Refeitos um para o outro
Refeitos um para o outro
Por: Miih Roque
Prólogo

JUDITE D'MATOS 

A vibração frenética dos meus pés se espalhava pelo corpo inteiro, forçando o movimento do vinho em minha taça. Eram poucas horas de madrugada quando tristeza, preocupação e um pouco de dor abdominal me amparavam. Meu estado deplorável, minha visão embaçada pelas lágrimas e os poros excitados pelo frio, sem dúvida alguma me levaram de volta às noites que pensei ter superado. 

Naquele momento, através da enorme janela da sala, assisti a escuridão se dissolver no lento amanhecer, e vasculhei por algum rastro do retorno de Souza, que me deixara naquele estado depois de me ter plantado numa espera quase infinita. 

São quase quatro horas, o que deve ter acontecido?, perguntava para mim mesma entre goles de vinho e soluços de choro. 

Minha barriga globulosa, encapada pela beleza de um cetim vermelho-sangue, recebia carícias que esperei que fossem acalmar a dor, mas me enganei. A dor evoluira desde  as 20 horas do dia anterior, sexta-feira, e entre tantas falas íntimas, pedi aos céus que nada fosse tão sério a ponto de resultar em alguma complicação. 

A mistura de sensações e sentimentos, fundidos com um medo absurdo dos tempos seguintes, me faziam atribuir obesidade aos goles que dava do vinho. Me desdobrei em prantos que resultaram em leves espasmos. Ao me aproximar mais uma vez da mesinha de centro para espiar as horas no meu telefone, pude ver meu reflexo. Estava de dar dó. Minha maquiagem borrada marcava minha cara de tristeza, a gola vermelha-sangue do meu vestido estava amarrotada. Os olhos vermelhos, a feição murcha... Olhando para baixo, vi meus pés descalços; passando a língua pelas doces gotículas de tinto, senti meus lábios doloridos porque os mordisquei quando pensei no pior.

— Jesus! — soltei depois que um arroto rasgou minha garganta fora. 

Um suspiro se foi, solto com a esperança de criar um alívio no incômodo em minha barriga. Nada...

Esvaziei a taça, sequei os olhos e voltei a pegar no telefone para ligar para ele.  Deslizei o dedo pela tela até ligar para seu número, mas um estrondo no portão, seguido dos latidos lá fora, ganharam minha atenção. Levei um tempo para processar o que poderia estar a acontecer, até que ganhei coragem para me levantar e ir até a porta, me esforçando para dar os passos certos.  Não conseguia pensar em nenhum motivo plausível que pudesse tê-lo feito se atrasar para o nosso segundo aniversário de casamento.

Souza. 4 horas e malditos minutos, meu marido chutou o portão, fechando-o, e arrastou-se bêbado para onde eu o aguardava com os punhos cerrados e completamente destruída.   Minha garganta azedou quando vi que estava muito bêbado, oque não era comum naqueles dias. Sua camisa estava com uma mancha enorme, estava transpirado e andava como se fossem seus primeiros passos. O cheiro de bebida barata e de traição emanavam intensamente.

— Onde estava? — perguntei num fio,  lamentando a volta da versão deste homem que não via havia mais de 2 anos.

Em resposta, obtive o barulho de seus passos desnorteados no caminho para dentro de casa. Passou por mim e deixou rastro, ao qual segui estonteada e furiosa. Naquele instante, soube exactamente onde e com quem ele esteve, mas precisava ouvir dele.

— Responde!

— Estou aqui. — resmungou e se desleixou no sentar.  

— Onde estava, Souza!? — dei alguns passos para perto de si e engoli a seco.

— Judy! — sua voz arrastava a pouca ciência que sobrara em si —  Eu saí. 

— Você saiu. — a vontade de ofegar crescia — Souza, porquê você sempre volta a ser esse homem desprezível? — as lágrimas vinham novamente.

Se levantou bruscamente e deu dois passos de bêbado para perto, me fazendo proteger minha barriga por instinto maternal. 

— Não quero discutir contigo, hoje. — avisou enquanto desabotoava sua camisa. Me sentei e soprei o ar. 

Era muito esforço para não sentir dor, para não chorar, para não demonstrar tanta embriaguez e para não magoar a única coisa que me importava: meu bebê. Incapaz de proferir outra coisa, repeti: 

— Onde estava, Souza? — minhas entranhas contrairam-se e um arrepio me rasgou a espinha.

Seu olhar e agir eram tão gélidos que até doía. Minha vontade era de sair dali, mas eu queria respostas para a única pergunta que repeti milhares de vezes para o vazio. Seu rosto contraído pela impaciência, começou a falar:

— Olha, amor... — se aproximou descuidado, se baixou e prendeu meu rosto entre suas mãos —...eu sempre volto para ti.— simplesmente disse e seu hálito me enojou. 

Não falei nada. Apenas chorei. 

— Não quero discutir. —  se afastou.

De tantas coisas que sentia, a dor abdominal foi se destacando, desnorteando-me de dentro para fora. Me levantei por um comando cerebral aleatório e me senti super tonta. Os giros do ambiente, difíceis de acompanhar, me deixaram bamba. O álcool corria, o sangue fervia, o coração bombava. Então meu equilíbrio foi perturbado e caí sentada.

Meus pulmões pareciam cada segundo mais estrangulados. Desesperada por ar puro, reuní a força que me sobrava, me levantei de novo e comecei a andar até a porta.

Quando ia abrí-la, uma pontada forte me fez dobrar meus joelhos sobre o chão e gritar. 

A dor atingiu uma maioridade asfixiante. Roguei até sentir cada veia de mim pressionar minha pele. Tinha chegado o momento que temera durante a evolução de minha embriaguez.

—DÓI MUITO! — arrastei as unhas pelo chão enquanto seus dedos sujos e gelados tentavam me consolar. 

Fechei os olhos com toda a força que pude usar, mas quando os abri e olhei para o chão, meus gritos se dissolveram em choro intenso.

— Judy! — ouvi sua voz como um eco distante.

Agarrou meus ombros e levei as minhas mãos trêmulas e doloridas à barriga. A dor era tanta que me fazia pensar que estava entre a vida e a morte.

— VOU MORRER! — o último grito dentre meus lábios secos, antes que eu me deitasse às avessas e observasse a luz da consciência se apagar. 

LIONEL OFIÇO

"Corri como se o pôr-do-sol me tivesse tirado o sentido. Meus pulmões se incendiavam a cada vez que esticava meus joelhos, quando o vento prendia minhas vestes largas contra meu corpo. Corri em direção a borda do mar que embalava calmaria, para ver meu pai que refletia. Estava sentado com um cigarro aceso entre dois dedos, uma garrafa de uísque enterrada na areia e o cabelo crespo sujo de poeira.

— Pai! — apoiei minhas mãos nos joelhos e fechei os olhos, sentindo meus pulmões arderem.

— Senta aqui. — disse depois de um longo e indecifrável silêncio, sem tirar seus olhos do horizonte.

Me sentei na areia morna, passei as costas da minha mão pela testa molhada de suor e tentei regular minha respiração. Analisei cada centímetro de seu corpo para ter certeza que sua dor tinha matado cada um.

— Quer conversar? — tomou a calmaria do mar para seus movimentos quando sugou o fumo daquele cigarro.

Findo, dobrou seus joelhos a altura do peito e encheu sua mão de areia, virando e, de forma lenta, abrindo-a. O punhado de areia era separado pelas brexas entre seus dedos, através das quais escapava, deslizando limpa e veloz. Naquele momento, seu olhar morto pela tristeza analisava cada grão que voltava ao chão como se fossem pedaços de seu coração recêm-quebrado.

— Lio, você sabe o que impede alguém que você ama de ir embora? — suas palavras escapuliram com finas linhas de fumo. — balancei a cabeça — Nada. — acompanhou meu movimento, inconformado com sua dor — Ninguém ensina, porque não parece haver o que ensinar. Parece que não há como segurar. Então, como não aprendemos como segurar a quem amamos, atiramos ao querer do tempo: ou cai, quebra e nosso chão mantém absorvido, ou o vento leva para outro pôr-do-sol, mais alegre e comum que este. — com o cigarro ainda entre seus dedos, apontou na direção do horizonte alaranjado.

Quando sobraram apenas alguns grãos no centro de sua palma, virou sua mão enrugada e sacudiu para que não sobrasse nenhum. De suas narinas saiu a fumaça que sobrou da lenta destruição de seus pulmões. Olhou para mim, prendendo seu cigarro acabado entre os lábios, e com o rosto traçado de súplica, me pediu:

— Não seja incomum, filho. Nelo, vão quebrar teu coração."


Ao fim de sua leitura, guardou a folha antiga em seu colo e me olhou. Sua surpresa brilhava através dos olhos escuros. Enquanto parecia processar o que acabara de ler, coloquei para dentro uma dose inteira de Uísque. Pela base do copo triangular, seus longos cílios e as cores que a pintavam se multiplicavam pela grossura do vidro.

— Quando escreveu esse resto? — perguntou com a testa amarrotada, e voltou a segurar o papel, onde passou os olhos em busca da data — Devia ter pouco menos da minha idade. — diz quando finalmente vê a data.

— Exactamente. — me afasto da parede, coloco o copo de volta na bandeja e me sento do seu lado. 

Do lado de fora, a festa parecia morrer ainda mais com o passar do tempo. Não fazia mais sentido celebrar. Apenas se desenrolou devido as coisas que um não diante do altar não podia alterar.  

Analisei o tecido dobrado e alfinetado sobre seu vestido, e pensei que não podíamos estar piores. Cléo, minha sobrinha, acabara de perder seu namorado, razão pela qual foi a única que permiti que me fizesse companhia hoje, distante do fracasso que meu casamento com ela acabou por se tornar. 

— Quer conversar sobre isso? — recebi seus olhos marejados de lágrimas como resposta. 

— Não. — baixou sua cabeça, secou suas lágrimas e voltou a me olhar com mais firmeza — E você? 

— Não tem o que falar. — arranquei a gravata já desfeita do meu pescoço — Simplesmente não fui digno de um sim. — relaxei no sofá — E acho que está tudo nem eu não ter sido. 

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