Kelly
É triste acordar de um lindo sonho e vê que tudo se tornou um terrível e irrevogável pesadelo. Ao abrir os meus olhos me encontrei dentro de um hospital e o Lipe não estava lá comigo. Vi o meu pai debruçado em uma janela, com o olhar perdido, encarando as ruas do lado de fora e a minha mãe, estava sentada em um pequeno sofá, com a cabeça apoiada em uma de suas mãos e um jornal na outra. Talvez nem estivesse lendo as notícias de fato. Eu conhecia bem aquele rosto cansado e sofrido. Ela estava sofrendo por algo... por mim talvez? Mas, o que realmente aconteceu? Então o meu pai se mexeu, voltando ao nosso mundo real e os seus olhos cansados e cheios de olheiras me encontram. Adonis sorriu para mim.
— Filha? — Ele disse caminhando com pressa na minha direção e me abraçou ainda deitada no leito de hospital e só então me dei conta dos fios em meu corpo e dos sons das máquinas ao meu lado.
— Meu amor você acordou! — Minha mãe falou com um tom emocionado na voz. Respirei fundo e isso causou uma dor pesada em meu abdômen, me fazendo soltar um gemido dolorido em seguida.
— O que aconteceu? — perguntei atordoada, cansada de ficar no escuro. Senti a minha garganta seca e isso me causou uma sequência de tosses — Onde está o Lipe? — Meus pais se olharam e eu entendi que havia algo errado.
— Querida, você sofreu um acidente de carro muito grave. — Agnes, começou a falar. As palavras de minha mãe, me trouxe uma cena de horrores a memória. O Adam nos perseguindo em uma corrida louca no trânsito. Era de madrugada e as ruas estavam calmas e desertas, mas algo aconteceu e eu nem tive tempo de perceber o que foi.
— E o Lipe, ele está bem? — insisti na minha pergunta. Observei o meu pai respirar profundamente e se preparar para dizer-me algo.
— Eu sinto muito, filha! — sussurrou com pesar. A dor que eu senti por dentro, parecia me partir ao meio e era bem maior do que a que o meu corpo desferiu quando me encolhi na cama, me entregando ao choro.
— Não — gemi dolorosamente. — Por favor pai, me diz que ele está bem. — Em resposta recebi o seu abraço, mas esse não me confortava, não tirava essa dor que estava me matando por dentro. O choro durou alguns longos minutos e eu só parei quando a realidade me bateu na cara, com uma violência espantosa.
“A culpa foi minha!”
Constatar isso, me fez afastar dos braços carinhosos dos meus pais e da suas tentativas patéticas de me consolar. Eu não merecia aquele consolo.
— Kell, o que está nos pedindo? Nós não podemos...
— Por favor pai, eu preciso ficar sozinha — insisti.
— Querida, eu não seria o seu pai se te deixasse sozinha em um momento como este.
— Mais que merda, pai! — bradei irritada e eu nem sabia o porquê. Eles não mereciam esse comportamento de mim, mas eu não conseguia evitar. _ Eu quero ficar sozinha, podem por favor sair do meu quarto, por favor? — Adonis e Agnes apenas me olhavam, sem saber o que fazer. — Saiam agora! SAI DO MEU QUARTO! — gritei tão alto, que cheguei a ver o medo estampado em seus olhos. Eu sei, fui dura demais com eles, na verdade estou sendo uma megera. Mas me entendam, eu não sou mais eu. Uma parte de mim ficou lá, naquele maldito acidente e se foi junto com ele. O meu melhor se foi. O meu sorriso também e comigo só restou uma única coisa, a culpa. Eu o matei, foi tudo culpa minha.
Os dias seguintes foram os piores da minha vida. Eu não pude ir ao seu velório, não pude me despedir. Adam me tirou esse direito. Ele me tirou tudo. Deus como odeio esse homem! Eu só queria ter a certeza de que está ardendo nas profundezas do inferno. Recebi a visita dos pais do Lipe alguns dias depois de acordar do coma de quinze dias. Não foi fácil olhá-los nos olhos, não depois do que eu fiz ao filho deles. Queria não tê-lo conhecido, mas o conheci. Queria não tê-lo amado, mas eu o amo. Se não tivéssemos juntos, o Lipe ainda estaria vivo e talvez eu sim, estaria morta em seu lugar. Acordar todas as manhãs e encarar essa nova e dolorosa realidade é o meu martírio. Contra a minha vontade decidi seguir em frente, mas nem tudo é aceito em minha nova vida. Decidi que serei dele como havia lhe prometido, que o amarei até o fim da minha vida e que serei a chef que ele sonhou que eu seria.
...
Meu telefone toca insistente em cima da mesa da cozinha do pequeno apartamento que aluguei, me despertando dos meus pensamentos. Decidi que seria pequeno e aconchegante, já que não precisava de tanto espaço só para mim. Pego o celular, largando a xícara de chocolate quente que fiz, e sequer toquei, e abro um enorme sorriso quando vejo que é minha amiga Maah. Ela é tudo o que me restou de uma vida passada. Apesar de ter me ajudado na fuga daquela noite especial e de ter colaborado com a melhor e única noite feliz da minha vida, eu não a culpo por nada. a final, ela só quis o meu bem.
— Bom diaaaaa, flor do diaaaaa! — Ela cantarola com toda a sua animação que realmente não me alcança, mas que de alguma forma me fez sorrir. — Como foi a sua primeira noite em Paris?
— Péssima, diga-se passagem! Um vizinho barulhento se mudou pra cá, então você pode imaginar como foi a minha noite com móveis arrastando de um lado para o outro e um som irritante tocando algum tipo de música francesa — ralho mal humorada e vou até uma das janelas do apartamento, onde tenho a melhor visão de Paris.
— E como ele é? — Deu para sentir um toque de malícia em sua voz e isso me faz revirar os olhos.
— Não faço a menor ideia, Maah! Não ando bisbilhotando os meus vizinhos. Só sei de uma coisa, se ele for barulhento assim sempre, vai ter uma vizinha muito chata pegando no pé dele. — Ela riu, na verdade ela gargalhou.
— E a faculdade? — indaga. Solto um suspiro baixo.
— Fui lá ontem e dei uma olhadinha. Até que é bem legal, acho que vou gostar.
— Hum, sei! Viu algum gatinho perdido por lá? Me disseram que os franceses são bem avantajados... lá em baixo — disse e soltou outra risada alta. Revirei os olhos outra vez. Desde que tudo aconteceu a cinco anos atrás, Maah assumiu a missão que querer me fazer transar com alguém, não importa quem seja. Ela diz que o importante é gozar e ser feliz.
— Não reparei — respondo com toda a sinceridade. Ela bufa bem alto para ter certeza de que ouvi.
— Kelly Ferraço, se você não der essa buceta a terra vai comer, querida! Você já sabe o meu lema, “o importante é gozar e ser feliz!” — retruca e eu repito o seu bordão junto com ela. — Você está em Paris e eu te desejo do fundo do meu coração, que você esbarre fortemente em algum macho alfa e que esse te leve para cama e te mostre o caminho da felicidade. — Agora sou eu quem bufa.
— Eu preciso desligar, sua maluca, tenho faculdade em duas horas e não quero me atrasar no meu primeiro dia de aula, não fica bem para minha imagem na visão dos professores. Como vai o Afonso? — Mudo propositalmente de assunto.
— Hum, tarado e gostoso como sempre! — cantarola de uma forma arrastada e preguiçosa. Provavelmente ainda está cama, depois de transar uma noite inteira com seu marido.
Ah sim! Marina se cansou do desprezo de seus pais quando fez seus dezenove aninhos e fugiu de casa com o seu professor de direito, Afonso Castellini. O cara é pelo menos seis anos mais velho que ela, embora não aparente tal idade. É claro que os pais dela não gostaram da novidade e foram buscá-la no apartamento do homem, e foi ai que ela rasgou o verbo com eles e conquistou a sua liberdade. E hoje, eles são de longe as pessoinhas mais felizes que eu conheço no mundo, depois dos meus pais é claro, e dos meus tios, Oliver e Petrus. Com a Cris não foi muito diferente. Agora ela está nos Estados Unidos fazendo faculdade de medicina e noiva do Call. Esses dois não se desgrudam desde que começaram a namorar no colegial. E parece que se tornou uma lei entre essas duas; elas precisam me ligar, ou fazer chamadas de vídeos dia sim e dia não. É cansativo, mas confesso que se não fosse por elas, ou a minha família eu não teria chegado até aqui.
— Vocês não têm jeito! — resmungo achando graça do seu comentário.
— Claro que temos! É um jeito safado, dengoso e gostoso, mas temos jeito sim. — Sorrio.
— Maah, eu realmente preciso ir, querida. Beijos para o Afonso!
— Tá, me diz onde que eu dou. Na boca, na bunda ou no p…?
— Na bochecha fica melhor! — A corto de uma forma divertida.
— Hum, estraga prazeres! — retruca me fazendo rir e encerro a ligação em seguida. Os próximos minutos são bem corridos. Preciso me arrumar para o meu primeiro dia na faculdade de gastronomia e não quero me atrasar, portanto, o banho foi bem rápido e quando terminei, pus uma roupa simples e peguei o meu material. Isso sim fez-me sentir liberta de verdade, me fez sentir um pouco da alegria que sentia outrora. Respirei fundo, pus os óculos escuros e larguei os materiais no banco do passageiro. Sorri quando liguei o carro e segui para o meu mais novo amor… meu curso preferido.
Adrien Lamartine Ser um nerd tem o seu lado bom. Você termina os estudos mais cedo do que se possa imaginar, a ciência e o conhecimento estão sempre em suas mãos e as pessoas te veem com uma idealização de um bom negócio. Eu cresci no meio de uma família onde todos os seus integrantes se tornaram empresários da contabilidade ou administradores de um bom negócio. Confesso que estava indo pelo mesmo caminho, até completar os meus dezoito anos. Eu era o orgulho do meu avô paterno e do meu pai também, claro. A coisa desandou quando conheci a Margaritta, uma espanhola porreta, que me mostrou que a degustação dos alimentos pode ser uma arte. Eu agora tinha dois motivos para sair daquele caminho sério demais e que me trancaria em uma sala cheia de papéis e sem graça pelo resto da minha vida. A Margaritta era uma delas e a outra? Eu sou um cara desajeitado demais. Sério, sou atrapalhado, tropeço em tudo e por mais que eu acredite que estou seguro, acabo por derrubar tudo a minha volta. Acred
Kelly Um dia perfeito, sem atrasos, sem correria, sem estresses... A não ser pelo itinerário que está me deixando meio que perdida aqui. Seguindo o mapa da faculdade, que mais parece um labirinto, entro no terceiro corredor movimentado de alunos e agora eu só preciso descobrir qual a sala que devo entrar. Abro o mapa mais uma vez e enquanto ando em linha reta, procuro pela sala azul, no bloco B, e quando ergo a cabeça a encontro bem no meio do corredor. Satisfeita, dou dois passos na direção da sala e tento sem sucesso guardar o mapa no meu bolso traseiro, e para a minha infelicidade, alguns cadernos caem no chão.— Merda! — xingo impaciente e me agacho para arrumá-los junto aos outros materiais. Logo encaro um belo par de sapatos lustrosos parados bem na minha frente. Penso em olhar quem quer que seja, mas antes que eu consiga fazer tal coisa, um líquido escuro e quente molha os meus cadernos, que ainda estão espalhados pelo chão. Meu sangue ferve imediatamente. — Mas, que merda voc
Kelly— O que você quer de mim, professor Adrien? — Tento não ser ríspida com ele. Ele dá de ombros.— Um pedido de desculpas. Nós começamos esse relacionamento errado. — Hein?!— Relacionamento, que relacionamento? — O corto outra vez. Ele cora literalmente e balbucia qualquer coisa sem fazer som. Parece nervoso.— Es... esse — gagueja apontando dele para mim. Eu me encosto na cadeira e cruzo os meus braços, ainda perdida na palavra "relacionamento". — Professor/ aluna. — explica e só então ele consegue respirar. — Sem falar que é muita falta de educação sua, senhorita Ferraço! — Continua me encarando com repreensão e mais firme dessa vez. — Nós franceses gostamos de agradar as pessoas, somos pessoas adoráveis e você, deveria saber disso. — Arqueio as sobrancelhas. — Além do mais, como havia dito antes, gostaria me desculpar pelo acidente que causei em seus cadernos, não custa nada aceitar o meu pedido de desculpas! — bufo de modo audível.— Se eu aceitar o seu pedido de desculpas, o
Kelly Na manhã seguinte eu estava quebrada. Elevei os braços e estiquei a coluna, sentindo os meus ossos estralar no mesmo instante. Entrei no banheiro e tomei um banho demorado para despertar e quando saí do banho, pus uma roupa confortável, pois ainda era cedo para ir à faculdade. Na cozinha, preparei uma porção de waffes, com uma fina camada de geleia de cereja e um bom café. Me sentei à mesa e encarei o meu prato, montado com muito esmero por mim, mas havia perdido a fome. Decidi que só o café me bastava e olhei pela janela, admirando a mais bela escultura que só a grande Paris podia me oferecer, a Torre Eiffel. Tomei um delicioso gole do café e só parei quando escutei os sons das vozes animadas no corredor do prédio. Pensei em bisbilhotá-los, ver a cara do jovem casal que se mudou para o apartamento em frente ao meu a poucos dias, mas desisti. Não é da minha conta. Me levantei da cadeira e peguei a refeição recém feita e ainda quentinha e pus em um recipiente de isopor, o envo
Kelly— Alguém aqui já esteve no Hawaii e viram aquelas belas havaianas lindas, dançando e fazendo aqueles movimentos graciosos, enquanto bebia uma água de coco gelada? — perguntou, disfarçando o seu incômodo com o oferecimento da aluna. Alguns alunos fizeram um não com a cabeça. Eu revirei os olhos. — Você, Ferraço? — Ele apontou para mim, me fazendo ajeitar o meu corpo na cadeira e engolir em seco. — Já comeu uma bela salada havaiana, servida dentro de um abacaxi, ou em uma enorme palha de palmeiras? — Olhei para os alunos, que aguardam a minha resposta e respirei fundo.— Não, eu… nunca estive no Hawaii — respondi com a voz falha. Adrien parecia satisfeito com a minha resposta. Ele sorriu e logo se pôs a interagir com os outros alunos. Minutos depois a sala de aula virou uma zona; uma vitrola antiga começou a tocar um tipo de hula e o professor pediu que os alunos dançassem a música. A pergunta é, o que toda essa merda tem a ver com a gastronomia?— Entrem no clima havaiano crianç
Adrien Estou ficando sem estratégias. Há algo na minha pêche que me faz sentir a necessidade de cuidar dela. Algo que a faz deixar bem claro de que não precisa de mim, mas no fundo eu sei que ela precisa. Há algo nela que me faz ser diferente e por incrível que pareça, eu me sinto mais desafiador perto dela, o que não é o meu normal. A parte ruim é que eu não consigo me aproximar da mulher sem fazer algum tipo de sujeira, sem irritá-la e isso me irrita também, porque eu quero uma aproximação com essa garota.— Quê, que isso? — Anne perguntou quando entrou em meu quarto e encarou as vestimentas nada singelas em meu corpo. Anne Lambertini é a minha irmã caçula, ela tem quase dezenove anos e assim como eu, fugiu um pouco do sistema da família Lamartine. Nossa família não é muito de aceitar certas decisões que sejam contrárias aos seus ideais. Pelo menos não da parte das mulheres e a Anne paga um preço muito alto por isso. Ela está passando alguns dias aqui em minha casa, por causa da ú
Adrien— Professor, você está simplesmente comestível essa manhã. — Melanie comentou de uma forma irreverente e maliciosa e me lançou um sorriso cheio de insinuações. Perdi toda a minha pose na mesma hora e senti o meu rosto queimar.— Que tal… focarmos… em nossa aula? — gaguejei e meio sem graça, puxei a respiração para tentar me recompor. Não culpo a minha aluna, se alguém da direção da faculdade me pagasse vestido assim, seria capaz de ser suspenso.Ah, l'amour! L'amour! L'amour!— Então professor, qual é a finalidade da fantasia? — Herbert perguntou e eu despertei dos meus devaneios. Tenho feito muito isso desde que ela surgiu na minha frente. Então algo me chamou a atenção. Eu inclinei a cabeça levemente para um lado e depois para o outro, olhando a Melanie praticamente debruçada em sua cadeira e uma bunda bem redonda, vestida em um jeans apertado, empinado de uma forma oferecida demais para o meu gosto. Ela não vê que isso é ridículo demais até mesmo para ela? Balancei a cabeça,
Kelly Alguns dias...— Olha vocês, estão tão lindos! — disse emocionada quando vi o casal de gêmeos do tio Petrus e da tia Simone na chama de vídeo. Todos estavam reunidos na sala dos meus pais, para fazer essa chamada. A Carolina com o seu namorado e a Naty com o dela. E pensar que papai e tio Oliver quase enfartaram quando as meninas apresentaram os meninos em um churrasco em família. E não pensem que foi tão fácil quanto foi comigo e o Felipe. Yan e Noah sabem o preço que pagaram com esses dois. Mas agora está tudo bem e o namoro deles já tem quase seis meses. Quantos aos gêmeos, isso sim, foi uma grande surpresa para todos, inclusive para os pais que estavam começando a organizar as suas vidas. Dimitri e Ives vieram de uma forma inesperada e prematura e se tornaram o xodó de todos na família. Cinco anos depois, tio Petrus e tia Simone conseguiram se firmar com a agência de segurança que tanto queriam e depois de tudo o que aconteceu, estou feliz que finalmente eles conseguiram ve