Capítulo 5

ANTES DO COLAR DO OCEANO 

"As vezes a mente humana se ocupa de pequenas ilusões e distrações para atrair a pobre Alma perturbada, para diante à mais límpida verdade não dita"

Enquanto Maggie dirigia rumo ao hospital, suas mãos quase congelavam ao volante. De repente uma chuva caíra do céu, deixando à sua volta uma neblina sórdida. Havia algo na neblina naquela manhã, ou talvez havia algo na cabeça de Maggie. Seja lá o que for, aquela brisa trazia uma sensação alucinante, como se ao meio daquela fumaça da natureza, o pecado e a liberdade declarasse sua presença. Era como uma noite sem estrelas, uma loucura sem remédio.

A rua estava pouco movimentada, os carros passavam preguiçosamente no asfalto, como se compartilhassem do sono e tranquilidade de Maggie. Sua realidade não era lá muita coisa, nem mesmo uma aventura ela sabia que teria. Springsteen sabia que teria uma vida pacata em uma cidade chamada New Jersey. Dona de um hospital, médica (nem psicóloga seria), milionária, mas triste. Solitária. Sozinha. Mas apesar de todos esses pensamentos seu coração batia normalmente e uma serenidade ocupava sua respiração. Como se já aceitasse a realidade, aceitasse o destino que ela havia escolhido e tecido.

Ela ligou o rádio. Colocou Frederick Wilson. A música. A dança. O sangue. A paixão.

De repente, em um piscar de olhos ela se encontrava querendo explodir, dançar, cantar, se alegrar. Seu sorriso se abriu e se qualquer um a visse, juraria que esse era o limite de um sorriso. Seus pés batiam no piso do carro, querendo se levantar, querendo mexer. Ela soltou seu rabo de cavalo e jogou a presilha ao longe. Seus cachos caíram em seus ombros e por um breve segundo ela olhou pelo retrovisor do carro. Viu um batom vermelho em seus lábios, forte e vibrante. Um delineador como de um gato e os cílios mais longos que ela já havia visto. Sim, por um breve segundo porque depois sua verdadeira imagem voltou ao retrovisor. Cabelos marcados por prender seus cachos com tanta força, desbotados. Lábios pálidos, olhos tristes e olheiras profundas. Nada especial, nada bonito.

Agora Frank Sinatra cantava em seu CD de "Clássicos inesquecíveis". E foi um erro seu olhar ainda estar vidrado no retrovisor. Uma buzina explodiu em seus ouvidos, um som tão alto que parecia ser palpável. Em um instinto de tentar se salvar, suas mãos foram a sua cabeça, mas nada aconteceu. Maggie olhou pela primeira vez para a janela, vendo que ela estava em uma situação embaraçosa: o sinal estava fechado e ela havia parado no meio da faixa de pedestres, enquanto um motorista a xingava de todos os apelidos imundos.

- Tinha que ser mulher! Vadia!

- Vê por onde anda!

- Louca!

Tinha que ser mulher? Sim, ela era mulher.

Vê por onde anda? Sim, ela deveria ver.

Louca? Sim, ela era louca.

Ela riu. Um riso que explodiu em alto e bom som e Maggie fez questão de colocar seu rosto mais perto da janela para que o motorista que a estava xingando ouvisse sua risada e seu desinteresse, sua total despreocupação. O homem fez uma expressão confusa, que logo foi substituída por um olhar de raiva. Ele buzinou mais alto agora, enquanto os outros passageiros ficaram nervosos com a situação. Maggie continuava a rir, por fora uma risada irritante e arrogante, mas por dentro uma risada nervosa e maníaca. No mesmo momento em que ela decidiu acelerar, o motorista que a estava esperando atravessar foi seguir em frente assim como ela, dando no resultado de um quase acidente. O impacto da pausa abrupta foi um pouco agressiva, fazendo um objeto que até então estava escondido entre o chão e os bancos, aparecer na visão de Springsteen. Maggie olhou de relance, vendo um pacote médio embrulhado como um presente.

- Moça, quer atravessar fazendo um favor? - Disse o motorista que estava com o carro quase enroscado com o dela. Ele deu ré, abrindo passagem para que ela saísse normalmente - Já estou atrasado para o meu emprego - Disse ele tentado ser educado, mas com cara de poucos amigos.

Maggie sem dizer mais nada, nem mesmo rir, pisou no acelerador e seguiu em frente. Ainda faltava muito para chegar ao seu destino, mas a chuva só piorava. Ela voltou a olhar para o embrulho no chão do carro e se abaixou para pegar. Com uma mão no volante, foi abrindo o embrulho com a outra. Demorou um pouco, pois ela não tinha habilidades suficientes para fazer tudo de uma vez. Ou melhor, ela acreditava que não tinha. Quando finalmente conseguiu abrir, avistou uma caixa comprida e um pequeno pedaço de papel. Ela o pegou curiosa, sem nem antes tentar abrir a caixa aveludada. Com letras rabiscadas e um tanto ilegíveis, estava escrito a seguinte frase, que ela leu repetidas vezes:

"Feliz seus 35 anos. Como se sente? Mais insana? Queria me desculpar pelo ocorrido, abra seu porta-malas e verá seu presente de aniversário e minha forma de pedir desculpas". - Cephisus.

Ela balançou a cabeça, embaraçada. Trinta e cinco anos? Mas ela tinha vinte e oito! Desculpas? Quem íntimo dela a havia magoado? Cephisus? Só poderia ser uma brincadeira, provavelmente essa pessoa sabia que ela tinha uma paixão pela mitologia grega e havia feito uma brincadeira. Mas que droga poderia estar no porta-malas? Ela voltou sua atenção para a estrada e seguiu seu percurso até o hospital, com os pensamentos lotados de dúvida e ansiedade.

NO momento em que ela estacionou seu carro em uma vaga exclusiva para funcionários, a primeira coisa que fez foi olhar a caixa aveludada. O que teria lá dentro? Com curiosidade, ela abriu sem nenhuma delicadeza aquela caixa que exigia todo o cuidado. Ela era comprida nas laterais, o que fez Maggie estranhar pois nunca havia visto no carro. No momento em que abriu, seu coração pulou e em um impulso ela olhou dos lados para se certificar de que ninguém a observava. Naquele momento, Maggie Springsteen estava em mãos o colar mais caro do mundo.

Ela tinha lembranças de sempre ver em todas as revistas, modelos inspirados, parecidos, mais baratos, mas esse colar sempre esteve nas revistas de moda que Maggie sempre gostara de folhear. Ela segurava O único, O verdadeiro. Ela segurava o Incomparável Colar de Diamantes. Feito com 408 quilates do material. Esse colar custava US$ 55 milhões de dólares. Foi aí que ela viu que a joia estava com um pequeno papel com o logo da Mouawad Company. Quem havia gastando US$ 55 milhões com ela? Quem era Cephisus? Com medo de encontrar o "Coração do Oceano", ela correu para abrir o porta-malas. Maggie nesse momento sentia medo.

Ao abri-lo, viu um embrulho maior ainda, contendo as iniciais L.S. Ela abriu desesperadamente, se deparando com uma Glock 25 cor-de-rosa e com uma espécie de glitter. Um pequeno papel com a mesma letra deixava claro, para o espanto de Maggie:

"Sim, você acertou novamente. Eu roubei o colar. Mas calma! Não roubei tudo, a arma eu mandei fazer!".

Seu coração quase saiu de sua boca, quando leu o bilhete, tentando imaginar as formas mais constrangedoras de ser presa. Por que alguém queria metê-la em encrencas? Ela tentou imaginar a falta que o colar estava fazendo, as pessoas desesperadas e a alta tecnologia ao tentar encontrar o ladrão. Não, ela não era capaz de imaginar uma coisa dessas.

Maggie atravessou aquele corredor novamente, recebendo olhares de receio dos funcionários. Ela estava mais que atrasada. Estava tremendamente atrasada. Passou na recepção e foi direto para o laboratório, em uma gaveta reservada para os medicamentos de Narcisse, ela pegou o caderno marrom onde havia a lista de medicamentos. Foi pegando cada um, logo se dirigindo a ala SM. O pátio ainda estava vazio, então foi fácil atravessar por lá. Finalmente chegou e pegou de seus bolsos a chave da cela. Abriu apressadamente a porta, destravando cada tranca. Entrou sem pensar muito, mas quando o fez, todos os seus aflitos se dissiparam. A joia roubada, a pessoa misteriosa, a Glock 25, tudo. Apenas o clima pesado, louco, sentenciado e mórbido. A realidade naquela cela era doentia e suja. Talvez porque o paciente fosse louco, sentenciado e mórbido. Mas ela não entendia o por quê era tão fascinante ver aquele homem sujo acorrentado como um animal a ser domado.

Seus olhos foram de encontro aos dele, mesmo que ela não soubesse pois a escuridão engolia Narcisse mais uma vez. Maggie foi chegando perto lentamente, sem conseguir agir normal em sua presença. Quando chegou perto o suficiente para observar melhor o seu rosto, aquele sonho que ela tivera nessa noite veio a tona em sua mente. A cicatriz na boca de Narcisse parecia ter sido do momento em que o policial havia batido em seu rosto. Springsteen tentou afastar esse pensamento, a fim de concentrar-se apenas nos remédios. Afinal, ele tinha essa cicatriz por outros motivos que não tinha relação nenhuma com seu sonho.

Ele continuava sem camisa, com todas as tatuagens a vista, os cabelos desgrenhados e os olhos maníacos. Sua roupa continuava suja, ou apenas a calça pois ele não usava nenhuma camisa. Maggie apoiou a bandeja de medicamentos e água na cama, e pegou o primeiro que ele deveria tomar.

- Bom dia - Disse ela em tom baixo e receoso -, trouxe os remédios da manhã. - Ela lembrou-se que não havia dado os remédios da noite, mas preferiu não dizer nada. "Quem cala, consente".

Springsteen foi até Narcisse e levantou sua mão para poder depositar o medicamento, e foi assim que fez. Ambos ao sentir o breve momento em que se tocaram, foi como um choque de eletricidade. Os dois lançaram um olhar discreto, provavelmente para se certificar que o companheiro havia sentido o mesmo. As mãos de Narcisse estavam mais geladas do que nunca, e as mãos de Maggie mais quentes do que nunca. No momento em que Springsteen depositou o remédio nas mãos dele, ela lembrou-se de que suas mãos estavam acorrentadas e não teria como ele tomá-los sozinho. Ela rapidamente procurou a sua volta, pegando a chave da cela, que na verdade era um molho de chaves (do quarto dele, da gaveta de medicamentos, da gaveta de documentos e das algemas). Ao início Maggie ficou mais do que furiosa por ninguém tê-la avisado qual era a chave das algemas. Ela suspirou e escolheu qualquer uma e fez uma tentativa. As algemas fez um pequeno e baixo "click" e se destravou. Não era à toa que ela sentia que já conhecia tudo.

Maggie esperou e seu coração acelerou. Esperou que as mãos fortes e machucadas de Narcisse fossem de encontro ao seu pescoço, mas ele apenas esticou seu braço, pegou o copo de água e tomou o medicamento. Ela quase ficou de queixo caído ao ver essa cena, constando que não precisara fazer nada, não precisara forçá-lo a tomar, nem mesmo fugir da cela para se salvar. Nesse momento ele a encarava e ela desviou o olhar rapidamente para a bandeja em seu colo, que indicava que havia muito mais medicamentos para que ele tomasse. Mas, naquele momento ela afastou a bandeja, certa de que ele não tomaria tudo aquilo de drogas. Em um piscar de olhos, ela esquecera tudo o que estudara na faculdade de Psiquiatria.

Em um gesto rápido, ela tirou o casaco que estava usando e colocou em Narcisse. Maggie conseguiu ver a confusão nos olhos daquele homem louco, como se nunca tivesse sido tratado daquela maneira. Com cautela, Springsteen começou:

- O que você fazia para se entreter, quando ainda não descobrira que matar era o melhor que fazia? - Acredite, talvez fosse uma pergunta maldosa, mas a inocência e curiosidade que Maggie dirigiu as palavras, soou como uma brecha para iniciar um assunto.

- A verdade é que eu sempre matei - Ele apenas diz, com a voz grossa e suave ao mesmo tempo. Springsteen arqueou as sobrancelhas, como se entendesse que ele começara como todo psicopata: em animais.

- A quanto tempo está aqui? - Ela pergunta novamente com o mesmo tom.

- Apenas alguns meses - Ele diz, e ela não entende o motivo dele ter respondido isso, pois sabia que não eram meses.

- O que você faz para passar o tempo aqui dentro? - Maggie faz essa pergunta, esperando com todas as suas forças que ele não respondesse que ficava o dia todo algemado sem nenhuma distração como os outros do pátio.

- Não tenho nada para me distrair aqui dentro - Ele disse e pegou as algemas nas mãos, um gesto tão rápido e brusco que fez Maggie quase pular de susto pela apreensão. Ele balançou as algemas no ar - Tenho uma pequena distração quando chegam doutoras novas e medrosas - Disse ele elevando a voz e aproximando seu rosto ao dela -, tão medrosas que quando eu apenas as encaro - uma pausa - elas saem correndo. - Agora ele quase gritava, cuspindo todas as palavras com raiva - Tão medrosas que quando faço isso - Ele bateu fortemente na cama em que ambos estavam sentados, Maggie não esperava por isso e como o soco fora tão perto dela, ela deu um pulo de susto, chegando a ficar com a respiração descompassada na hora, tamanho o susto que levara - Elas se assustam.

- Você está querendo dizer que sua distração é assustar as pessoas? - Disse ela se surpreendendo por ter conseguido não gaguejar. - Isso é interessante. Como é fazer os outros temerem?

- Libertador - Ele respondeu sem escolher palavras - dominante.

- Mas se você consegue fazer tudo isso, ser um homem que manda e mata, por que tem afefobia? - Maggie perguntou e sentiu-se culpada por isso. Essa pergunta era um tanto agressiva.

Silêncio da parte dele. Medo da parte dela. Dois corações pulsando com motivos diferentes.

- É que você é tão dono de si e dizer que tem algum trauma como esses não parece verídico. - Springsteen ficou com medo de ter piorado e não se desculpado.

- Eu não tenho trauma nenhum - Disse ele como se houvesse confiança em sua fala e Maggie ficou confusa com as palavras sinceras dele.

- Então por que isso consta na sua ficha de paciente da David Williams? - Ela não queria desafiá-lo, mas era necessário fazer essa pergunta.

- Uma desculpa para que me mantesse preso aqui. Se caso a Polícia chegar querendo fazer uma vistoria, eu teria um motivo para ficar algemado e preso, longe de todos. - Narcisse foi falando cada palavra calma e pausadamente.

- Isso é verdade? - Springsteen perguntou mais confusa ainda. Quando cogitou a possibilidade de acreditar, afastou-as. Como acreditar no paciente mais insano da David Williams?

- Você quer que eu faça o quê para provar?

- Nada - Respondeu ela prontamente -, não há nada a fazer.

- Mesmo?

- Mesmo. - Springsteen tentou ignorar a malícia em sua voz.

Após um tempo em silêncio, Maggie chegou a conclusão de que não havia nada mais a falar. Ela deu uma olhada em seu pequeno relógio de pulso: Eram quase oito horas. Maggie levantou da cama e ajeitou suas camadas de blusas.

- Logo voltarei.

- Você não tem essa obrigação - Disse Narcisse com o rosto sério.

- Obrigação? Mas eu trabalho aqui agora.

- Eu disse que você não tem a obrigação de dar satisfação e dizer quando irá voltar.

- Não, eu realmente não tenho. - Ela deu um sorriso - Mas - "Até porque as regras não me controlam", ela teve uma breve vontade de dizer isso, mas se dissesse estaria mentindo. Ela era controlada pelas regras mais do que ninguém era - eu sou uma boa pessoa.

Ela virou as costas e saiu da cela SM, deixando Narcisse dando gargalhadas altas, como se visse graça na fala dela. Mesmo sendo tratada com tanto desprezo, essa era a profissão dela. Maggie estava pronta para arrumar novos uniformes, novos lençóis e também uma pequena brecha para deixar Céleste Narcisse passar seus dias no pátio junto com os outros.

Loucura deixar justo ele, aquele louco e matador junto com pessoas? Talvez, mas tudo isso, de qualquer forma, estava prestes a acabar.

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