Estou no meio de uma longa serpente de carros que fura o horizonte da autoestrada, em todas as suas faixas. A impaciência me faz contorcer os dedos dos pés e beber pelo menos 2 goles de água a cada 5 minutos. Faz mais de meia hora que entrei neste congestionamento, tentando me convencer que ainda posso chegar cedo, quando estou exactamente meia hora atrasada. Frustrada, bato na buzina e suspiro. Mais uma segunda-feira de atraso.
Bebo mais um gole de água gelada e baixo meu vidro, através do qual uma rajada fria penetra. Sobre nossas cabeças, o céu está bem nublado. Hoje vai chover. O cheiro da chuva que vem é forte, o que, de alguma forma, me satisfaz. Gosto deste cheiro.
A fila se move um metro para frente e eu sigo. Um guarda-chuva vermelho, com metade do nome do partido no poder exposto, no carro a minha frente, me chama atenção para uma coisa: esqueci o meu guarda-chuva. De onde estaciono o carro até onde trabalho é uma dis
— Nelo, voltas ainda nesta semana? — ofegante, meu irmão pergunta.— Vai depender, mas provavelmente sim. — coloco minha toalha na sacola preta e calço meus chinelos — Porquê? Está difícil a gestão por aqui? — o observo saltitar para manter o nível de adrenalina em seu corpo.— Nem por isso. Só que quando estás aqui não preciso me encarregar dos dois primeiros grupos sozinho. Ficamos por combinar os dias em que virias dar um auxílio, mas não disseste mais nada.— Esqueci. — tamborilo o dedo na têmpora — Estou dentro de uma correria que não tem me dado muito tempo livre, mas vou avaliar melhor meu programa semanal, depois digo algo antes deste sábado. — alcanço minha garrafa de água e sugo alguns goles.— Aguardo. — para de saltitar e coloca suas mãos na cintura para ajudar a controlar sua respiração — A propósito, como foi?— Como foi o quê? — confuso, pergunto ainda com a boca
— Vamos abrir uma garrafa de vinho? — Cléo sorri exageradamente e pede, assim que entro na cozinha, com uma garrafa de Cadão Douro na mão.— Vinho? — alinho minha camisete — Não. Devolve isso. Não vou te deixar beber no meio da semana.— Só uma taça, Lio. — estende a garrafa na minha direcção — pode gerir a garrafa, se quiser.Pego a garrafa e finjo ler o rótulo por um tempo, só para que ela se vire e eu tenha espaço de devolver a garrafa.— Desde quando você toma vinho?— Depende. — vira de costas e fica na ponta dos pés para alcançar duas taças no armário, então me viro, devolvo a garrafa a garrafeira da sala e volto.— Depende de quê?— De quem pergunta. — quando termina de lavar as taças, se vira e olha para minhas mãos vazias — Eu já devia saber. — suspira e deixa seus ombros caírem.— D
Eu sempre tive algo com coisas coloridas, tal como a capa deste livro que tenho em mãos. Sou tão fascinada por um bom festival de cores, que sinto uma estranha vontade de comer. O mesmo já chegou a acontecer com coisas muito fofas e com pessoas muito queridas. Minha mãe teria um depoimento de pelo menos meia hora para dar, só pelos braços trincados que teve quando eu era mais nova. Consigo me conter melhor, agora, mas os padrões coloridos da capa deste livro são realmente lindos.Distraída, raspo a unha pelo canto dobrado dela. É antigo, do mesmo tempo que o li pela terceira e última vez. Molho os lábios ao som da vibração da máquina impressora, mas desperto do meu momento com o anúncio de um colega.— Estamos de saída. — para reforçar, o grupo que se recolhe junto a ele acena.— Até segunda. Bom final de semana.— Até. Obrigada e igualmente. — coloco minhas mãos sobre
Numa tentativa falha de assobiar, minha irmã sopra o ar quando tem o vislumbre de minha aparência. Segura minha mão e me faz girar na ponta dos pés. Não acho que esteja tão bonita, mas minha irmã é assim.Tudo o que visto hoje é tirado do meu antigo guarda-roupa. Escolhi um vestido da Polo, de algodão, simples e cinzento. Tem três botões que rasgam ao meio a gola "V". São pretos, cor que carregam também todas as bainhas. As mangas são curtas e ele escorre pelo meu corpo até um pouco acima dos joelhos. O facto deste vestido estar um pouco mais apertado do que costumava estar me faz ter certeza que aumentei uns quilos, embora isso não comprometa nem um pouco minha imagem. Meu cabelo cumprido está preso num coque alto, firme e crespo. Como acessórios, dois pequenos brincos minúsculos em cada orelha, meu costumeiro laço e antiga pulseira felpuda, tudo rosa. Calço sapatos pretos a condizer. Para finalizar, caprichei no cheiro e marquei os
Nem as grossas paredes do clube conseguem conter o barulho alto da música. Através dos vidros é possível ver que está quase lotado e que o ânimo grita nas pessoas presentes, com a mesma intensidade do som. Embora não me sinta humorado o suficiente para ambientes do gênero, a baixinha do outro lado do carro consegue me contagiar.— Jesus, Lionel! — estica seus lábios num sorriso entusiasmado — Aqui tem Karaoke! — seus olhos brilham tanto que posso jurar que quase chora de tanta alegria.Está um pouco gelado aqui fora, então um casaco jeans justo cobre a parte de cima de seu corpo. Dá quatro passos lentos para frente enquanto espera que eu tranque as portas do carro e me junte a ela. Parece uma criança encantada com a existência de seu mundo de fantasias, e gosto do facto de não se esforçar para esconder o quão pequena se sente diante de uma chance de cantar, não importa em quais circunstâncias está prestes a
— Lio! — desperto com o som distante da voz e batidas insistentes de Cléo.Minha mente vai despertando gradualmente até que meus olhos comecem a se abrir. Olho na direção da janela aberta e vejo que a temperatura do lado de fora é ameaçadora. O quarto está com um frio natural que me envolve assim que me arrasto para sentar na borda da cama.Estou no meu estar atônito matinal quando, finalmente, decido responder as suas batidas.— Já acordei. Saio daqui a pouco. — minha voz arrastada cessa as batidas, então ela abre a porta, espreita através do batente e avisa:— São quase 6 horas. Vamos chegar atrasados.O relógio que tenho no pulso desde ontem confirma suas palavras. São 5 horas e 38 minutos. Não respondo nada. Cléo volta a fechar a porta quando me levanto, penduro minha toalha sobre o ombro, levo meu telefone e saio do quarto um pouco apressado.
Mergulho os dedos no pote de água e o sacudo por cima do tecido da minha camisa. O tecido azul ganha pequenas manchas mais escuras, das quais um vapor sensual sai quando passo o ferro de engomar. O barulho da porta puxa meus olhos, então ela revela minha irmã, Yara, que pergunta:— Como foi ontem? — se j**a na cama e me olha fixamente.— Muito bom. Fazia muito tempo que não tinha saídas do tipo. — coço a garganta irritada com duas compressões.Levanto a camisa e ergo sob a luz para achar alguma linha torta por tornar inexistente.— Corrigindo: fazia muito tempo que não saía. — gira em seus dedos uma das pulseiras que escapou de meu pulso.— Sim, é verdade. De qualquer forma, foi diferente. — aprumo os lábios e espalho mais gotas de água pela gola da minha camisa.— E essa voz?— Karaoke. — coloco o ferro de engoma
Um mês e meio depois — Olá! — comprimento-o. Desfila até mim, seus ombros numa dança condizente com suas longas e grossas pernas cobertas até a metade por um par de calções escuros. Uma camisete colorida agarra-se firmemente ao seu torso, um pedaço de sua tatuagem espreitando através do arco da gola. Sua postura move ares a ser favor.Sua voz reverbera pelo interior de meu ser quando retribui o comprimento. — Olá. — depois de três semanas, ouço-o desrespeitar a acentuação de tal palavra. Com sua aproximação, saio do carro e ergo os braços quando nossos corpos se chocam num abraço de boas-vindas. Mantenho-me na ponta dos pés, os ol