Capítulo 1

INTRODUÇÃO AO INFERNO

Responsável por mortes em massa, dentre 2.000 pelo fato de atear fogo no salão de festas particulares de New Jersey, Camden. Uma explosão de dez segundos, nenhum sobrevivente; cinquenta vítimas de suas AK's. Ao todo, responsável por 2.050 mortes de Camden. Diagnosticado com piromania, esquizofrenia, bipolaridade...

Springsteen leu com os olhos semicerrados e antes que terminasse de ler aquela interminável sequência de diagnósticos, fechou abruptamente o caderno marrom encapado. Respirou fundo, ajeitando uma mecha de suas madeixas encaracoladas e depôs a xícara de café na mesa em que estava sentada. Já era a terceira xícara e ela perguntou-se o porquê da cafeína não estar agindo corretamente em seu corpo. Sentia-se doente, com uma espécie de abulia. Por mais que seu entusiasmo para o primeiro emprego estava deixando-a ansiosa, Springsteen não sabia explicar o que estava sentindo. Talvez apenas pena por ter estado a ler diversos diagnósticos de pobres almas. Respirou fundo mais uma vez e recomeçou a ler desde onde havia dado uma pausa.

Afefobia e transtorno psicótico.

Acrescentado cinco guardas de segurança máxima assassinados com uma caneta esferográfica. Mais uma doutora que gerenciava seu caso.

Um pequeno sorriso de surpresa e curiosidade se instalou em seu rosto. "Acrescentado...", significava "mesmo preso no hospício ele não parou de matar". Por isso que depois das mortes dos cinco seguranças ele era mantido preso em seu quarto e já fazia dois meses que não saía da sua pequena jaula. E na visão de Maggie estava certo, um paciente perigoso deveria ser domado para que sua consciência mostrasse a gravidade e o peso da morte.

Medicamentos necessários que estão sendo tomados atualmente:

Carbamazepina no período da manhã, dois Levomepromazina e Aropax de manhã. Três Pimozida e dois Aropax à tarde. Três Bupropiona no período da noite. Licença para tomar calmantes quando necessário.

Ela não pôde evitar de arregalar seus olhos ao ler a lista de remédios. Aproximadamente quinze remédios para tomar durante um dia. Isso era quase um absurdo, era desumano. Porém, ela recobrou-se e lembrou de tudo o que havia estudado nos anos da faculdade de Psiquiatria.

O hospital psiquiátrico David Williams era conhecido como um dos mais conservadores hospitais que tratavam de pessoas com instabilidade mental. A história era um pouco peculiar. Após a construção em 1907, David Williams sofreu um acidente de carro um dia depois de seu hospital estar construído. E, o que tem de estranho e obscuro é que ele deixara uma carta para seu filho, dizendo que já havia colocado seu nome no testamento e que o hospital pertencia a ele. Entretanto, o filho ainda nem havia nascido. A esposa não imaginava que estava grávida e após esse terrível acidente ela consultou um médico que confirmou que havia um bebê em seu ventre. Depois que a criança nasceu, ela enlouqueceu. A depressão pós-parto a levou a uma esquizofrenia que a matou quando seu filho tinha oito anos.

Em 1936 Johnny Williams, filho de David Williams, assume o hospital. Um dia depois de decretar: "Esse hospital é meu!", ele se suicidou, deixou uma carta que dizia: "Sou muito tolo para tentar esconder, sou muito covarde para tentar convencer. Eu amo você, Tommy Springsteen, deixo em teu nome tudo o que foi propriedade minha." Tommy Springsteen, um psiquiatra formado, recebeu essa notícia de surpresa pois confessou que não o conhecia, assustado com a declaração homossexual do homem.

Maggie Springsteen suspirou pesadamente. Ela sabia que era verdade porque conhecia mais do que tudo seu pai. Sim, Tommy Springsteen era seu pai. E ele não mentia por muito tempo e atualmente em 1979 ainda afirmava que nunca conhecera Johnny. Junto com o hospital estava uma casa que mais parecia uma mansão e um carro do modelo mais nobre da época. Seu pai, de repente, se tornara um homem milionário. Com todo o dinheiro que recebeu, reformou o hospital que estava com as paredes fracas por causa do tempo. Em 1943 Maggie Springsteen nasceu, obsequiando mais um herdeiro desse hospício.

Seu pai, com 63 anos dizia a ela que "sentia orgulho", pois era essa filha que sempre sonhou ter: uma herdeira.

A curiosidade por psicologia de Maggie começou desde pequena. Ainda mais depois de ter o conhecimento desse caso de Johnny Williams, que deixou uma propriedade nas mãos de um homem que nem conhecia. Talvez fora um erro que Johnny cometera na época, confundira apenas uma letra do nome ou qualquer outra coisa do tipo, comprometendo o atestado precoce, porém foi isso que criou e alimentou o interesse de Maggie por psicologia. Mesmo assim, era apenas uma curiosidade amadora. Seu verdadeiro sonho era ser bailarina. Teve uma briga feia por causa disso, Tommy não quis aceitar que sua filha poderia ser uma bailarina fracassada que provavelmente pararia em um circo. Ele gritou dizendo que ela deveria ter a honra de trabalhar como médica no próprio hospital, pois ele não pôde fazer o mesmo. E agora, ela estava relembrando tudo com um pouco de rancor e amargura. Se acostumara com a ideia de ser médica que acabara por gostar da profissão.

Springteen se surpreendeu por estar pensando nisso, pois seria agora seu primeiro trabalho como doutora. Uma doutora no início da carreira, porém já renomada. A história maluca do hospício rendera um título antes da hora. Ela esticou suas mãos e bebeu o último gole do seu café. Era agora o momento que teria de escolher seu primeiro paciente para tratar. Voltou a atenção para a ficha que estava lendo. Deu uma folheada nas enormes "façanhas e ocorrências" que estavam naquela ficha. Lançou um rápido olhar para o nome do paciente:

Céleste Narcisse.

Um sorriso brotou em seu rosto. Era esse!

✺ ✺ ✺

Era um tanto esquisito estar nessa situação: ter se formado e estar escolhendo seu primeiro paciente. E além de tudo ter um desafio chamado pai.

- Eu sei que a escolha é sua. Deixei que ficasse à vontade, porém ainda não estou concordando com a sua decisão. - Disse Tommy sentado em sua cadeira, a olhando com a expressão confusa, como se realmente não a entendesse. - Você é uma profissional agora, tenho a consciência de que pode ter qualquer escolha e eu não tenho nenhuma influência sobre isso. Mas estou falando como seu pai.

- Pai, eu não sou uma criança. Fiz minha decisão, pois como uma médica quero buscar a cura e se não for possível, no mínimo uma melhora aos meus pacientes. Não quero advertências, apenas quero que diga: "boa escolha!". - Ela pensou em dizer "o que você nunca fez até então".

- Não estou querendo te chatear, mas você sabe que ele matou cinco pessoas com uma caneta! E depois uma doutora que cuidava dele também foi morta. Só para lembrar que você está me dizendo que quer substituir a doutora morta. Isso não é reconfortante para um pai ouvir. - Ele a olhou nos olhos - Eu te peço, escolha outro paciente para tratar?...

- Não pai, é aquele. - Disse ela em tom de quem nunca desistiria. Mas ele fingiu não ouvir e continuou:

- ... Depois que você obter alguma experiência, pode até escolhê-lo, pois será muito mais difícil começar com algum paciente como ele.

- Eu sei. - Disse ela - Mas aquela lista de pacientes que estão sem "médicos" são casos extremos também. A situação do hospício não está boa, estão faltando muitos profissionais. Onde já se viu faltar psiquiatras em um hospital psiquiátrico? É um absurdo!

- Eu sei filha... - Disse Tommy por um momento se rendendo, como se fosse um ferimento em seu orgulho - mas estamos falando do seu caso agora.

- Meu caso é o caso do hospital!

- Por que o escolheu? Por que luta contra mim por causa de qualquer um paciente?

- Ele não é qualquer um.

- Você entendeu o que eu quis dizer.

- Luto porque sei o que estou fazendo.

- Seja sincera.

- Estou sendo.

- Eu te conheço. Você nunca tem motivos tão vagos. - O sr.Springsteen apontou o dedo indicador a ela - Se ser sincera comigo, não faço nenhuma objeção. Deixo-lhe livre e lhe apoio com todas as minhas forças. Quero que justifique sua escolha. Mas quero um bom motivo, querida. Por que ninguém escolhe o caso mais difícil para ser o primeiro trabalho...

- Ah pai! - Ela soltou um suspiro de derrota, como se confessasse um crime - O nome dele! Eu escolhi por causa do nome dele!

- Como assim? O que tem o nome dele?

- É da mitologia grega, achei interessante...

- É sério? - Essa pergunta saiu num tom mais puro de indignação.

- Sim.

- Que motivo mais emocionante! - Naquele momento ela sentiu perder uma vitória. Por que não conseguia mentir?

- Pai. Por. Favor. - Disse ela entre pausas.

- Larga de ser infantil!

- Você. Prometeu.

- Sim, eu prometi, porém não estou confiante para com você neste momento. Já começou muito mal, pois nunca se escolhe um livro pelo preço. O preço de um livro é inestimável...

- Não dê-me sermão. Eu já sou adulta e sei das minhas escolhas, não quero ser teimosa com você, mas tudo ficará mais fácil para nós dois se você aceitar isso. Eu já tenho uma vida independente, tenho vinte e oito anos e estou prestes a ser uma boa profissional. Você não pode escolher por mim, o tempo de escolher já passou. Eu escolho. - Ela o encarou - Se você aceitar ou não, não irá mudar a minha escolha.

- Você só irá entender quando tiver filhos. - Disse ele, com a sua frase típica.

- Eu sei que é preocupação, mas não quero que o seu cuidado estrague com as minhas decisões.

Ele a olhou. Depois disso soltou um suspiro e colocou as duas mãos nos olhos. Por quase dois minutos o silêncio se fez presente. Parecia que os dois não tinham nada mais para falar, como se houvesse esgotado todos os esforços e argumentos. Mas então, depois de um tempo dramático para ambos, Tommy disse:

- Apresente agora, motivos melhores do que sua paixão pela mitologia grega. Apresente motivos profissionais, que lhe chamaram a atenção pela ficha do paciente, pela sua vontade em ajudar o caso mais difícil do hospital. - No momento em que ele disse isso, ela se segurou para não soltar um sorriso. Isso significava que, de qualquer forma, ela o convencera.

- Os problemas de Narcisse são graves. Problemas estes, que foram causados por algum trauma. Como afefobia. Todos o temem, sempre o colocando na situação de assassino a sangue frio. Ninguém ouviu seus motivos, ninguém ao menos se deu a esse trabalho. Eu serei a primeira.

- Tudo bem. Eu apoio.

✺ ✺ ✺

Depois desse comentário, ele a levou ao hospital. O sr.Springsteen fez questão de levá-la para o primeiro dia de trabalho, mesmo que ela soubesse dirigir e já possuísse um carro. Maggie sabia que ao início sua justificativa pela escolha do paciente era infantil. Mas não tinha o que fazer. Ela agora só queria pensar que cresceria como pessoa e esquecer que ainda tinha de dar satisfações ao seu pai. Depois de todo esse episódio, Springsteen estava certa de que contaria tudo para Narcisse. O quanto batalhara por ele. Esperou que, ao menos, ele entendesse o que ela dizia. Não sabia o que esperar, de qualquer forma.

Enquanto se aproximava do hospital, um ar de sofrimento e angústia parecia presente. Olhar a construção por fora parecia grotesco e tosco, um belo espelho das almas sofredoras. Uma sensação de nostalgia tomou conta de Maggie e ela quis mais do que tudo poder ajudar todos que ali estavam, porém sabia que era impossível. Alguns pássaros gritaram acima da construção imponente e fez contraste com o céu de nuvens carregadas. O ar gélido cortava seu rosto, tão característico das manhãs de outono em outubro.

Foi tudo tão rápido que ela não parou para pensar o quanto estava feliz. Ele pela primeira vez havia dito que a apoiava. Durante o tempo em que permaneceu no carro sua mente borbulhava numa tentativa de lembrar de todas as coisas que aprendera. No momento em que o carro parou em frente ao hospital, seu coração pareceu explodir. Era agora. Maggie desceu rapidamente do carro, observando que o dia estava nublado e os poucos pássaros que voavam estavam na direção leste. Parecia a única vida alegre por lá. A brisa fazia jus ao ambiente, que aos poucos se entregava à uma decadência fria e suja.

Após entrar dentro do hospício e ser recebida pela mulher da recepção, Maggie pediu a chave do quarto de Narcisse: 2-SM (Segurança Máxima). Sua cabeça estava a mil e ela só sabia agir com naturalidade e autoridade. Não reparou na pouca hospitalidade, onde não havia ninguém a esperando para auxiliá-la, que mesmo por ser filha do dono, era novata no ramo. Porém, a verdade é que se sentia uma criança perdida na loja de brinquedos. Estava prestes a ser uma profissional de verdade e pensar que começaria com o mais temido dos pacientes do David Williams era maravilhoso. Ela sorriu. Era adulta e se sentia como tal.

Seus passos ecoavam pelo corredor e seus olhos tentavam direcionar apenas para o caminho. A aparência era de uma profissional que não se surpreendia com nada, mas no fim das contas ainda era uma amadora, surpresa e curiosa com tudo. Ela passou pelo 1-S (Segurança) ao 300-S. Parecia solitário e triste. Suas pernas não estavam cansadas, mas lembrar de tudo que andara a fazia sentir-se cansada. Olhou mais a frente e sorriu. Agora provavelmente faltaria pouco. Caminhou por aquele corredor escuro e parou no pátio. As cadeiras estavam postas de três em três para cada mesa. A cor branca mostrava-se limpa e bem preservada. A flor de lis enfeitava as paredes em volta daquela grande sala, onde pessoas que não tinham noção de onde estavam, sorriam para o nada. Sorriam para a sua desgraça e o triste futuro. Não estavam maltrapilhos, vestiam roupas brancas como uniforme. Apesar de tudo, tinham baralho, bonecas, livros, xadrez, dominó e música. Apenas essas pequenas coisas para ocupar uma vida toda. Springsteen seguiu em frente, tentando não observar mais nada. Teria muito tempo de agora em diante para observar o que quer que fosse.

- Olá, senhorita - Disse um homem com um livro na mão, fazendo sinais de tirar um chapéu imaginário e o colocar novamente.

- Olá cavalheiro - Disse ela fazendo uma pequena reverência, colocando um sorriso no rosto do homem.

Ela seguiu, agradecendo por a ter deixado sozinha. Era uma alegria estar atravessando aquela sala sem o pai, sem enfermeiros, apenas ela mesma. Remetia um sentimento de alegria e gratidão. Springsteen sentia que uma grande e importante etapa de sua vida começara quando escolhera seu primeiro paciente.

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