Capítulo 3

O FRIO DO INFERNO

Seus olhos piscaram demoradamente, a confusão era tudo o que ocupava sua mente. Onde estou? O que aconteceu? Ela se viu pensando e se perguntando enquanto com muita dificuldade abriu seus olhos. Com um flash as lembranças anteriores voltaram com uma fúria inestimável. Em um gesto de precaução seus olhos correram até suas pernas, pois lembrara que a uns momentos atrás estava sem nenhuma roupa de baixo.

- O que aconteceu? - Ela perguntou, olhando em volta e vendo que o local parecia uma sala de consulta médica.

- Você está bem querida? - Uma enfermeira perguntou, ela tinha a aparência de uma vovó das crônicas do lobo mal - Os médicos pediram para que logo quando você acordasse, respondesse a umas perguntas. Eu sei que não está em situação para isso... pobre coitada! - Ela deu um suspiro e olhou dramaticamente para baixo.

- Mas... - Maggie disse querendo dar continuação, porém as lembranças estavam vagas.

- O que você lembra? Estão todos preocupados, tente acalmar-se para poder responder querida.

- Não sei, estou confusa... - Ela colocou suas mãos nos ouvidos, lembrando do zumbido ensurdecedor. - lembro-me apenas de estar sem calça e... sem nada - Disse ela se sentindo envergonhada. Era um tanto estranho alguém dizer que estava "sem calça", por isso seu rosto ficou com uma coloração avermelhada e ela odiou estar tão aparente seu constrangimento.

- Sem nada? - Perguntou a enfermeira gorducha escandalizada - O que ele te fez? - Sua voz saiu infantil, como se compartilhasse de uma notícia do colegial.

- Como assim? Não... - Ela tentou se explicar mesmo não sabendo o que dizer diante dessa situação embaraçosa.

- Que pervertido, maníaco, safado! - Disse a enfermeira com vontade, expressando a sua mais sincera indignação. Seu rosto estava corado, enquanto sua respiração descompassada.

- Não... não foi ele. Na verdade... - Ela disse não querendo dar informações erradas. Maggie tentou respirar mais calmamente para que as memórias voltassem, porém fez ela ter mais certeza de que sob a pressão da enfermeira, jamais se lembraria e se acalmaria. - estou muito confusa...

- Você chegou aqui toda vestida, lembra-se de algo relacionado à essa situação? - Perguntou a enfermeira, parecia que queria dizer mais alguma coisa, mas a sua profunda confusão e indignação não a deixava.

- Eu cheguei aqui? - Springsteen perguntou mais confusa do que estava antes. Seria menos mal, pois se houvessem a encontrado caída na cela de Narcisse seria terrivelmente errado. O lado ruim de tudo isso é que ela não se lembrava de absolutamente nada.

- Sim, veio andando e pedindo ajuda. Murmurava algo como "Pare, eu não posso, eu não quero". - Maggie teve a certeza de que a enfermeira estava amando fazer parte de alguma ação naquela pacata vida.

- Estou confusa... - Springsteen disse querendo que a mulher se afastasse para que ela pudesse ao menos respirar e pensar.

- Eu sei querida, não precisa mais repetir, irei avisar que você não se encontra em uma boa situação para responder perguntas - Disse a enfermeira enquanto andava e falava. Logo ela saiu do quarto, deixando Maggie falando sozinha:

- Estou confusa... muito confusa...

Através desse pensamento ela levantou-se da maca onde estava deitada e apenas encostou suas costas na parede e abraçou seus joelhos. Agora que estava sozinha, podia pensar com mais cautela. O que teria acontecido? Lembrava de como havia se sentido diminuída e humilhada por nada, as palavras de Narcisse, depois o ferimento na perna, o sangue, o zumbido e o clarão. O que isso significava? Ela abaixou as calças e olhou bem. A cicatriz continuava lá como algo que realmente deveria ser lembrado. Porém, não estava sangrando, aberta e nem ao menos tocada. Ajeitou as calças e saiu rumo a ala SM. Ela corria rapidamente com o objetivo de conseguir as devidas respostas. Quando, ainda ofegante, parou em frente ao quarto de Narcisse, se assustou ao constatar que não estava trancada. Ele permanecia no mesmo lugar, como se não tivesse se mexido desde quando ela esteve por lá. Seu rosto ainda estava banhado na escuridão. Ela se aproximou dele e parou na sua frente.

- Me diga uma coisa - Disse ela com autoridade -, o que aconteceu comigo? Eu tive uma espécie de alucinação e desmaiei? Tive um surto? - Ela não percebeu que estava culpando-o pela sua própria instabilidade mental. Mas de qualquer forma, era mais fácil ignorar que era uma doutora que tinha ataques de pânico. 

Silêncio.

- O que você fez comigo? - Ela gritou segurando nos cabelos de Narcisse e os puxando para que pudesse observar seu rosto. Quando fez isso ela vislumbrou seus olhos vermelhos como sangue, olheiras profundas que não estavam ali quando ela o tinha visto pela última vez, seus lábios estavam secos e rachados. Seus olhos não conseguiam ficar abertos e parados em um ponto fixo - Eles te drogaram? - Maggie perguntou, mesmo que soubesse que a resposta fosse sim. Ela segurou em seus braços e viu uma marca funda de agulha. - Que droga! Eles fazem isso sempre?

Ela se jogou no chão não aguentando o peso que atormentava a sua consciência. Os médicos drogavam-o por tudo e por nada? Dessa vez havia sido sua culpa? Ela sabia que ele não havia feito nada a ela. Aquilo tudo, o zumbido, os clarões, fora mais uma de suas alucinações. Maggie não queria aceitar que ainda era atormentada por isso, porém não tinha como negar. Era difícil recordar-se de tudo o que havia acontecido, daquela marca em sua perna. Era um trauma para ela, Springsteen estava sofrendo em silêncio. Nem havia percebido, mas estava chorando. Seus soluços se tornaram mais fortes quando olhou para o homem amarrado em algemas ao seu lado. Eu sou igual a ele pensou, se odiando acima de tudo, eu sou louca.

- Me desculpe - Disse ela se ajoelhando e segurando nas mãos dele, que agora estavam geladas - Me desculpe pelos gritos, pelo tapa e principalmente pela minha má educação. Eu prometo que você nunca mais irá passar frio aqui dentro, suas mãos não irão ficar mais amarradas e nunca mais, ninguém irá aplicar remédios em você sem o meu consenso.

Maggie levantou-se e limpou as lágrimas. Tudo o que ela falara seria a verdade mais pura que ela já havia dito.

✺ ✺ ✺

- Eu irei contar o que realmente aconteceu. E ele não teve nada a ver com isso - Maggie falou para os médicos que haviam drogado Narcisse. Mesmo sendo mentira, pois jamais contaria que ela mesma (uma psiquiatra!) havia tido uma alucinação, qualquer desculpa seria válida - Eu apenas passei mal, saí correndo de lá. Foi coisa minha, eu senti um desconforto e Narcisse não teve nada a ver com esse episódio. Antes de vocês aplicarem alguma medicação, tenham certeza do que estão fazendo. Vocês o drogaram sem motivo algum. À partir de agora, todos estão proibidos de aplicar qualquer medicamento sem o meu consentimento. Nem os quinze que ele deve tomar. Eu mesma farei isso e como sócia e tão logo herdeira desse hospital, quem desrespeitar as regras serão demitidos e terão que pagar uma multa por infligir os Direitos Humanos.

Após dizer com a voz calma e firme os funcionários ficaram boquiabertos. Nunca alguém falara nesse tom para eles. Além do mais, ela era uma herdeira, logo seria a dona. Nenhum médico ousaria desrespeitá-la.

✺ ✺ ✺

- Abaixem as armas, eu ordeno que abaixem essas armas! - O policial gritava encarando-os apontando igualmente a arma à eles.

Em um passe de mestre, Maggie puxou Narcisse pela sua casaca fazendo-o ir ao chão e ajoelhar-se diante dela, enquanto seus dedos com as unhas felinas e pintadas agarravam seu pescoço e a outra mão apontava sua Desert Eagle à Narcisse. Essa posição em que ficaram estava claro: Maggie estava fazendo Narcisse de refém. Diante disso, o policial rapidamente abaixou sua arma. Como os parceiros do crime de repente se tornavam inimigos o policial não sabia. Ele até desejava que Narcisse morresse e acabasse logo com essa dupla de malucos que estavam aterrorizando a cidade. Mas sua profissão não permitia isso.

O policial tentou mentalizar que não deixaria a dupla  fugir. Ele não tinha reforços, era apenas da patrulha da noite, o que o fez sentir raiva e querer matar seu companheiro Freddie por ter pegado uma gripe. Aquela garota bonita estava estragando com a cidade junto com aquele homem estranho e louco. Se fosse ele quem os prendesse uma recompensa muito alta viria até ele. O policial Benjamin tinha de agir. Ele era por demasiado esperto para saber que aquela cena não era verdadeira. Maggie estava fazendo Narcisse de refém para conseguir sair com todo o dinheiro. Ela nunca atiraria nele, era apenas uma farsa para ganharem tempo.

Pensando assim ele levantou rapidamente, pegando sua arma do chão e direcionando aos dois. Sob forte pressão, Maggie se curvou e deixou cair sua Desert Eagle dramaticamente. O mesmo fez Narcisse, colocou sua AK 47 ao lado da arma de Maggie de um jeito organizado, e as duas armas ficaram uma ao lado da outra sem distância nenhuma.

Benjamin nem havia percebido, mas no tempo em que ele estava olhando Narcisse depositar sua arma no chão com aquela lentidão, a moça acertou um chute certeiro na arma do policial, que caiu maestramente ao lado das duas armas, nem um centímetro a mais de distância. Benjamin não soube como reagir, apenas tentou pegar o seu rádio, para comunicar que estava precisando de muitos reforços. Ele apalpou todas as partes possíveis de seu corpo sem nenhum resultado. Onde estava a merda daquele comunicador? O que ele percebeu tão tarde foi que Narcisse estava segurando o objeto que ele tanto procurava com um sorriso em seu rosto. Como foi parar nas mãos dele?

Maggie foi rápida novamente, aplicando a técnica de Mae Geri bem em seu rosto, que o fez ir ao chão por causa da terrível dor. O golpe já era cruel, mas as botas coturnas de Springsteen havia feito com que o chute fosse quase mortal.

- Jiu-Jitsu caseiro até que não é tão ruim! - Disse Maggie dando de ombros, numa tentativa de provocá-lo.

Benjamin se rastejou no chão discreta e dolorosamente e logo levantou-se do chão e pegou a arma que até então se encontrava no chão, pelos caprichos de Maggie. Levantou-se rapidamente tentando ignorar a dor que latejava em seu rosto. O policial apontou para Maggie, prestes a atirar. Quando foi fazer isso, ele reparou que Maggie estava sozinha. Ficou confuso, não fazia ideia onde Narcisse poderia ter ido. Ainda com a arma em punho virou seu rosto lentamente, dando de cara com Narcisse a suas costas. Ele sentiu mãos agarrando sua cintura por trás e tentou acertar chutes em Narcisse. Enquanto tentava em vão acertar algum golpe, Maggie chutou a arma do policial, fazendo-a rodopiar no ar e parar no mesmo lugar do qual ele havia pegado: ao lado das outras duas. Ele ficou impressionado enquanto refletia sobre o reflexo e precisão da mulher, que mais parecia fazer parte de um circo. Maggie começou a rir descontroladamente olhando para o policial e ao mesmo tempo ouviu a risada de Narcisse atrás dele.

Benjamin nem havia notado mas suas mãos estavam soltas agora: os dois parceiros riam tão descontroladamente que Narcisse usava menos força ao segurar suas mãos. Aproveitou desse descuido e virou-se. Deu um soco no rosto de Narcisse, que olhou-o furioso, mas sem tirar aquele sorriso estúpido do rosto e retribuiu o soco, só que dessa vez no abdômen do policial. Benjamin foi rapidamente em encontro com Narcisse e diferiu mais um soco em seu rosto, acertando o canto dos seus lábios que começou a sangrar na mesma hora. E nessa mesma hora em que o sangue escorria dos lábios do homem, Benjamin viu as mãos em punho de Céleste Narcisse ir em encontro ao seu rosto e sentiu a visão do olho esquerdo embaçada. O policial já estava sentindo-se infantil por estar lutando contra um homem louco e se rebaixando ao mesmo nível dos dois. Narcisse se aproximou dele como se fosse o machucar mais uma vez, mas não o fez. Sentiu algo frio em seus braços e apenas ouviu um pequeno click e viu que suas mãos estavam algemadas. Soube que havia sido Maggie quem fizera esse trabalho. Olhou furioso para Narcisse que encarava-o profundamente nos olhos, sem expressão reconhecível. Aquele momento pareceu passar lentamente e Benjamin sentiu um frio em sua espinha. Aquele homem tinha o olhar diferente, ele teve a certeza de que o mal encarnado estava em sua frente.

A raiva já o dominava, mas sabia que não havia maneiras de lutar contra isso: com as mãos algemadas, sem seu rádio, sem ajuda e sem arma, lutava contra os piores criminosos. Continuou ajoelhado, o medo já não era uma opção. A realidade mostrou-se cruel, mas ele aceitou. Quando a bala de AK 47 acertou seu peito, ceifando sua vida quase que imediatamente, Benjamin já não queria mais viver. Preferia a morte do que viver com a desesperança ao reconhecer que o mundo era cruel.

Então Maggie e Narcisse foram embora enquanto um carro esperava na frente do banco. Saíram com suas armas e com os milhões roubados.

✺ ✺ ✺

Maggie Springsteen acordou sobressaltada. Aquele sonho havia sido tão vívido e real, que demorou muito para voltar ao normal e perceber que era apenas um sonho. Como um sonho poderia ter sido tão ruim e bom ao mesmo tempo? Ela balançou a cabeça tentando espantar o horror de acordar no meio de um pesadelo que mais parecia uma visão. Ela desceu as escadas do seu apartamento e foi até a cozinha preparar os seus queridos wafflers. Não tinha coisa mais saborosa do que os quais ela fazia. Não demorou muito e ela já estava se deliciando com seu feito. Quando terminou de comer, ela caminhou até seu quarto, para arrumar-se para mais um dia de trabalho. O sonho ainda perturbava sua mente mas o afastou. Já eram cinco da manhã, ela já deveria estar lá pois os remédios de Narcisse eram para serem tomados à noite e de manhã. Springsteen correu para se arrumar, colocando camadas de roupas e um sobretudo com uma touca nada elegante. Narcisse havia ficado uma noite sem tomar remédios.

"Já comecei bem" ela disse em voz baixa enquanto arrumava seus cabelos pronta para sair para seu mais novo trabalho. Ela só não sabia que seu trabalho era sua vida contada em memórias.

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