Capítulo 2

Março de 2015

Catarina

Hoje, faz dez anos que me casei com Heitor. Ou seja, é aniversário de uma década em que vivo no Inferno. Desde a primeira noite, ele só piorou. Cada dia mais agressivo, raivoso e desequilibrado. A impressão que tenho é que passa o dia encarnando um personagem e, quando chega em casa, desconta em mim tudo aquilo que foi obrigado a guardar.

Algumas vezes, basta olhá-lo para dar início a xingamentos, que logo se transformam em tapas, socos e pontapés. Durante todo esse tempo, sou escrava das suas vontades e sirvo de saco de pancada para as suas frustrações. Pesquisei a fundo e descobri que ele tem o chamado Transtorno da Aversão Sexual, que faz com que as pessoas realmente tenham horror a qualquer contato íntimo. Mas esse é apenas um pequeno problema do meu marido; algo que acontece com muitas pessoas boas todos os dias. A real questão do Heitor é a sua maldade: ele é frio, agressivo e cruel. Tenho tanto medo dele que deixo uma chave escondida embaixo do capacho da porta; penso que pode ser útil na hora de pedir socorro para algum vizinho.

Na última década, a única coisa que pude fazer por mim mesma foi continuar os estudos, formando-me em Administração de Empresas. No entanto, fui proibida de trabalhar. Claro, se ganhasse o meu próprio dinheiro, poderia fazer um pé de meia e me libertar. E isso ele não permitiria. Então, sem que ele perceba, guardo cada centavo que economizo com os gastos da casa: sobras das compras de mercado, troco dos pedidos da farmácia, pagamentos de consertos que nunca precisaram ser feitos. Tudo vai para o meu cofre, que, na realidade, é um saco dentro do pote de farinha. Um lugar que ele, com certeza, nunca vai mexer.

Durante o dia, mergulho nos meus livros e viajo junto com os personagens dos romances. Eles são o meu alento e a minha válvula de escape; o meu consolo e a minha diversão. Adoro ler romances eróticos e, como uso o Kindle, não corro o risco de uma capa mais ousada chamar a atenção do Heitor.

Algumas vezes, quando acompanho um livro mais quente, espero ele sair de casa para me tocar. É assim que encontro o prazer, já que, apesar dos meus trinta e três anos de idade, nunca fiz sexo com outra pessoa. Quer dizer, tenho o meu vibrador, uma das únicas estripulias que fiz com as minhas economias. Ele mora dentro da minha gaveta de calcinhas, outro local que Heitor nunca tocará, pois tem nojo só de pensar nas minhas roupas íntimas.

Duas vezes por semana, vou visitar meus pais, que continuam morando na casa da minha infância, com a diferença que agora ela pertence, legalmente, ao meu marido. Papai continua com o seu tratamento para a Hepatite C crônica, mas, mesmo com o uso combinado de Interferon e Ribavirina, não foi possível alcançar resultados muito satisfatórios. Quando ele começou a se medicar, já estava doente há muito tempo, sem saber, e tinha desenvolvido uma cirrose compensada. Para piorar, ao longo dos últimos anos, ele passou a sofrer de insuficiência renal permanente. Agora, faz diálise a cada dois dias, seguindo uma rotina cansativa e dolorosa, mas extremamente necessária para a sua sobrevivência.

***

E assim vou levando a minha vida, vendo os dias se arrastarem e sonhando com a minha liberdade. Só que os sonhos terão de esperar até amanhã.

Hoje, precisarei ir a um jantar na casa do prefeito, com toda pompa e circunstância. Será em homenagem a uma ilustre família do Rio de Janeiro, que acaba de se mudar para Mendes. O patriarca é fazendeiro e, pelo que pude entender, podre de rico.

Olho as roupas estendidas no armário e paro em um vestido azul marinho elegante, sem decotes e com o comprimento abaixo dos joelhos, bem do jeito que Heitor aprova. A noite promete ser longa, e vou ter de aguentá-la até o fim, com o sorriso de sempre colado no meio da cara.

***

Já são nove horas quando chegamos à casa do prefeito Euclides. Entramos e, logo de imediato, vejo a decoração rebuscada. Pequenas luzes circundam vários móveis, e candelabros são distribuídos em diversas mesas, com longas e refinadas velas. As toalhas de linho são tão brancas que chegam a incomodar os olhos, assim como as flores que enfeitam todo o ambiente. Um pianista toca a música de fundo, completando o cenário sofisticado.

Cumprimento todos os presentes e começo uma conversa amistosa com Helena, a primeira-dama. Enquanto elogio a decoração e a parabenizo por tudo estar impecável, Heitor se aproxima para anunciar a chegada dos homenageados.

Primeiro, vejo um homem na faixa dos 50 anos, bem vestido em um paletó cinza escuro e com o cabelo arrumado com gel. Em seguida, fico impressionada com a elegância da sua mulher, deslumbrante em um vestido levemente dourado. Mas o que arrebata a minha atenção é o rapaz que vem atrás deles: moreno, alto, musculoso e com um cabelo castanho que parece cair propositalmente no rosto. Percebo a beleza dos seus traços, a exuberância da sua boca e fico paralisada com a intensidade dos seus olhos. Nunca vi um verde mais bonito: límpido e brilhante como uma esmeralda.

Fico imediatamente nervosa por estar prestando tanta atenção no menino e tento disfarçar a minha admiração. Então, Euclides começa a fazer as apresentações.

– Esses são Roberto e Cristiane Albuquerque, os mais novos moradores aqui da cidade. E aquele é Theo, filho deles. Essa é Catarina Leal, esposa do nosso ilustre juiz Heitor Vasconcelos.

– É um prazer conhecê-los. Sejam bem-vindos, e espero que sejam muito felizes aqui em Mendes. Temos um clima maravilhoso – digo, enquanto os cumprimento.

– Muito obrigado pela receptividade – afirma Roberto.

– É um prazer conhecê-la – diz Cristiane.

– Boa noite – dispara Theo.

São apenas duas palavras curtas que saem da sua boca, mas já suficientes para mostrar a potência da sua voz: grossa e um pouco rouca, como se ele tivesse acabado de acordar. De perto, os olhos de Theo são ainda mais impressionantes, límpidos, vivos. Parecem concentrar toda a luz do ambiente, ofuscando todas as coisas à sua volta.

Passo os minutos seguintes controlando a minha respiração e fingindo prestar atenção nas conversas sem sentido. Olho para o copo que seguro na minha mão, encaro o meu próprio sapato, admiro cada item da decoração. Qualquer coisa para tirar a vontade de olhar na direção do rapaz.

Na hora do jantar, os lugares estão marcados na mesa e, da minha cadeira, fico quase em frente a Theo. Finjo descontração e sorrio sem vontade, pensando em quantas horas faltam para a noite chegar ao fim. Todos começam a comer a entrada, e, embora eu finja não me abalar, percebo a força dos olhos de Theo em mim. Ele parece me espreitar, com discrição. O prato principal chega, depois a sobremesa, e eu quase não consigo comer. A minha falta de apetite é notada pelo anfitrião.

– Catarina, você não gostou do menu? Eu percebi que não comeu praticamente nada! Não me diga que está fazendo dieta!

– Não, Euclides. Estava tudo maravilhoso. E não estou fazendo dieta, não. É que hoje estou um pouco indisposta, com dor de estômago. Nada demais, não se preocupe.

Heitor me olha com ódio. Com certeza, serei punida por não ter comido o suficiente e por ter gerado constrangimento no jantar. Sinto um frio na espinha quando ele me encara de forma ameaçadora, dizendo, sem palavras, muito mais do que eu gostaria de entender. O silêncio é cortado por Helena.

– Mal-estar? Será que é gravidez? Um filho seria uma bênção depois de tantos anos de casados, não é?

Empalideço com a sugestão da primeira-dama. Heitor tem horror a sexo e também à ideia de ser pai. Detesta crianças tanto quanto a forma como elas são concebidas. Ele sempre diz que se casou comigo para abafar os falatórios, mas que filhos estavam totalmente fora de cogitação.

         – Imagina, não é isso. É realmente um problema de estômago, que já tenho há algum tempo. Às vezes, como algo mais pesado e a indisposição reaparece. Mas, mesmo com esse inconveniente, não pude resistir à sobremesa. Que maravilha! A receita é sua? – E, ao falar do doce, consigo desviar o assunto e percebo que volto, enfim, a respirar.

         A noite parece se arrastar, enquanto eu mantenho a compostura e tento não fazer nada errado. Já basta o episódio do jantar para garantir que a madrugada seja terrível. Ao mesmo tempo que desejo que o evento acabe, tenho medo da volta para casa. Eu sei o que me espera.

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