Capítulo 08

Quando deu três da manhã decidi que realmente já era hora de ir pra casa. Para não incomodar eu pedi um Uber e o Mario me acompanhou até o lado de fora. Compartilhei a rota com o Mario, é uma segurança já que o Uber é homem e sabemos que a taxa de estupro e feminicidio só aumenta a cada dia. Coloquei meu fone no máximo, sentei atrás do banco do motorista e fiquei imersa em meu mundo até chegar à frente da minha casa.

— Muito obrigada, seu João. — Falei para o motorista que eu já sabia o nome, ele tinha sido total simpático e escutado minhas reclamações da noite, e ainda cantamos juntos uns forrós doidos. Desci e fui até a janela da frente. Abri a bolsa e tirei meu cartão de débito. — No débito. — Ele assentiu, eu paguei e esperei o carro dar a ré e ir embora. Notei a casa vizinha a minha frente. Tirei meus sapatos os pegando na mão agora, meus pés estavam doloridos. 

Suspirei. O álcool estava fazendo bastante efeito agora. Parei por alguns segundos e me virei para a minha casa. Um pouco muito tonta. Ok. Errei alguns passos? Errei. Mas consegui chegar até a frente da porta. Abri minha bolsa pra procurar a chave. DROGA. Não estava achando. Suspirei mais uma vez. Lembrei que havia esquecido em cima da minha escrivaninha.

— DROGA! — Falei batendo na testa. Que burra. Eram quase quatro da manhã. Lembrei da porta dos fundos, rodeei a casa e retirei um misse de dentro da minha bolsa, sempre fica lá. Abri a porta do fundo tentando fazer o mínimo de barulho e apoiada na parede subi as escadas e segui caminho até meu quarto.

Fui até a varanda, o céu estava com um acinzentado lindo e isso me abriu uma enorme vontade de capturar este momento. Peguei minha câmera que estava em cima da minha poltrona e liguei. Esperei iniciar, mirei no céu e bati uma foto, sorri enquanto analisava a linda imagem que havia tirado. Claro, estava um pouco embaçado pelo alto teor de álcool tomando conta da minha visão, mas quando eu ficasse sã, amaria essa foto. Joguei-me na poltrona por um momento encarando aquele céu acima de mim, lindo! Fiquei ali por alguns minutos, escutando musica e admirando o céu clareando. Quando não agüentei mais, cambaleei até minha cama, não sem antes me bater no vidro da varanda. E apaguei. 

MEYER

— Sim, Vati. — Falei andando de um lado para o outro no quarto utilizando o termo que chamo meu pai em minha língua nativa. — Eu entendi papai. 

— Você cuidou de tudo? — Meu Vati perguntou. Sua voz grossa e autoritária só me deixava com mais vontade de desligar o telefone.

— Cuidei Vati. Cuidei. São três da manhã. Estou cansado. Podemos conversar mais tarde? — Perguntei bufando inaudivelmente.

— Grandes homens não dormem, Meyer. Tenha isso em mente. — Meu pai advertiu.

— Eu sei papai, eu sei. — Suspirei. — O Senhor me diz isso o tempo todo. Mas dormir é fundamental para a nossa saúde biológica e a diferença em nosso fuso horário mostra isso mais do que tudo. Acabei de voltar da Nachtclub. Está tudo certinho para a inauguração essa semana.

— Ok. Ok. — Ele finalmente cedeu. — Estarei ai na inauguração! — Falou.

— Ok Vati. Gute Nacht — Me despedi e desliguei antes que ele pudesse iniciar outro assunto.

Tomei um banho demorado. Eram três da manhã e eu já havia resolvido tudo que havia para resolver em nossa Meyer Haus – nome da nossa nova casa noturna. - Tudo estava indo muito bem, mas meu pai é um homem completamente autoritário que acredita que só ele sabe fazer tudo com excelência. Eu estou no comando dessa casa já que meu pai tem muitas outras casas espalhadas em diversos países para cuidar. Na verdade; este foi o motivo pelo qual voltamos para o Brasil, Heiko conseguiu uma proposta interessante para montar uma filial Meyer Haus aqui no Brasil. Não. Meyer Haus não é o nome de uma casa noturna, é nome da empresa de Ecstasy de meu pai. Fabricamos e distribuímos para muitos países, importamos para muitas empresas, mas nada melhor - segundo Heiko - do que vender para o consumidor físico também. Então há anos atrás surgiu à idéia de abrir de fato a casa noturna Meyer Haus, que era apenas uma laranja no registro. A casa noturna hoje é onde tudo acontece, é aonde negociamos tudo com todos os compradores seja jurídico ou físico, e ainda ganhamos mais com as apresentações, bebidas e clientes que vão lá só para curtir. É como matar diversos coelhos com uma cajadada só. O que eu acho de tudo isso? Não era bem a vida que eu queria pra mim. Nem sempre é tudo tão calmo e nesse ramo é preciso escolher entre duas opções: Ter sentimentos ou ser um Meyer. Eu sou obrigado a ser um Meyer a cada segundo da minha vida e por isso preciso estar vazio para fazer tudo que faço. Sou herdeiro do meu pai, é o meu fardo e obrigação. Aos meus dezoito anos tive que deixar para trás todos os meus sonhos que segundo meu pai são inúteis e fantasiosos, para seguir como Meyer. Era isso ou isso. Sendo filho do meu pai, eu nasci não tendo escolha. Hoje eu meio que já me acostumei a comandar os negócios, embora às vezes eu tenha uma repentina crise existencial e sinta uma enorme vontade de largar tudo isso e viajar mundo a fora sendo apenas eu. Mas isso acontece raras vezes quando tenho que me sujar um pouco. Porque nesse negocio se sujar é obrigatório. Ou você se suja ou alguém vai se sujar com você.

Saí do banho enrolado na toalha e fui até meu guarda roupa pegar minha calça quando vi uma movimentação do lado de fora. Era a Jasmim, minha vizinha. Encostei-me na janela e a observei descer de um carro, não era o mesmo que a levou as nove da noite. Já eram quase quatro da manhã. Ela estava cambaleando. Vi quando ela notou que não estava com a chave da porta da frente, quando bufou. Parecia uma York Shire brava. Abri um sorriso ao vê-la praguejando. Estava notavelmente bêbada. Balancei a cabeça em sinal de negação. Ela conseguia ser ainda mais linda semiconsciente. Ela rodeou a casa e então sumiu. Eu suspirei afastando aquela bela imagem da minha mente e fui terminar de vestir minha roupa. Não tenho tempo para romance agora, nem mesmo um pequeno flerte. Minha vida não permite encaixar pessoas, principalmente quando se trata de uma garota que até bêbada parece pura e inocente quanto a Jasmim. Enxuguei meu cabelo com a toalha, coloquei uma calça moletom e me sentei na cama mexendo aleatoriamente no i***a. Novamente uma movimentação do lado de fora da minha janela. Meu olhar parou diretamente na Jasmim varanda a fora com a câmera apontada para o céu. Ela daria uma bela obra de arte agora. Eu se lembraria disso depois. Eu não seria desenhista como queria aos meus dezoito anos, mas velhos hábitos nunca morrem... Ainda desenho quando quero extravasar minha frustração, raiva ou tristeza. Ela se sentou na poltrona e ficou ali fixada em seu próprio mundo, a encarei. Ela tinha algo que me deixava intrigado, não sei o quê, mas me chamava bastante atenção. Deixei meu corpo cair na cama sorrindo ao me lembrar dela tentando achar a chave de casa e praguejando sem sucesso. Logo após um filme se passou em minha cabeça, ela atendendo no restaurante como uma grande dona e gerente. Eu podia ver muitas mulheres numa só. Ao mesmo tempo em que ela conseguia ser uma mulher foda e responsável capaz de carregar o mundo nas costas para fazer quem ama feliz, também conseguia ser a garota atrapalhada do mercado, a garota que aproveita pra sonhar no caminho pra casa, e a bêbada. Bati na testa. IDIOTA. Como que uma garota que acabei de conhecer conseguia chamar tanto minha atenção? Eu não conseguia me controlar quando ela estava presente, era como um desafio que você quer cumprir a todo custo. Ela me dava a sensação de liberdade, era a única garota que não olhava para mim como uma porta para o poder. Ela me enxergava como alguém normal e isso me deixava com mais vontade de estar perto. Eu me sentia NORMAL perto dela. Mas esse é o problema, EU SOU UM MEYER.

— Nem vem, Meyer. — Resmunguei agora de olhos fechados. — Você não tem tempo pra isso! — Bati em minha testa novamente. — A garota é comum, nem saberia lidar com seu mundo. Ablösung!

Abri os olhos me sentando novamente na cama, quando olhei para fora da janela ela já não estava mais lá. Bufei. Levantei, fechei a cortina e me joguei na cama. Já estava praticamente claro quando consegui pegar no sono.

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