Capítulo 6

Catarina

         Chego à casa dos meus pais ainda cedo. Há duas noites, não consigo dormir, mexida com o beijo de Theo e preocupada em ter de ir à casa dele no sábado. Ao olhar o lugar em que passei a minha infância, observo a má conservação da fachada. Está velha e mal cuidada como os seus habitantes, infelizmente. Embora Heitor não deixe faltar comida e remédio para os meus pais, todo o resto fica de fora. Eles não têm qualquer tipo de conforto ou luxo: apenas o básico para que sobrevivam com dignidade.

         Encontro papai deitado no sofá surrado da sala, com a pele meio amarelada. Está ainda mais abatido do que na última vez em que o visitei, com olheiras que contornam as pálpebras e lhe dão uma aparência cansada. É como se continuar vivo exigisse dele um esforço sobre-humano, que arranca a sua energia e mina as suas forças.

         Minha mãe vem do quarto, com um vestido roxo, e também reflete exaustão na sua fisionomia. Oferece um café, e nos sentamos na mesa da cozinha, como de costume.

         – Você não está com uma cara boa, Catarina. O que aconteceu? Brigou de novo com o seu marido? Eu já te avisei, filha, que você reclama de barriga cheia. Tem mais é que fazer todas as vontades do Heitor, agradá-lo e ser grata por tudo o que ele faz por todos nós.

         Aquela conversa tenebrosa recomeça. É assim quase todas as vezes em que estamos juntos. Minha mãe e o meu pai defendem o genro e condenam qualquer tentativa de desabafo que eu possa fazer. Eu é que sou a mulher ingrata, a pessoa teimosa que não sabe respeitar o marido. Por mais que eu tenha sido criada de maneira antiquada e muito exigente, esperava que os meus pais vissem o meu sofrimento e desejassem que eu saísse do inferno em que vivo. Mas não. Eles me repreendem, me criticam e até mesmo me culpam. Foram os únicos a verem marcas de pancadas no meu corpo até hoje e, ao invés de ficarem indignados, perguntaram: “O que você aprontou para merecer isso?”.

         Resolvo mudar de assunto porque, com toda certeza, falar sobre os meus sentimentos e debater o meu casamento não são boas ideias, sobretudo após os últimos acontecimentos da minha vida.

         – Não, mãe, não briguei com o Heitor. Apenas tive insônia nas duas últimas noites e, por isso, estou cansada. Nada demais. Se continuar tendo dificuldade para dormir, vou ao médico. E como foi a diálise do papai ontem?

         – O mesmo de sempre. Horas e horas ligado àquela máquina, coitado. Mas fazer o quê? Ele precisa disso para sobreviver...

         – Sim, mãe, precisa. E a senhora tem que manter a dieta dele bem rígida. O médico sempre diz que uma alimentação correta é fundamental para ele.

         Converso com a minha mãe por um bom tempo e vou para a sala ficar perto de papai. Ele assiste à TV e continua na mesma posição de quando cheguei.

         – E aí, seu Osório, como o senhor se sente? – pergunto, tentando forçar uma animação que não sinto de verdade.

– O mesmo traste, velho e doente, de sempre. Um encosto na vida do seu marido, que só tem despesas comigo e ainda precisa aguentar a sua ingratidão.

– Pai, não vamos começar com isso de novo. Por favor. Me conta, como tem se adaptado às novas medicações que o doutor passou?

– Elas têm me deixado com sono, meio mole, mas o médico avisou que isso aconteceria no começo.

– O importante é o senhor fazer tudo direitinho, seguir todas as orientações, tomar os medicamentos na hora certa e, claro, se alimentar corretamente.

– É só o que eu faço, Catarina. Só o que faço.

         Fica um silêncio desagradável no cômodo, como se não tivéssemos mais assunto. A sensação que tenho é que, de uma certa maneira, a minha presença o incomoda. Então, ele me diz:

         – Filha, melhor você ir para a sua casa, né? Você tem comida para fazer e um marido para cuidar. Já demorou tempo demais, e não quero que o Heitor fique sem alguma coisa porque você ficou aqui em casa.

         E, com isso, ele me despacha, como sempre faz, me mostrando o que realmente sou: absolutamente sozinha.

***

O sábado chega depressa. Sinto um misto de pavor e ansiedade pelo evento na casa dos Albuquerque. Tomo um banho demorado, arrumo o cabelo com chapinha, passo uma maquiagem discreta e pego o vestido que escolhi. É um modelo elegante de cor cereja, com gola canoa e saia drapeada que, apesar de discreto, favorece as minhas curvas. Coloco um colar com um pingente de quartzo, também cereja, que realça a minha produção, sem parecer exagerado. Estou nervosa, agitada, com a sensação de que vou explodir. Quero que o relógio marque logo 11h30 e, ao mesmo tempo, rezo para que o tempo congele.

Lembro que terei de visitar o chalé de Heitor no dia seguinte, como sempre faço de tempos em tempos, e chego a imaginar Theo ali comigo, dividindo aquele espaço aconchegante e abandonado. Percebo que estou sonhando acordada e repreendo a minha própria imaginação, concentrando-me no evento que me aguarda.

***

Chegamos à casa de Theo, e vejo flores coloridas enfeitando parte do jardim e ornamentando o pórtico de entrada. Garçons recepcionam os convidados com taças de champagne, enquanto um trio de músicos toca jazz no fundo do cômodo. Reparo que a casa ficou lindíssima: moderna, sofisticada e muito aconchegante. Nas paredes, há fotos da família de diferentes épocas, e me pego admirando algumas de Theo ainda pequeno. Depois vejo imagens mais atuais, nas quais ele está sem camisa, surfando, com um físico de dar inveja a qualquer marmanjo. Meu olhar percorre cada canto, à procura do menino.

– Heitor e Catarina, sejam bem-vindos – Cristiane diz, se aproximando de nós. Entrego o presente que comprei em Vassouras e trocamos algumas palavras sobre a reforma. Elogio a decoração, parabenizo pela festa e reforço o meu papel de esposa educada e vizinha gentil.

Depois de falar com Roberto, o prefeito Euclides e a primeira-dama Helena, começo a ficar aflita com a ausência de Theo. Será que ele não vem por minha causa? Pode ser que esteja me evitando! Ou, então, simplesmente tem coisas melhores a fazer em um sábado do que ficar em uma festa com um bando de velhos. Esse pensamento me entristece, pois, apesar do medo, ansiava por esse encontro. Enquanto estou confabulando sozinha, sinto que o ar mudou à minha volta e só preciso me virar para confirmar que ele entrou na sala.

Ele está sensacional com uma blusa polo vermelha e calça jeans, com o cabelo molhado. Os nossos olhares se cruzam, e sinto um calor invadir o meu peito, consumir o meu ar e dificultar a minha respiração. Respiro fundo para não demonstrar a inquietação que sinto, enquanto ele se aproxima, mais e mais. Fala com Heitor e depois vem na minha direção, sem desviar os olhos dos meus.

– É um prazer recebê-la. Fique à vontade na nossa casa e, se precisar de alguma coisa, estou à disposição – diz, enquanto beija a minha mão.

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