Della Dinastia era uma pequena joalheria de família, frequentada por arrivistas sociais e esposas troféus. Um par de irmãos ambiciosos pertenciam à segunda geração de responsáveis por conduzir o negócio, e eram tão bons vendedores quanto poderiam ser garimpeiros. Investiam pesado em publicidade e na ascensão do nome da loja nas mídias sociais, porém não tanto em segurança ou na originalidade das peças. Se fossem mais cuidadosos, não permaneceriam abertos após o horário de funcionamento dos pequenos prédios de escritórios ao redor, e certamente já teriam mudado de endereço — daquela rua afastada do centro para, quem sabe, um shopping center. Negociavam com a elegância pobre de quem quebrava pedras em busca de pepitas, mas as obtinham, afinal; eram mais talentosos fazendo dinheiro do que colares de pérolas ou anéis de safira.
Por esse motivo, o alvo não eram as joias, mas o cofre.
A rua estava pouco movimentada naquela noite de terça-feira, nuvens carregadas prometiam chuva, o ar tinha cheiro de outono e umidade. Rebecca apertou a alça da maleta com força enquanto estudava a loja.
Frontaria de vidro temperado em estruturas de madeira plástica, com um verniz que lhe concedia aspecto levemente dourado. Rebaixamento diante da porta… e plantas, muitos jarros de plantas. Se não fossem os três andares comerciais de tijolos cinza e sem graça acima, seria um deleite aos olhos.
Ela abriu um botão da blusa social apertada e caminhou para dentro. Uma inspeção rápida foi o bastante para confirmar aquilo que seu corretor de contratos já lhes havia informado: uma única câmera de vigilância, dois seguranças por turno (divisava um à entrada e outro ao fundo).
Havia meia dúzia de compradores, em smokings ou vestidos de tecido caro.
Reparou na decoração: pequenas estatuetas, sacolas de compras, quadros emoldurados mostrando modelos esqueléticas, ventiladores de teto e arandelas. Os balcões com vitrines formavam intrincados corredores, onde se viam gargantilhas, relógios, pulseiras…
Coisas brilhantes, Rebecca pensou. Nunca havia sido o tipo de garota que se importava em ostentar pedras e ouro, mas poderia ser um dia, por que não?
Dirigiu-se direto ao caixa e sorriu para a lojista.
— Greta Van Doren — apresentou-se. — Acredito ter uma reunião com o senhor Bianchi.
A lojista, que não pôde deixar de reparar nos contornos bem-demarcados de Rebecca, assentiu prontamente e pediu um instante enquanto chamava um dos sócios.
Rebecca fingiu se olhar no pequeno espelho de mesa sobre o balcão, enquanto verificava lá fora, do outro lado da calçada, quase totalmente escondida atrás de cercas-vivas, a van na qual os demais aguardavam.
Um homem de meia-idade — com mais marcas de expressão do que se poderia esperar, mas um olhar mais jovial do que muitos adolescentes — deixou o corredor que levava aos fundos e se aproximou.
— Senhorita Van Doren? — exclamou, surpreso com o que via.
— Me chame de Greta. Imagino que tenha sido com o senhor que conversei ao telefone mais cedo.
— Claro! Me chame por “você”. — Tinha o sorriso de quem poderia lhe vender qualquer coisa. — Vamos, me acompanhe. Meu escritório fica por aqui.
Ele se virou e, com sua companhia, começou sua procissão na direção de interesse de Rebecca. Passaram pelo segurança mal-encarado e adentraram uma das duas salas.
A decoração era quase a mesma, papéis de paredes de uma cor entre o carmim e o bege, carpete sóbrio. Havia uma grande quantidade de prateleiras abarrotadas de pastas estilo fichário.
O homem, prestimoso, fingiu puxar a poltrona diante da mesa no centro do recinto, apenas como um sinal de cortesia.
— Obrigada. — Rebecca mantinha a voz doce.
— Não repare na simplicidade. Nosso estabelecimento é modesto, como pode perceber. — Desabotoou o terno azul-claro e se sentou diante dela.
— Penso que posso ajudar com isso. Todo grande negócio um dia começou pequeno.
— Sábias palavras. — Fez que sim. — Ah… bem, eu gostaria de poder lhe oferecer um café, mas a máquina de expresso está quebrada no corredor.
— Não se preocupe. Inclusive, eu não me importaria se já partíssemos ao assunto que me fez entrar em contato. — Olhou ao redor discretamente, identificando as janelas duplas na parede lateral; sabia, pela planta do edifício que seu corretor adquirira de um insider, que a loja era cercada por um beco. Caso fosse possível abrir o portão de ferro por fora, em vez de apenas por dentro, essa parte do plano poderia ter sido pulada. — Você deve estar bastante ocupado. Deve ser final de expediente.
Ele continuou sacudindo a cabeça. Sua atenção vagueava entre o rosto de Rebecca e seu decote. Ótimo! Ela vinha causando uma baita impressão. Isso facilitaria as coisas. Um corpinho bonito podia mesmo abrir muitas portas, mas não tantas quanto geralmente se imagina, e Rebecca sabia bem disso. Muitas vezes tivera que improvisar quando o homem do outro lado da mesa se mostrava pouco atraído ou relutante a baixar a guarda.
— Sinto muito, para quem trabalha mesmo?
— Grimald Group, especialista em segurança — respondeu, colocando sua maleta sobre a mesa. — É do meu conhecimento que suas vitrines ainda não foram equipadas com alarme sem fio contra arrombamento. — Estalou os fechos da maleta, abrindo-os.
Bianchi soltou um meio engasgo constrangido.
— É, veja bem… — entabulou. — Na época dos meus pais, ainda não havia essa tecnologia no mercado e… bem, nunca tivemos que lidar com tentativa de roubo.
— Bairro tranquilo, certo?
Ele deu de ombros.
— Quase um playground.
— Mas, veja. Algo que aprendi ao longo de anos trabalhando com segurança, senhor Bianchi, é que é justamente nesse tipo de estabelecimento que grupos criminosos tendem a se focar. — Perscrutou a mesa; macbook, caneca, caneta, cinzeiro, um pote de gomas coloridas… — Imagine só, distante do centro da cidade, situado entre muros de pedra. Artigos de luxo protegidos por nada além de vidro.
— Temos homens muito competentes. E, é claro, vigilância. — Apontou para o computador diante de si.
Ora, não venha com essa, Rebecca poderia dizer, sabe muito bem que o circuito da câmera é apenas interno.
— Ainda assim, não acha que mais um dispositivo de segurança facilitaria sua próxima negociação com a empresa de seguros?
Ele levantou uma sobrancelha.
— Muito bem. Me mostre o que tem para mim, senhorita Greta.
Rebecca abriu a maleta e tirou de dentro uma coleção de folhetos e documentos.
— Aqui está uma lista dos estabelecimentos com os quais trabalhamos; deve reconhecer algumas de suas concorrentes aí, suponho. Aqui há uma lista dos serviços prestados pela Grimald Group. E aqui… — Dispôs diante dele uma espécie de cópia heliográfica de um sistema eletrônico complexo, com letras pequenas e setas desorientadas que não marcavam coisa alguma. — Está um modelo preciso de como utilizamos os últimos lançamentos de peças eletrônicas no mercado para compor o melhor alarme contra arrombamentos já inventado. Veja, no canto inferior direito, a maneira como o instrumento instalado por trás do vidro se conecta não apenas ao radiocomunicador dos seus seguranças, como também à nossa central de monitoramento.
Bianchi apertou os olhos.
— Desculpe, não sei se acompanho…
Claro que não acompanhava, aquele desenho não havia sido feito para fazer sentido.
Esse era o momento em que Rebecca precisava ser ligeira.
— Um instante, deixe que eu lhe mostre… — Levantou-se apressada da poltrona e contornou a mesa, com o indicador na direção de qualquer parte do papel nas mãos do homem. No caminho, certificou-se de derrubar um dos folders no chão, com o cinzeiro de brinde. — Ah, sinto muito, senhor Bianchi, eu não…!
— Não se preocupe — sorriu e, após empurrar a cadeira um pouco para trás, curvou-se para recolher os objetos.
Rebecca já vinha esperando com ambas as mãos nos bolsos do blazer. Destampou um vidro de triclorometano com a mão direita e desembolsou um lenço de pano com a esquerda.
Ainda com a nuca invisual para cima, o homem não poderia ter se precavido contra o composto de cheiro etílico pressionado contra seu rosto. Rebecca rapidamente puxou um dos braços dele para trás das costas, torcendo-o e paralisando-o. Num último instante de ignorância, ele ainda soltou uma interjeição confusa, mas não demorou muito para perceber que caía num golpe.
Rebecca forçou o corpo de ambos para o chão, de modo que controlasse o impacto e não soasse como um baque muito alto. Precisava colocar os músculos para funcionar, e era nesses momentos que se alegrava por se exercitar regularmente. Ao contrário do que se costumava imaginar, o efeito da substância não era imediato. Rebecca precisou aplicar força por uns bons minutos enquanto evitava que sua vítima se contorcesse demais. Aos poucos, os movimentos dele foram se tornando menos frequentes e lentos.
Neurônios se apagando como luzes de Natal em janeiro…
Até que ficou imóvel.
Rebecca só estava começando. Pôs-se de pé e foi até a porta, espiou no corredor. A outra sala estava vazia, e o segurança que antes estivera nos fundos da loja parecia ter mudado de posição. Ela, então, fechou a porta com cuidado, satisfeita por encontrar a chave na fechadura, e a trancou por dentro.
Ainda arfante, usou seu telefone como comunicador e enviou um sinal sonoro para os demais.
Rápida, avançou até uma das janelas e a abriu, espremeu-se pela armação e alcançou o beco lateral. Olhou ao redor, apenas para se certificar de que a planta lhe mostrara exatamente o que havia ali. Passou por uma caçamba de lixo fechada e se aproximou do portão de ferro. Era grande, escuro e reforçado, do tipo que não teria permitido arrombamento.
Esperou, com o ouvido junto ao metal gelado, controlando sua respiração. Ouviu duas batidas bem baixo e soube que era o momento. Correu o trinco pesado para o lado e escancarou o portão.
— Abre-te, sésamo! — murmurou.
Stain, abraçado com sua bolsa, esperava do lado de fora, meio curvado. Pulou para dentro rapidamente, antes que Rebecca trancasse de volta o portão.
Ela o acompanhou para dentro, passando novamente pela janela.
Quando Stain apoiou a bolsa no chão e se deparou com o homem desmaiado sobre o carpete, fez uma careta:
— Não podia ter limpado sua bagunça, amor? — debochou, com seu sotaque inglês.
— Seja um cavalheiro, sim? — retribuiu Rebecca, sentando-se na cadeira de rodinhas. Beliscou uma das gomas no pote de doces. — Servido?
Stain se esforçava para arrastar o sujeito inconsciente para um canto, de modo que não atrapalhasse seu trabalho.
— Não, cortei o açúcar da minha dieta. Essa merda mata você por dentro, sabia? — alertou. Depois fungou e limpou o canto do nariz, ainda branco de coca.
— Sobra mais para mim. — Jogou outra goma na boca.
Stain colocou as mãos na cintura e soltou o ar após o esforço. Tinha sempre uma aparência engraçada. Era bem magro, de bochechas encovadas e olhos saltados; seus cabelos claros, cheios e encaracolados, eram tão embolados que pareciam uma família de percebes habitante de uma rocha costeira. Vestia gravata frouxa num terno amarrotado e meio largo, com manchas de sangue nas mangas, exatamente a parte em que ele esfregava nariz. Daí vinha seu apelido, Stain — “mancha” em inglês. Rebecca achava uma pena que ele não gostasse de ser chamado pelo nome de batismo: Jerome Johnson. Soava aos ouvidos dela como uma linda aliteração. Bem mais bonito que “Stain”…
Começou a guardar todos os panfletos e infográficos cheios de informações falsas de volta em sua maleta. Não deixaria pista para trás.
Stain analisou a sala. Havia uma estante cheia de joias numa das paredes.
— Della Dinastia, mamma mia! — riu-se. — Adoro essas butiques metidas a chiques, nunca dão muito trabalho…
— E eu “adoro” os gerentes tarados que geralmente estão à frente delas. O cara não parava de olhar para os meus peitos, acredita? Dá até gosto de derrubá-los, quando é assim — satirizou.
Stain estalou os lábios e passou uma palma na outra, como um vilão de desenho animado. Aproximou-se do quadro da parede que, segundo à planta, deveria cobrir o cofre, e então o removeu. Lá estava: concretado, 60x65cm. Os mãos-de-vaca nunca sequer atualizaram o cofre para um sistema digital.
— Já verificou se a chave está no bolso do sujeito? — perguntou Rebecca, ao ver que Stain abria o zíper da bolsa que continha a furadeira mecânica.
— Não sou amador.
— E as gavetas?
— Não está nelas — respondeu, indiferente, enquanto instalava a furadeira no cofre. — Este não é o escritório dele. Ele não aparece em nenhum porta-retrato. Possivelmente também não é sócio majoritário.
Rebecca verificou os porta-retratos para atestar.
— Papai Bianchi tinha um filho favorito, pelo visto.
Stain terminou seu serviço com um “agora esperamos”. O barulho da broca contra o metal soava como um contínuo tinido baixo; não chamaria a atenção de ninguém fora do escritório, mas levaria algum tempo para concluir a perfuração.
Ele, então, começou a passear pela sala, a abrir os mostruários e ensacar as joias que encontrava.
Rebecca acessou o computador, abriu o software da câmera, deletou todas as imagens registradas do dia e desativou a filmagem.
— Já pensou no quanto essa gente gasta apenas para ter uns enfeites bonitos? — comentou Stain.
— Já.
— E tudo o que precisamos fazer é entrar e pegar.
— Não estamos aqui pelas joias. Quem quer que tenha nos contratado exigiu apenas o dinheiro do cofre.
— Então não vai querer um souvenir? — Lançou-lhe um colar. Rebecca o pegou no ar.
Era feito de ouro branco, com arabescos em alto-relevo e uma brilhosa pedra negra lapidada.
— É ônix? — perguntou ela.
— Obsidiana, acho.
Obsidiana…
— É linda…
Lembrou-se de quando era menina. Seu pai costumava convidá-la para todo tipo de jogos. Gostava, particularmente, do gamão. Sempre escolhia as peças pretas. “São minhas preferidas”, alegava, apesar de nunca de fato ter preferido preto a qualquer outra cor.
Seu pai morrera há três anos, de uma doença respiratória que, na época, tornara-se pandemia global. Não importava quantas pedras bonitas, de uma negrura profunda, ela pudesse obter, jamais voltaria a ter o maior tesouro da sua vida.
O que ele pensaria de você agora?, perguntou a si mesma.
Bem, seu pai fora um erudito, poliglota e autodidata. Costumava convencê-la a estudar sobre diversos assuntos com o discurso de que aprender era uma brincadeira. Vivia cercado por enciclopédia, dicionários e livros de gramática. Rebecca sempre sonhou em se tornar tão inteligente quanto ele, apesar de, no fundo, imaginar que isso fosse impossível.
Quando alguém — uma vizinha ou um conhecido — perguntava a ela “o que quer ser quando crescer?”, depois que Rebecca respondia, seu pai sempre adicionava: “ela será tudo o que desejar ser”.
Astronauta, enfermeira, investigadora particular, passeadora de cães. Gostava bastante de química, na verdade. Era muito boa em química. Poderia ser cientista.
Então… respondendo à sua própria pergunta, seu pai pensaria “ela é o que deseja ser”. Nada mais, nada menos.
Exceto que Rebecca não desejava nada daquilo. No último ano, vinha se perguntando se todas as alocuções inspiradoras de seu pai eram baseadas em mentiras. Ela não tinha o direito de desejar nada…
— Eu sabia — falou Stain, fazendo-a voltar para o agora.
— Quê?
— Sabia que iria gostar dessa. É a sua cara.
Rebecca abriu um sorriso triste e pousou a joia sobre a mesa.
— Não é, não — mussitou. — Não tenho cara de nada.
Stain franziu o cenho e se aproximou.
— Como assim, amor? Todo mundo tem cara de alguma coisa. — Sentou-se na poltrona, de pernas cruzadas. — Ou vai me dizer que eu não tenho cara de escória da sociedade?
Rebecca estalou o dedo e apontou para ele.
— Está aí, um argumento difícil de rebater — zombou. — Mas é que… no fim das contas, gente como eu se adapta ao ambiente. Vê só? — Indicou o próprio rosto. — Maquiagem. Aonde quer que eu vá, o que quer que eu faça, serei aquilo que esperam de mim…
O clima pesou, e Stain soltou fôlego.
— Eu gostaria de dizer que sei como se sente, mas não sei se sei. Ninguém nunca espera nada de mim.
Rebecca pegou mais uma goma no pote e a levantou no alto antes de abocanhá-la.
— Um brinde a isso! “Escórias da sociedade”.
Ficaram em silêncio. Era curioso como Rebecca não se sentia incomodada por ficar quieta na presença de Stain. Ele era uma daquela pessoas que, assim que se apresenta, parece que já é seu amigo faz tempo. Nem parecia que ela o conhecia há mais ou menos um ano.
A broca continuava a girar.
Era tranquilo.
Um trovão cortou o céu, e a tão prometida chuva começou a cair, formando minúsculos rios descentes na superfície das janelas.
— Me perdoe — sussurrou Stain, contido.
Rebecca o estudou. Não olhava diretamente para ela, mas para o chão. Parecia envergonhado.
— Pelo quê?
— Por não ter defendido você… sabe, lá no galpão…
Rebecca mordeu o lábio.
— É assustador, não é?
Ele fez que sim, sem precisar perguntar do que especificamente ela falava.
Era assustador fazer a coisa certa, arriscar-se, enfrentar monstros. Era assustador, e Stain sabia, tanto quanto Rebecca.
— Queria poder fazer alguma coisa por… — Ele deu de ombros. Apontou para Rebecca, para a janela, para lugar nenhum. Não sabia como se expressar. — Essa coisa. Sabe? De vocês dois. Queria poder… Queria poder fazer algo.
— Talvez você possa. — Inclinou-se para frente. — Mentiria por mim?
Ele lhe lançou um olhar meio zonzo, sem entender o que ela queria com aquilo, mas simplesmente anuiu.
— Por você, qualquer coisa, amor.
A furadeira parou de trabalhar.
Stain sacudiu a cabeça com os lábios frouxos, feito um pato doente, e se levantou. Deu uns tapinhas no próprio rosto e removeu a furadeira.
Quando abriu o cofre arrombado, teve uma surpresa desagradável.
Rebecca se pôs de pé para espiar.
— Cadê o dinheiro? — perguntou ela.
Vazio! O cofre estava vazio.
Quer dizer, quase vazio. Havia apenas um envelope branco.
Stain pegou o envelope e o abriu.
— É um contrato assinado — revelou. — Talvez valha alguma coisa para esses caras… — Apontou para o homem desmaiado. — Mas não acho que valha grana.
Rebecca bufou. Droga! Já estava tão a fim de ir embora…
Mas, pensando bem, talvez isso lhe fosse útil.
Sacou seu telefone e enviou uma mensagem de voz:
— Nada no cofre. Não vamos sair de mãos vazias. Plano B. — Voltou-se para Stain. — Trouxe umas toucas?
Menos de dez minutos depois, ouviu-se uma dezena de tiros de rifle, gritos desesperados, vidro se partindo e a voz de Ashton:
— Cara no chão, sem gracinhas, e todo mundo sobrevive!
Rebecca odiava quando tinham que partir para a violência…
Devidamente mascarados, cobertos por balaclava, destrancaram a porta e saíram.
Os guardas jaziam mortos, de costas para o chão e com ferimentos de bala no peito. Ashton lançou uma piscadela para Rebecca e lhe jogou um rolo de silver tape.
Agilidade!
Os poucos compradores e lojistas permaneciam de bruços, gritando “pelo amor de Deus” que os deixassem viver, e chorando, e alegando ter família ou conhecer gente importante. Nada novo.
Stain começou a quebrar as vitrines e embolsar as joias.
Rebecca se ajoelhou e se pôs a atar as mãos dos reféns atrás das costas. Talvez não fosse uma medida necessária, mas era melhor não dar chance ao azar. Civil incapacitado não alertava a polícia — e permanecia vivo, o que era bom para todos.
— Não esqueça a caixa registradora! — Rebecca lembrou a Stain.
Ashton, apontando o rifle para a cabeça dos reféns, continuava:
— Alguém a fim de brincar de tiro ao alvo? — E gargalhava.
Rebecca quis m****r que ele calasse a boca; ninguém demonstrava resistência, já estavam apavorados o bastante. Entendia, de todo modo, o quanto aquilo era divertido para ele. Podia ver por seu pescoço exposto, vermelho de adrenalina, o quanto se sentia poderoso. Ela costumava achar sua voz grave e autoritária atraente; ultimamente, no entanto, ele vinha parecendo meio ridículo botando toda aquela banca.
Tudo estava ensacado em menos de quinze minutos.
Cada um se apropriava de uma bolsa e corria para fora, na direção do furgão de traseiras abertas. E então retornavam. Repetiram o processo duas vezes.
A joalheria estava vazia, enfim. Esculturas quebradas no chão, vidro espatifado… e o barulho da tempestade que abafava o som da atividade criminosa.
Hora de ir.
Contudo, um passo antes de chegar ao furgão — que Timber já manobrara na direção do fim da rua —, Rebecca parou e segurou Ash pela jaqueta.
— Esqueci uma das bolsas!
— Quê? — gritou de volta.
— No escritório dos fundos. Havia joias lá. Há uma bolsa faltando!
Ashton se virou e correu para dentro.
Rebecca subiu no furgão e se sentou.
Stain, próximo a ela, parecia perdido.
— Estão todas aqui — disse. — Por que mandou que ele voltasse?
Ela abriu a bolsa de equipamentos reserva, pegou a 9mm e verificou se estava devidamente carregada.
— Minta por mim — pediu. Ashton finalmente reapareceu na fachada, de mãos vazias, berrando desorientado e correndo de volta ao carro. Rebecca se voltou para a piloto de fuga: — Timberly, acelere!
A mulher era a mais confusa de todos, embora a total dimensão do que estava para acontecer fosse de conhecimento apenas de Rebecca. Há uns cinco minutos, enquanto os rapazes levavam suas respectivas bolsas até o automóvel, ela chamara a polícia.
Levantou a 9mm. Pensou: você fica lindo na chuva. Fica lindo de qualquer jeito. E disparou. Acertou precisamente o joelho de Ashton.
O homem foi ao chão, urrando de dor e surpresa.
Ao ouvir, bem longe, os primeiros indícios de sirene, Stain bateu com força no encosto do banco do motorista.
— Timber, vamos agora!
Timberly não hesitou uma segunda vez. Pisou no acelerador e partiu, enquanto Rebecca ajudava Stain a fechar as portas de trás.
Tiveram um último vislumbre de um Ashton incapaz de fugir, paralisado no asfalto, enquanto as viaturas se aproximavam para buscá-lo.
O antiquário se chamava The GoldFather. Rebecca nunca soube se se tratava apenas de um trocadilho com o título de um dos filmes favoritos de seu corretor de contratos (algo do que não duvidava, considerando que o ego de Richard “Dick” Push só não era maior do que seu talento para cafonices) ou se o objetivo era justamente atrair o mínimo de consumidores para sua lojinha de fachada brega, estampada com um adesivo gigante que ilustrava um peixinho dourado em posição de mafioso, numa caricatura malfeita de Marlon Brando — o letreiro numa fonte dura, laranja e sem serifa.Situava-se num dos bairros mais pobres da cidade e era cercado por igrejas, fábricas e estacionamentos. Durante o caminho até ali, Rebecca trocara apenas algumas poucas palavras com os demais.O portão de arame já esperava aberto; Timber contornou o antiquário pelo gramado descuidado e estacionou n
Ashton Smith tinha algo que Rebecca nunca encontrara em nenhum outro homem. Não era apenas físico. Era a maneira que ele a envolvia em seus braços fortes e fazia com que se sentisse segura, como se nada no mundo pudesse atingi-la, como se os momentos em seu abraço fossem os únicos lapsos de realidade em meio a um duradouro pesadelo.Agora que a chuva parara, Rebecca descansava sentada no gramado molhado, com a testa apoiada na cerca de arame. Precisava respirar, ficar sozinha… Às vezes era como se a mera presença dos demais interferisse na sua capacidade de processar as coisas.A vista não era nada bonita. Árvores ressequidas em canteiros cheios de ervas-daninhas, cães de rua. Podia ver o estacionamento a céu aberto, logo antes de um ferro-velho e um pedaço do muro de um antigo cemitério. Aquele buraco para o inferno não permitia nem que Rebecca glamourizasse seus m
Os Heiler podiam ser rastreados até o início do século XVIII, uma humilde família de botânicos que se mudara para os Estados Unidos na segunda onda histórica de emigrantes da Alemanha. Haviam vendido seu trabalho a fim de pagar pela viagem no Atlântico, e, junto com fazendeiros e operários, estabeleceram-se, num primeiro momento, numa colônia na Pensilvânia, em busca das terras oferecidas aos europeus. As linhagens se ramificaram num bem-sucedido esforço por subsistência; ainda que sem muita experiência no cultivo da terra, as mulheres se tornaram responsáveis por manter o legado dos Heiler vivo, dedicando-se ao plantio de ervas medicinais e à obtenção de minério; enquanto isso, os homens se beneficiaram do industrialismo americano, investindo no patrimônio e expandindo seu negócio.Embora muitas famílias tivessem deixado de exercer a pro
Três horas se passaram. Stain deu uma bexiga mal assoprada para uma criança e, quando ela reclamou que queria um crocodilo, respondeu:— Finja que é uma cobra. Não faz diferença. — Todos já estavam exaustos. Quando Rebecca começava a imaginar que teriam mesmo que recorrer ao plano B, o comparsa exclamou: — Ali está ele!— Onde?— À sua direita, Becca, perto da entrada.Rebecca viu, então, o homem que procuravam. Usava um terno verde-besouro, apertado naquele corpo baixo e fino, com uma gravata azul-escuro. Cabelos curtos, pele escura e pasta de couro na mão. Parecia estar vindo direto do trabalho, talvez tivesse trocado o paletó no caminho para não parecer formal demais. Seu nome era David Wright e, segundo o contratante, possuía em seu telefone particular dados referentes à fórmula.— Ótimo. Agor
A expressão de desapontamento no rosto de Dick fez com que a culpa e o medo dentro de Rebecca se transformassem mais uma vez em raiva. Sacodiu a cabeça, com o polegar e o indicador em pinça na ponte do nariz, estalando a língua. O trio não apenas fracassara, como também se humilhara. Ele certamente não lhes daria outra chance como aquela, e isso significava que estavam de volta ao posto de ladrões de galinha.Foi Stain quem ajudou Rebecca a cuidar dos ferimentos, tinha um toque delicado. Disse que sentia muito, que ela havia feito o melhor possível e que era ele quem não conseguira contribuir em nada. Ela não respondeu; sentia que, caso abrisse a boca para consolá-lo ou pedir desculpas, acabaria lembrando-o de que ela estivera com a fórmula. Pelo que imaginava, no calor do momento, a corrente devia ter se agarrado a algum arbusto do jardim e se arrebentado em seu pescoço enquanto
Ao descer do táxi no dia seguinte, Rebecca tentou enxergar os muros dos Heiler com outros olhos. Hoje, seu personagem tinha seu rosto, sua voz e seu nome — não usaria um de seus nomes falsos e sujos em algo que deveria ser insuspeito e rápido. Infelizmente, nada lhe tirava a imagem daquela jovem da cabeça, o som do grito ao pé do seu ouvido.Vai acabar logo, encorajou-se. Só precisaria de alguns minutos sozinha no jardim da casa. Aquela correntinha havia de estar em algum lugar.Entrou pelos enormes portões de ferro negro, onde longas serpentes forjadas se enroscavam até o topo, e caminhou pelo largo caminho de seixos, flanqueado por arbustos de cravos brancos e amarelos. O aroma do jardim era soprado em direção às nuvens de algodão-doce. Ventou mais forte quando Rebecca, mais uma vez fascinada pela visão da romântica mansão alemã, parou um inst
— Muito bem — disse Wilford. — Por que não começamos pelo andar de baixo? — O homem não soava particularmente animado; forçava uma gentileza frígida. Passou pelo batente que levava ao pátio interno. — Desde que a senhorita Martinez se acidentou, Jonathan não vem se sentindo muito motivado.— O senhor Heiler fica fora o dia todo? — perguntou ela.— Com exceção dos domingos — assentiu. — Volta próximo da hora do jantar. Agora… Jonathan deve estar aqui em algum lugar…Ele perscrutou o pátio, tão verdejante quanto Rebecca se lembrava, talvez até mais bonito sob a incidência de um sol tão quente.Ao ouvir seu nome, o garotinho louro saiu de trás de um arbusto e caminhou lentamente na direção dos adultos.— Jonathan! Esteve sentado na grama? — ind
O gazebo respondia à chuva torrencial com escândalo, remetendo Rebecca a uma noite de verão, exceto que torturada por um tipo de frio que precedia o inverno. Não se surpreendera ao ser direcionada ao quarto de hóspedes em vez de a uma das dependências de empregados, haja vista que sua estadia na mansão seria temporária — se tudo saísse conforme o planejado, e de acordo com as últimas notícias acerca do estado de saúde estagnado de Jessica, seria ainda mais curto do que seu novo empregador supunha. O quarto de hóspedes, portanto, era mesmo mais adequado; o aposento da babá seria mantido intocado até o retorno da jovem, suspeitava.Agora, esperava seu celular tomar um pouco de carga, conectado à tomada.Jantara na cama, uma vez que, por costume da família, a última refeição nunca era compartilhada na sala de jantar; impressionou-