão confortavelmente ao redor do quadril dela. Hesitou. Ele percebeu.
— O que foi? — Seu hálito era de goma de nicotina.
Rebecca não podia ter essa conversa agora. Por isso, sacudiu a cabeça e forçou um sorriso.
— Não é nada.
A expressão afável no rosto do homem se desfez.
— Sabe que não consegue mentir para mim.
Isso provocou um calafrio na espinha de Rebecca. Ninguém a amedrontava tanto quanto ele. Era como uma espécie de encantamento que se recusava a ser quebrado.
— Tim já está a postos. Temos que nos apressar. — Evitou seus olhos e o afastou, simulando concentrar-se na missão.
— Espere aí! — Segurou seu braço com força. — O que está escondendo? Olhe para mim. Olhe para mim, droga!
Ela não resistiu ao comando, e seu olhar cruzou com o dele. O que ela mais temia, então, aconteceu. Ash foi capaz de ver através do disfarce — não da maquiagem, mas de sua fachada, a máscara mais pesada que um elmo de ferro, a caracterização de alguém que ainda suportaria aquela montanha-russa de emoções; o descontrole, seguido pelos pedidos de desculpa, a obsessão, a ternura, a violência, a paixão, a adoração, o desprezo…
— Este não é o momento — determinou, firme.
Ele trincou os dentes.
— Está bem, então… — Soltou-a e pegou a mochila no chão. — Mas quando será o melhor momento? Quando eu estiver caindo em mais uma das suas dissimulações?
Stain, metendo a furadeira dentro da bolsa, interveio:
— Vá com calma, cara!
— É entre mim e ela, parceiro — ameaçou.
Stain, esquálido como era, não confrontaria a versão irritada de Ash.
— Ashton, só não estou me sentindo bem agora, okay? — desculpou-se Rebecca. — Podemos conversar com calma depois?
Ele soltou uma risada amarga.
— Como devo me sentir até lá, sabendo que anda tramando alguma coisa pelas minhas costas?
— Tramando…?
— Ainda é por causa daquele cara? — Agarrou-a pelas bochechas num movimento brusco e explosivo. — Olhe nos meus olhos, Rebecca, e me diga que não está me traindo de novo.
Rebecca não sabia qual tal “cara” era alvo de seu ciúme dessa vez. Podia ser qualquer um. Um sujeito no caixa do banco que lhe desejava um bom-dia simpático, um velho na entrada de um bar que lhe assobiava enquanto ela andava pela calçada… Pouco importava quem era “o outro” que assombrava os delírios de Ash. O que importava era que logo não haveria ameaça alguma àquilo que ele não mais teria.
— Isso tem que parar — murmurou Rebecca, um tanto contraída, mas resoluta.
— É sempre assim, não é? — cuspiu, com uma carranca de repulsa. — Você é uma piranha ingrata mesmo.
A ofensa adicionou uma faísca ao medo inflamável. Num ímpeto, Rebecca o empurrou pelo peito, fazendo com que ele perdesse brevemente o equilíbrio.
— Quer saber qual é o problema? Esse é o problema. Você é o problema! — gritou. Quantas vezes já havia passado por essa exata situação? Quantas vezes teria que passar até que o martírio acabasse? — Age como se eu fosse uma propriedade sua. Isso é… nojento! Você é nojento!
Devia ter imaginado que a mão de Ashton avançaria impiedosa contra seu rosto, mas não conseguiria impedi-la, de qualquer forma. Calou-se, então, depois da agressão, dando ao homem exatamente o que ele queria.
Um silêncio paralisante tomou conta do galpão. Stain deu um passo indignado à frente, mas petrificou-se diante do olhar de Medusa que Ash lhe lançou. Após um aceno de cabeça, colocando-se em seu devido lugar, Stain pegou a bolsa com a furadeira e saiu do galpão, concedendo privacidade aos dois e se mantendo longe de encrenca.
Rebecca engoliu. Engoliu em seco, engoliu as lágrimas, o caroço na garganta, a fúria, o terror, a humilhação, o orgulho. Ash, passando a mão pelos cabelos escuros numa tentativa de se acalmar, respirou profundamente.
Encarou-a com dó. E ela engoliu. Estalou a língua, frustrado com o que acabara de fazer. E ela engoliu. Afagou com cuidado o ombro de Rebecca. Ela estremeceu e engoliu.
Agora vinha a culpa…
— Me desculpe… — … Mas também a completa ausência de culpa. — Becs, me desculpe. Eu detesto quando você me faz perder a cabeça, você sabe. Olha… — Levou o rosto bem para perto do dela. A respiração quente dele se misturando com o ardor do golpe. — Eu te amo. Podemos conversar depois, sim. Eu te amo, entende? — Beijou sua boca. Era melhor que ela retribuísse enquanto ele a tratava com carinho, mas estava congelada. Ele alisou a peruca na altura de seu couro cabeludo, feito um cafuné. — Você é linda, Becs. De qualquer jeito. Eu te amo.
E esperou. Mas ela não agradeceu o elogio nem o elogiou de volta. Apenas engoliu.
Ashton pareceu se dar conta de que precisaria de mais do que meia dúzia de palavras para enfeitiçá-la, portanto concordou em deixar as reparações para outra hora. Direcionou-se à mesa, posicionou dentro da bolsa de equipamentos reserva tudo o que sobrava. Terminou bem quando o aplicativo no celular dos dois bipou — era o sinal de Timber.
Ash deu mais um beijo singelo no rosto de Rebecca.
— Vamos buscar nosso dinheiro. — Virou as costas e abriu a porta para sair.
Rebecca viu a fachada da joalheria, de relance, antes que a porta se fechasse outra vez, deixando-a sozinha.
É a última vez, pensou. O último assalto, o último trabalho do qual participaria. E então estaria livre. Livre daquela vida de crimes, do remorso, da sua própria consciência e da saudade de casa. Mas também livre de Ashton.
Poderia amá-lo para sempre, pois havia nele um lado heroico e protetor que sempre a relembrava do tanto que ela lhe devia. E era justamente por amá-lo — embora também o odiasse na mesma medida — que ela garantiria que essa também fosse a última vez para Ash. E de um modo que ele jamais teria outra chance de pedir desculpas para ninguém.
Della Dinastia era uma pequena joalheria de família, frequentada por arrivistas sociais e esposas troféus. Um par de irmãos ambiciosos pertenciam à segunda geração de responsáveis por conduzir o negócio, e eram tão bons vendedores quanto poderiam ser garimpeiros. Investiam pesado em publicidade e na ascensão do nome da loja nas mídias sociais, porém não tanto em segurança ou na originalidade das peças. Se fossem mais cuidadosos, não permaneceriam abertos após o horário de funcionamento dos pequenos prédios de escritórios ao redor, e certamente já teriam mudado de endereço — daquela rua afastada do centro para, quem sabe, um shopping center. Negociavam com a elegância pobre de quem quebrava pedras em busca de pepitas, mas as obtinham, afinal; eram mais talentosos fazendo dinheiro do que colares de pérolas ou an&ea
O antiquário se chamava The GoldFather. Rebecca nunca soube se se tratava apenas de um trocadilho com o título de um dos filmes favoritos de seu corretor de contratos (algo do que não duvidava, considerando que o ego de Richard “Dick” Push só não era maior do que seu talento para cafonices) ou se o objetivo era justamente atrair o mínimo de consumidores para sua lojinha de fachada brega, estampada com um adesivo gigante que ilustrava um peixinho dourado em posição de mafioso, numa caricatura malfeita de Marlon Brando — o letreiro numa fonte dura, laranja e sem serifa.Situava-se num dos bairros mais pobres da cidade e era cercado por igrejas, fábricas e estacionamentos. Durante o caminho até ali, Rebecca trocara apenas algumas poucas palavras com os demais.O portão de arame já esperava aberto; Timber contornou o antiquário pelo gramado descuidado e estacionou n
Ashton Smith tinha algo que Rebecca nunca encontrara em nenhum outro homem. Não era apenas físico. Era a maneira que ele a envolvia em seus braços fortes e fazia com que se sentisse segura, como se nada no mundo pudesse atingi-la, como se os momentos em seu abraço fossem os únicos lapsos de realidade em meio a um duradouro pesadelo.Agora que a chuva parara, Rebecca descansava sentada no gramado molhado, com a testa apoiada na cerca de arame. Precisava respirar, ficar sozinha… Às vezes era como se a mera presença dos demais interferisse na sua capacidade de processar as coisas.A vista não era nada bonita. Árvores ressequidas em canteiros cheios de ervas-daninhas, cães de rua. Podia ver o estacionamento a céu aberto, logo antes de um ferro-velho e um pedaço do muro de um antigo cemitério. Aquele buraco para o inferno não permitia nem que Rebecca glamourizasse seus m
Os Heiler podiam ser rastreados até o início do século XVIII, uma humilde família de botânicos que se mudara para os Estados Unidos na segunda onda histórica de emigrantes da Alemanha. Haviam vendido seu trabalho a fim de pagar pela viagem no Atlântico, e, junto com fazendeiros e operários, estabeleceram-se, num primeiro momento, numa colônia na Pensilvânia, em busca das terras oferecidas aos europeus. As linhagens se ramificaram num bem-sucedido esforço por subsistência; ainda que sem muita experiência no cultivo da terra, as mulheres se tornaram responsáveis por manter o legado dos Heiler vivo, dedicando-se ao plantio de ervas medicinais e à obtenção de minério; enquanto isso, os homens se beneficiaram do industrialismo americano, investindo no patrimônio e expandindo seu negócio.Embora muitas famílias tivessem deixado de exercer a pro
Três horas se passaram. Stain deu uma bexiga mal assoprada para uma criança e, quando ela reclamou que queria um crocodilo, respondeu:— Finja que é uma cobra. Não faz diferença. — Todos já estavam exaustos. Quando Rebecca começava a imaginar que teriam mesmo que recorrer ao plano B, o comparsa exclamou: — Ali está ele!— Onde?— À sua direita, Becca, perto da entrada.Rebecca viu, então, o homem que procuravam. Usava um terno verde-besouro, apertado naquele corpo baixo e fino, com uma gravata azul-escuro. Cabelos curtos, pele escura e pasta de couro na mão. Parecia estar vindo direto do trabalho, talvez tivesse trocado o paletó no caminho para não parecer formal demais. Seu nome era David Wright e, segundo o contratante, possuía em seu telefone particular dados referentes à fórmula.— Ótimo. Agor
A expressão de desapontamento no rosto de Dick fez com que a culpa e o medo dentro de Rebecca se transformassem mais uma vez em raiva. Sacodiu a cabeça, com o polegar e o indicador em pinça na ponte do nariz, estalando a língua. O trio não apenas fracassara, como também se humilhara. Ele certamente não lhes daria outra chance como aquela, e isso significava que estavam de volta ao posto de ladrões de galinha.Foi Stain quem ajudou Rebecca a cuidar dos ferimentos, tinha um toque delicado. Disse que sentia muito, que ela havia feito o melhor possível e que era ele quem não conseguira contribuir em nada. Ela não respondeu; sentia que, caso abrisse a boca para consolá-lo ou pedir desculpas, acabaria lembrando-o de que ela estivera com a fórmula. Pelo que imaginava, no calor do momento, a corrente devia ter se agarrado a algum arbusto do jardim e se arrebentado em seu pescoço enquanto
Ao descer do táxi no dia seguinte, Rebecca tentou enxergar os muros dos Heiler com outros olhos. Hoje, seu personagem tinha seu rosto, sua voz e seu nome — não usaria um de seus nomes falsos e sujos em algo que deveria ser insuspeito e rápido. Infelizmente, nada lhe tirava a imagem daquela jovem da cabeça, o som do grito ao pé do seu ouvido.Vai acabar logo, encorajou-se. Só precisaria de alguns minutos sozinha no jardim da casa. Aquela correntinha havia de estar em algum lugar.Entrou pelos enormes portões de ferro negro, onde longas serpentes forjadas se enroscavam até o topo, e caminhou pelo largo caminho de seixos, flanqueado por arbustos de cravos brancos e amarelos. O aroma do jardim era soprado em direção às nuvens de algodão-doce. Ventou mais forte quando Rebecca, mais uma vez fascinada pela visão da romântica mansão alemã, parou um inst
— Muito bem — disse Wilford. — Por que não começamos pelo andar de baixo? — O homem não soava particularmente animado; forçava uma gentileza frígida. Passou pelo batente que levava ao pátio interno. — Desde que a senhorita Martinez se acidentou, Jonathan não vem se sentindo muito motivado.— O senhor Heiler fica fora o dia todo? — perguntou ela.— Com exceção dos domingos — assentiu. — Volta próximo da hora do jantar. Agora… Jonathan deve estar aqui em algum lugar…Ele perscrutou o pátio, tão verdejante quanto Rebecca se lembrava, talvez até mais bonito sob a incidência de um sol tão quente.Ao ouvir seu nome, o garotinho louro saiu de trás de um arbusto e caminhou lentamente na direção dos adultos.— Jonathan! Esteve sentado na grama? — ind