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Kelly

— O que você quer de mim, professor Adrien? — Tento não ser ríspida com ele. Ele dá de ombros.

— Um pedido de desculpas. Nós começamos esse relacionamento errado. — Hein?!

— Relacionamento, que relacionamento? — O corto outra vez. Ele cora literalmente e balbucia qualquer coisa sem fazer som. Parece nervoso.

— Es... esse — gagueja apontando dele para mim. Eu me encosto na cadeira e cruzo os meus braços, ainda perdida na palavra "relacionamento". — Professor/ aluna. — explica e só então ele consegue respirar. — Sem falar que é muita falta de educação sua, senhorita Ferraço! — Continua me encarando com repreensão e mais firme dessa vez. — Nós franceses gostamos de agradar as pessoas, somos pessoas adoráveis e você, deveria saber disso. — Arqueio as sobrancelhas. — Além do mais, como havia dito antes, gostaria me desculpar pelo acidente que causei em seus cadernos, não custa nada aceitar o meu pedido de desculpas! — bufo de modo audível.

— Se eu aceitar o seu pedido de desculpas, o senhor vai embora? — Agora ele arqueia as sobrancelhas loiras e em resposta, puxa uma cadeira para se sentar, sem nenhum convite, ficando de frente para mim.

— Mon Dieu, senhor é um termo muito velho, e eu nem sou tão velho assim. Quantos anos você tem? — Me ajeito na cadeira e me inclino um pouco, me aproximando da mesa e o encaro irritada.

— Não te interessa! E quer saber? Fica com essa mesa, com a torta, as batatas, não me importa! — Fico de pé imediatamente e começo a recolher as minhas coisas, saindo da lanchonete sem me preocupar com a sua reação, ou ouvir as suas idiotices. Mas que merda! Será que ele não vê que não quero saber de nada?  Não quero a sua companhia, não quero conversar com ele e tão pouco um amigo. Eu preciso ficar sozinha com o meu passado, com o meu fracasso e com as minhas dores. Vou direto para o campus, para a próxima aula, que agradeço a Deus não ser desse professor pegajoso.

****

A sala de aula está praticamente vazia, pois, ainda temos mais vinte minutos até a próxima aula. Aproveito para abrir a primeira página do meu caderno e encontro nela a foto do Lipe, a única que sobrou, pois, os meus pais confiscaram todas na tentativa de amenizar o meu sofrimento. O que eles não sabem é que a minha dor não estava naquelas imagens e sim, dentro de mim. Perdida em lembranças, deslizo o meu indicador no seu sorriso lindo e as suas palavras doces imediatamente ecoaram dentro de mim.

— Achei isso aqui — Ele ergueu um colar de pérolas e me sorriu. — Posso pôr em você, senhorita? — Meu sorriso se alargou.

— Sim, por favor! — falei, afastando os meus cabelos para o lado e ele pôs o colar no meu pescoço. Lipe me olhou deslumbrado por um tempo.

— Ficou lindo em você! — sussurrou e já não estava brincando como antes. Nossos olhos se encontraram e se fixaram um no outro. Meu sorriso aos poucos foi se apagando e o dele também. Lipe segurou os meus ombros e me virou de frente pra ele. — Não me leve a mal, Kelly — sussurrou, erguendo sua mão e com ela acariciou o meu rosto. — Não estou querendo me aproveitar desse momento que estamos sozinhos aqui, mas...

— O quê? — perguntei com um som baixo demais. Ele deu mais um passo em minha direção e agora estávamos tão próximos um do outro.

— Eu quero... quer dizer, eu posso... te beijar?

(...)

— Bom dia! — Uma senhora entra na sala, me despertando de mais um sonho acordado e eu fecho o caderno, escondendo a imagem do amor da minha vida, sentindo o meu peito amargurado e cheio de saudades. Deus, se eu pudesse voltar no tempo. Se eu não tivesse saído da sua festa naquela noite. Se... são tantos sis, tantos arrependimentos. — Eu sou a professora Lettiê François e na aula de hoje vamos aprender sobre segurança no trabalho. Alguém aqui tem ideia de quantos acidentes podem acontecer em uma cozinha por causa de uma breve distração? — A aula não era atrativa, e confesso que algumas vezes me distrai com momentos que não conseguia apagar da minha mente. Essas lembranças é o que me mantém viva e ativa, e ao mesmo tempo elas me machucam também. No final da tarde, estou de volta ao apartamento e confesso que estou emocionalmente e fisicamente cansada, louca por uma ducha quente e uma cama macia.

***

Quando termino o meu jantar, me esforço para limpar os pratos e deixar a cozinha arrumada. Meu pai sempre me ensinou que um bom chef sempre mantém tudo em seus devidos lugares e eu sei que aprendi com o melhor. Sigo para o meu quarto praticamente me arrastando e quando finalmente chego a cama, ainda encontro forças para estudar e recapitular as aulas de hoje. Já é quase meia-noite quando apago a luz do abajur e ponho a minha máscara, para enfim ter mais uma noite de sonhos. Me viro para o lado e ajeito o lençol, cobrindo o meu corpo e finalmente posso relaxar, e foi aí que tudo aconteceu.

“Mas que porra é essa?”

Indago internamente enquanto retiro a máscara e encaro a escuridão do meu quarto, me sentando em seguida por causa do maldito som alto ecoando uma música francesa, praticamente dentro do meu quarto. Quem é o louco, ou a louca que está ouvindo música a uma hora dessas?  Pulo para fora da cama e saio do meu quarto a passos largos, quase que atropelando os móveis a minha frente. Visto um casaco de tecido fino sobre o meu pijama de ceda, amarro pela cintura e vou até a porta. No entanto, quando chego a estender uma mão na maçaneta, a música simplesmente para e uma sequência de risadas femininas ecoa alto no apartamento em frente ao meu. Respiro fundo, muito fundo.

— Ah, j’adore cette chanson! Laisse la musique jouer. — A voz feminina diz manhosa, quase em uma súplica e depois volta a rir.

Non chérie, il est tard. — Uma voz grossa e masculina responde com um tom doce e carinhoso.

— Je t'aime! — Ela sussurra.

— Je t'aime aussi! — Porra! Me afasto lentamente da porta, me sentindo arrasada e seguro as lágrimas. Volto para o meu quarto e me jogo na cama. A música volta a tocar, mas dessa vez com um tom mais baixo e suave, e é possível escutar os cochichos e as risadinhas dos dois através da parede. Sorri por dentro. Sei bem o que é estar apaixonada e eu jamais estragaria isso entre eles. O barulho do casal dura pouco tempo e a música foi desligada já na metade, mas o sono não veio mais. O cansaço e a fadiga não me abandonaram e mesmo assim, eu vi mais um dia amanhecer na grande Paris.

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Vocabulário;

Mon Dieu – Meu Deus

j’adore cette chanson! Laisse la musique jouer – Eu adoro essa música! Deixa tocar.

Non chérie, il est tard – Não, querida. Já está tarde.

Je t'aime! _ Eu te amo!

Je t'aime aussi! _ Eu te amo mais!

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