Catarina
Chego à casa dos meus pais ainda cedo. Há duas noites, não consigo dormir, mexida com o beijo de Theo e preocupada em ter de ir à casa dele no sábado. Ao olhar o lugar em que passei a minha infância, observo a má conservação da fachada. Está velha e mal cuidada como os seus habitantes, infelizmente. Embora Heitor não deixe faltar comida e remédio para os meus pais, todo o resto fica de fora. Eles não têm qualquer tipo de conforto ou luxo: apenas o básico para que sobrevivam com dignidade.
Encontro papai deitado no sofá surrado da sala, com a pele meio amarelada. Está ainda mais abatido do que na última vez em que o visitei, com olheiras que contornam as pálpebras e lhe dão uma aparência cansada. É como se continuar vivo exigisse dele um esforço sobre-humano, que arranca a sua energia e mina as suas forças.
Minha mãe vem do quarto, com um vestido roxo, e também reflete exaustão na sua fisionomia. Oferece um café, e nos sentamos na mesa da cozinha, como de costume.
– Você não está com uma cara boa, Catarina. O que aconteceu? Brigou de novo com o seu marido? Eu já te avisei, filha, que você reclama de barriga cheia. Tem mais é que fazer todas as vontades do Heitor, agradá-lo e ser grata por tudo o que ele faz por todos nós.
Aquela conversa tenebrosa recomeça. É assim quase todas as vezes em que estamos juntos. Minha mãe e o meu pai defendem o genro e condenam qualquer tentativa de desabafo que eu possa fazer. Eu é que sou a mulher ingrata, a pessoa teimosa que não sabe respeitar o marido. Por mais que eu tenha sido criada de maneira antiquada e muito exigente, esperava que os meus pais vissem o meu sofrimento e desejassem que eu saísse do inferno em que vivo. Mas não. Eles me repreendem, me criticam e até mesmo me culpam. Foram os únicos a verem marcas de pancadas no meu corpo até hoje e, ao invés de ficarem indignados, perguntaram: “O que você aprontou para merecer isso?”.
Resolvo mudar de assunto porque, com toda certeza, falar sobre os meus sentimentos e debater o meu casamento não são boas ideias, sobretudo após os últimos acontecimentos da minha vida.
– Não, mãe, não briguei com o Heitor. Apenas tive insônia nas duas últimas noites e, por isso, estou cansada. Nada demais. Se continuar tendo dificuldade para dormir, vou ao médico. E como foi a diálise do papai ontem?
– O mesmo de sempre. Horas e horas ligado àquela máquina, coitado. Mas fazer o quê? Ele precisa disso para sobreviver...
– Sim, mãe, precisa. E a senhora tem que manter a dieta dele bem rígida. O médico sempre diz que uma alimentação correta é fundamental para ele.
Converso com a minha mãe por um bom tempo e vou para a sala ficar perto de papai. Ele assiste à TV e continua na mesma posição de quando cheguei.
– E aí, seu Osório, como o senhor se sente? – pergunto, tentando forçar uma animação que não sinto de verdade.
– O mesmo traste, velho e doente, de sempre. Um encosto na vida do seu marido, que só tem despesas comigo e ainda precisa aguentar a sua ingratidão.
– Pai, não vamos começar com isso de novo. Por favor. Me conta, como tem se adaptado às novas medicações que o doutor passou?
– Elas têm me deixado com sono, meio mole, mas o médico avisou que isso aconteceria no começo.
– O importante é o senhor fazer tudo direitinho, seguir todas as orientações, tomar os medicamentos na hora certa e, claro, se alimentar corretamente.
– É só o que eu faço, Catarina. Só o que faço.
Fica um silêncio desagradável no cômodo, como se não tivéssemos mais assunto. A sensação que tenho é que, de uma certa maneira, a minha presença o incomoda. Então, ele me diz:
– Filha, melhor você ir para a sua casa, né? Você tem comida para fazer e um marido para cuidar. Já demorou tempo demais, e não quero que o Heitor fique sem alguma coisa porque você ficou aqui em casa.
E, com isso, ele me despacha, como sempre faz, me mostrando o que realmente sou: absolutamente sozinha.
***
O sábado chega depressa. Sinto um misto de pavor e ansiedade pelo evento na casa dos Albuquerque. Tomo um banho demorado, arrumo o cabelo com chapinha, passo uma maquiagem discreta e pego o vestido que escolhi. É um modelo elegante de cor cereja, com gola canoa e saia drapeada que, apesar de discreto, favorece as minhas curvas. Coloco um colar com um pingente de quartzo, também cereja, que realça a minha produção, sem parecer exagerado. Estou nervosa, agitada, com a sensação de que vou explodir. Quero que o relógio marque logo 11h30 e, ao mesmo tempo, rezo para que o tempo congele.
Lembro que terei de visitar o chalé de Heitor no dia seguinte, como sempre faço de tempos em tempos, e chego a imaginar Theo ali comigo, dividindo aquele espaço aconchegante e abandonado. Percebo que estou sonhando acordada e repreendo a minha própria imaginação, concentrando-me no evento que me aguarda.
***
Chegamos à casa de Theo, e vejo flores coloridas enfeitando parte do jardim e ornamentando o pórtico de entrada. Garçons recepcionam os convidados com taças de champagne, enquanto um trio de músicos toca jazz no fundo do cômodo. Reparo que a casa ficou lindíssima: moderna, sofisticada e muito aconchegante. Nas paredes, há fotos da família de diferentes épocas, e me pego admirando algumas de Theo ainda pequeno. Depois vejo imagens mais atuais, nas quais ele está sem camisa, surfando, com um físico de dar inveja a qualquer marmanjo. Meu olhar percorre cada canto, à procura do menino.
– Heitor e Catarina, sejam bem-vindos – Cristiane diz, se aproximando de nós. Entrego o presente que comprei em Vassouras e trocamos algumas palavras sobre a reforma. Elogio a decoração, parabenizo pela festa e reforço o meu papel de esposa educada e vizinha gentil.
Depois de falar com Roberto, o prefeito Euclides e a primeira-dama Helena, começo a ficar aflita com a ausência de Theo. Será que ele não vem por minha causa? Pode ser que esteja me evitando! Ou, então, simplesmente tem coisas melhores a fazer em um sábado do que ficar em uma festa com um bando de velhos. Esse pensamento me entristece, pois, apesar do medo, ansiava por esse encontro. Enquanto estou confabulando sozinha, sinto que o ar mudou à minha volta e só preciso me virar para confirmar que ele entrou na sala.
Ele está sensacional com uma blusa polo vermelha e calça jeans, com o cabelo molhado. Os nossos olhares se cruzam, e sinto um calor invadir o meu peito, consumir o meu ar e dificultar a minha respiração. Respiro fundo para não demonstrar a inquietação que sinto, enquanto ele se aproxima, mais e mais. Fala com Heitor e depois vem na minha direção, sem desviar os olhos dos meus.
– É um prazer recebê-la. Fique à vontade na nossa casa e, se precisar de alguma coisa, estou à disposição – diz, enquanto beija a minha mão.
TheoFico alucinado pela imagem de Catarina em um vestido cereja, que marca toda a perfeição do seu corpo. O cabelo está mais liso e o rosto tem uma maquiagem leve, que ressalta a beleza dos seus traços. Vou cumprimentá-la com uma certa cerimônia, mas todos os meus instintos querem arrastá-la daquela sala, conduzi-la ao meu quarto e beijá-la por horas a fio. Seguro o ímpeto de tomá-la para mim e finjo uma tranquilidade que, definitivamente, não sinto.***Passo boa parte da noite espreitando Catarina e tentando achar uma brecha para ficarmos a sós. Quando a vejo caminhando pelo jardim, com uma taça na mão, imediatamente começo a procurar pelo babaca do Heitor. Mesmo sem conhecê-lo direito, alguma coisa me diz que tem algo errado com aquele cara. E não é apenas o ci
CatarinaMando a mensagem para Theo e, assim que ele a visualiza, a apago. Faço questão de esvaziar a lixeira e confiro, várias vezes, se me desfiz de todos os rastros. Ainda não acredito que estou fazendo isso; que vou mesmo encontrá-lo no chalé. Sinto um misto de medo e empolgação, com a adrenalina subindo pelo meu corpo e me deixando com um frio gostoso na barriga.***Chego em casa imaginando como será vê-lo no dia seguinte e projetando mil cenários diferentes. Mas preciso de lucidez: não posso ceder à tentação, pois a minha vida e a dos meus pais estão em jogo. Heitor está calado desde a saída da festa, o tempo todo com o semblante fechado. Alguma coisa no brunch deve tê-lo desagradado e espero, muito, que não tenha sido eu.Ele vai até a co
Theo Fazer amor com Catarina é como nascer de novo. Eu nunca me senti tão vivo, tão ligado, tão feliz. Confesso que hesitei quando vi manchas roxas em seu corpo, mas não quis estragar o momento. Aquele desgraçado deve machucá-la! Depois vou procurar saber o que ele faz com ela e tenho medo de não responder por mim. Mas, por ora, vou me concentrar em adorá-la como ela merece. Quero que a tarde de hoje seja inesquecível. *** Já são quase cinco da tarde quando nos despedimos, exaustos e satisfeitos. Eu saio primeiro para não levantar suspeitas e observo tudo à minha volta para garantir que não sou visto. Ando até o carro como se estivesse flutuando, pensando no que acabou de acontecer. Ao mesmo tempo que estou em êxtase, sinto uma pontada por deixá-la para trás, principalmente sabendo que aquele covarde pode atacá-la novamente. Preciso proteger Catarina de alguma forma. O que será que
CatarinaAs últimas semanas com Theo têm sido um sonho. Nunca me senti tão bonita, sexy e desejada na vida. Mesmo sabendo que o nosso relacionamento é proibido e tendo de esconder tudo o que sinto, eu me sinto inteira, realizada, bem tratada. E não é apenas o sexo, que é simplesmente sensacional. São os carinhos, os olhares, os sorrisos e, às vezes, até os silêncios. Nunca pensei que fosse amar a ausência de palavras, mas até ela me traz felicidade.Tenho tido um novo estímulo para juntar dinheiro e pensar em estratégias de escape. Depois de experimentar o amor, tenho ainda mais fôlego para lutar pela minha liberdade.***Estou assistindo à televisão no domingo à noite, já ansiosa pelo encontro de amanhã, quando Heitor entra no quarto pisa
Theo Eu me despeço de Catarina com um beijo apaixonado e volto para o trabalho pensando no que dissemos um para o outro. É a primeira vez que as palavras “eu te amo” saem da minha boca para uma mulher, então elas têm um significado gigante para mim. Apesar de tudo o que teremos de enfrentar para ficar juntos, amar é bom demais. Pareço aqueles galãs de comédias românticas bem clichês, mas não posso evitar: vejo tudo mais colorido e enxergo sentidos múltiplos até nas coisas mais banais. Eu me tornei tudo aquilo que tanto debochava, e o pior é que tenho muito orgulho disso. Quero amadurecer, ganhar dinheiro, ser um homem completo para Catarina. Desejo me casar com ela um dia, ter filhos, construir uma família repleta de amor. Acima de tudo, quero alegrar os seus dias e apagar, pouco a pouco, todo o horror que ela viveu em todos esses anos ao lado daquele crápula do Heitor.
Catarina Depois que Theo sai pela porta, arrumo o chalé para não deixar vestígios da nossa presença, como sempre faço quando nos encontramos. Olho tudo em volta e, em cada canto, revejo uma cena que me dilacera: nós nos amando, rindo, brincando. Foi tudo tão intenso e tão lindo, que eu realmente acreditei que a minha vida podia ser diferente. Mas era apenas uma grande mentira. Saio de lá me sentindo suja e absolutamente quebrada. Quero chegar em casa, me jogar na cama e apagar. Quem sabe dormindo eu consiga abafar essa dor que me consome.***Hoje, faz cinco semanas que Theo foi embora. Durante todo esse tempo, tenho sido uma espécie de zumbi. Faço as coisas de maneira automática, sem nada sentir ou p
Theo Tem várias semanas que estou em Paris e tudo o que consigo fazer é vagar pela cidade, meio sem rumo. A saudade de Catarina só aumenta, assim como o temor de que ela esteja sofrendo nas mãos de Heitor. Todos os dias, quando acordo, corro para a Internet e pesquiso as notícias dos jornais do Rio de Janeiro, Mendes, Vassouras, Barra Mansa e adjacências. Quero ter certeza de que não tem escândalo nem tragédia envolvendo um juiz e, principalmente, uma mulher chamada Catarina Leal. Sonho com Cat quase todas as noites: às vezes, sonhos românticos; outras, pesadelos terríveis. Acordo suado, gritando, me debatendo na cama. Sinto que emagreci desde que cheguei aqui porque a tristeza não me deixa sentir fome. Meu pensamento voa longe e quero saber como ela está. Será que ainda me odeia? Será que sobrou alguma coisa do seu amor? *** Acordo decidido a erguer a cabeça e parar de me lamentar
Catarina Ao chegar à casa dos meus pais e deixo o carro no lugar de sempre, pela segunda vez no dia de hoje. Entro primeiro e recebo um olhar de espanto do meu pai. – Catarina? O que você está fazendo aqui? Espero que não tenha vindo voltar com aquela conversa – ele fala, sem ver Heitor atrás de mim. Quando meu marido entra no seu campo de visão, sinto que fica aliviado. – Fui eu que trouxe a Catarina – sentencia Heitor, devagar, enquanto fecha a porta. Em seguida, tudo acontece muito rápido. Ele segura os meus braços, com força, me levando até uma cadeira no canto da sala. Depois, me amarra com uma corda que tira de dentro da bolsa que está em sua mão. Eu começo a gritar, espernear, mas ele é mais forte do que eu. Meu pai fica olhando, completamente inerte, enquanto sou presa – como um bicho – bem na sua frente. A gritaria desperta a atenção da minha mãe, que vem lá de dentro assustada. – Que