Vampiros não existem.
— Existem! — Virgílio insistia. — Minha avó me contou, eu consigo até ver. — Ele fechou os olhos e narrou, teatral. — Olhos vermelhos, vidrados...o queixo sujo de sangue, as mãos de garras enormes...trêmulas! — Abriu os olhos, encarando o amigo profundamente, numa pausa dramática. — E então ele correu pra escuridão... E nunca mais foi visto... Mas! — Exclamou. — Um corpo foi encontrado na floresta aquela manhã...e adivinha... — Virgílio se debruçou sobre a mesa, fazendo o outro se afastar alguns centímetros. — Sem. Uma. Gota. De sangue.
— Ah, vá! — Lee sugou seu milk-shake de framboesas, zero por cento impressionado. — VG, isso são só histórias.
— Minha avó não mente, cara, eu já te disse! — Sentou-se corretamente de novo, indignado. — Se ela disse "Eu vi um vampiro", então ela viu um vampiro.
— Certo, certo... — Suspirou, derrotado. — Mas por que você acha que justo o senhor Conte é um vampiro?
— Você viu, ele mora num mausoléu e fala como se fosse um estrangeiro japonês da segunda guerra.
— Que exagero! Ele tem a minha idade, Virgílio.
— E você já chama ele de senhor.
— Porque ele vai ser meu patrão? — Perguntou como se fosse óbvio. — E ele nem fala de maneira tão antiquada assim. Na verdade, mal dá pra notar.
— Ah, dá! Dá inclusive pra perceber que ele tá disfarçando.
— Ele é só um herdeiro de dinheiro velho. — Sugou o restante do milk-shake. — Sinceramente, a única coisa que me preocupa é o quanto ele é gatinho.
— Eu tô te avisando!... Não se deixe enganar pela beleza dele! É próprio da espécie... Para atrair as presas.
Aquilo foi o que seu calouro inteligente porém extremamente impressionável lhe deixou de recado um dia antes de ele se mudar para a mansão do senhor Conte. Claro que Lee não acreditava em nada daquilo, por mais que a avó de Virgílio fosse realmente uma pessoa maravilhosa e, deveria dizer, uma verdadeira figura, mas... Como expressar aquele sentimento em palavras? De fato, Conte Victor tinha algo de...
— Excêntrico?
— Am... Não foi o que eu quis dizer...
— Ora, Dante Lee. — Conte apertou o nó da gravata com as mãos enluvadas. — Existe um sinônimo para tudo isso que você acabou de me chamar.
— É que... — Ele estendeu o paletó, ajudando o patrão a passar os braços pelas mangas. — Sabe, nós temos a mesma idade e... Agimos tão diferentes, o senhor entende? Foi nesse sentido que eu quis dizer.
— Hu... — Ele soltou uma única risada baixa e soprada, como costumava fazer. — Nós temos e não temos a mesma idade, Lee. — Ele limpou a garganta, arrumando o paletó sobre os ombros. — E pare de me chamar de senhor.
— Mas o senhor...
— Sou seu patrão, mas temos a mesma idade, você mesmo não disse? — Seus sapatos de solas caras faziam um barulho alto no chão de taco a cada passada larga sua. — Vamos, não quero me atrasar.
— Ah... Certo. — Ele saiu atrás, verificando a chave do carro no seu bolso. — Digo, sim senhor.
— Não me chame de senhor. — Repetiu insistente enquanto Lee abria a porta do carro para ele. — E faça silêncio durante a viagem, sim?
— Hm... Ok. — Lee se acomodou no banco do motorista e saiu do estacionamento. Era difícil ficar calado perto de Victor, tanto que chegava a ser engraçado, mas era inevitável. Por exemplo, naquele exato momento Lee podia ver o patrão pelo retrovisor cobrindo os olhos com os dedos longos de uma mão. Ele sempre fazia isso, toda santa vez que saiam de carro; era como se não quisesse olhar a paisagem que passava pela janela, ou pior, que sequer suportasse.
— Obrigado. — Ele não esperou Lee para sair do carro. Parecia estar com pressa. — Venha me buscar às nove.
— É uma festa, não? — Lee pôs o cotovelo para fora da janela. — Por que só não liga quando estiver cansado e aproveita o baile sem se preocupar com o tempo?
— Às nove, Lee. — Falou com ar de enfadado, lhe dando as costas.
Fez um bico que ninguém viu e girou o volante. Às nove. Até lá não dava pra fazer muita coisa além de passar um pano nos móveis da casa, mas fazer o quê.
Normalmente tudo acabava acumulando uma camada fina de poeira em pouco tempo pelo fato de: Victor mal tocava nas próprias coisas, exceto no seu escritório. Lá tinha mais o que organizar do que limpar, principalmente os livros. Lee estava ali a poucos meses e já tinha percebido que Victor não só lia muito como trocava seus livros; estava sempre sentindo falta de uns e achando novos. Ver que Victor não era dado a colecionismo apesar de ser uma traça o surpreendia de certa forma; o patrão vivia lhe pedindo café e noventa por cento das vezes que ele entrava com a bandeja Victor estava lendo. Às vezes em pé, às vezes sentado em alguma poltrona, às vezes com as pernas esticadas num divã, às vezes debruçado sobre a mesa.
"Talvez por isso eu o ache tão estranho", pensava enquanto devolvia uma pilha de livros largada no tapete de volta para a estante. Se fosse herdeiro de todo o dinheiro e conforto do Conte ele estaria se divertindo àquela hora, viajando à beça, conhecendo gente nova... Não que estivesse reclamando, mas não se imaginava agindo como Victor em tal situação de privilégio. Tipo, o cara simplesmente assumiu a editora da família e nos tempos livres decidiu atuar na área de psicologia. Aquilo era muito, muito além da cabeça de alguém de vinte e cinco anos... Não era?
Nove horas. "Talvez eu que seja muito superficial pra minha idade", pensou, entrando no carro.
— Como foi a festa?
— O de sempre. — Victor respondeu cansado, já se recostando no banco e cobrindo os olhos. — Nós podemos passar num lugar antes de voltar?
— Ah... Claro. Onde é?
Num cemitério. Sim, Victor quis passear no cemitério às nove da noite antes de ir para casa. Ficou dentro do carro, olhando Victor dando voltas pelas lápides, e ele parou na frente de umas trinta, sem brincadeira. Ficou mesmo sabendo que Conte tinha muitos parentes mortos, mas tantos assim? Começou a contar os próprios tios e primos nos dedos. Não deu nem metade e mesmo assim... Todo mundo morto? Sério?
— Podemos ir. — Victor entrou no carro, assustando-o um pouco.
— Am... — Ele deu a ré. — O senhor está bem?
— Melhor impossível, por quê?
— Sei lá, talvez porque não estamos saindo de uma lanchonete.
— O velório é para os vivos, Lee. — Sim, ele falava coisas daquele tipo, Lee já estava quase completamente acostumado. — Eu estou bem, só dirija.
Como sempre, voltaram calados. Lee normalmente tentava puxar assunto, mas Victor não dava muito bola; por mais que dissesse que não, ele se saía muito bem agindo como seu superior.
— Vou pegar água pro senhor. — O ajudou a tirar o paletó.
— Vinho. — Ele tirou as luvas e deu para Lee, afrouxando a gravata.
— Ah... Certo. — Achou melhor não contestar; aquilo era outro hábito estranho do Conte, o primeiro ser humano que Lee conheceu que ingeria uma quantidade exorbitante de bebida alcoólica sem dar um soluço sequer. Por exemplo, era a sexta vez que ele estava passando pela sala para encher a taça de Victor e ele sequer se movia de posição no sofá.
— Lee, você pode ir dormir. — Ele falou com a testa apoiada na mão.
— Essa é a segunda garrafa que o senhor esvaziou. — Respondeu, como se não tivesse sido dispensado. Sabia que ele ia ficar ali bebendo até amanhecer, e não sabia exatamente o porquê, mas meio que não queria deixar acontecer.
— E qual o problema?
— Bom... O senhor entornou sozinho duas garrafas de vinho, talvez seja esse o problema.
— Você quer beber comigo? — Victor finalmente ergueu a cabeça e encarou-o nos olhos.
— O quê?! — Sentiu um calafrio.
— Disse que é um problema eu beber sozinho, então suponho que queira me fazer companhia.
— Eu disse que é um problema beber duas garrafas... Não que... Beber sozinho também não seja... Olha. — Balançou a cabeça, tentando se livrar da repentina confusão mental. — Tá tudo errado nesse seu hábito de beber litros sozinho tarde da noite, apesar de não ficar bêbado.
— Verdade? — Ele recostou no sofá, brincando distraído com uma gota de vinho que sobrou na sua taça. — Eu bebi assim toda a vida...
— Ha ha... Sei... — Voltou para a adega, pegando mais uma garrafa e uma taça pra si, meio sem pensar.
— O que é engraçado?
— Nada... É que você falou de um jeito... — Se sentou na poltrona do outro lado da mesa redonda, servindo vinho para os dois. — "Toda a vida"... Nós somos novos, sabe?
— Ah, é mesmo. — Falou como se precisasse se lembrar daquilo.
— Eu... Posso mesmo beber com o senhor?
— Se parar de me chamar de senhor.
— Certo, então vamos brindar a quê? — Pegou sua taça e ergueu. — A uma boa noite de sono?
— Hu... — Conte sorriu de lado, erguendo também sua taça e tocando a borda na da de Dante. — A uma boa noite de sono.
— Bom. — Lee sorriu, seus olhos virando dois riscos acima das bochechas redondas. Victor desviou rápido os olhos para sua taça ainda cheia de vinho, vermelho ao refletir o luar que entrava pela janela aberta. Tão vermelho quanto os cabelos do rapaz à sua frente.
— Qual a cor dos seus cabelos? A natural? — Perguntou.
— Pretos? — Lambeu os lábios. Aquele vinho era muito seco. — Como os cabelos de todo descendente de coreano? — Riu.
— Por que vermelho?
— Não sei. — Tomou mais um gole de vinho. — Quis experimentar.
— Você é jovem. — Lee lambeu os lábios de novo. Desviou o olhar. — Gosta de experimentar coisas novas.
— Ei! — Pôs a taça vazia na mesa. — Nós dois somos jovens, lembra? E eu sou mais velho que você, pra variar.
— Está nervoso?
— Não, você que está bêbado; por que sempre fala comigo como se fosse meu pai e ainda por cima pede pra eu não te chamar de senhor?
— Eu não estou bêbado, você está.
— Eu não... — Soluçou. — Ah, droga...
— A uma boa noite de sono. — Victor riu e se levantou do sofá.
Lee teve uma boa noite de sono, mas o Conte não dormiu. Na manhã seguinte, Lee preparou o café do seu patrão e levou até o escritório.— Bom dia, senhor... — Victor o olhou de esguelha, a mão apoiando o queixo, o cotovelo ao lado do livro aberto sobre a mesa. — É... Victor.— Lee, você pode me fazer um favor? — Passou a página. — Não entre mais aqui hoje, certo? Nem amanhã, nem depois. Preciso... Me concentrar em alguns assuntos.— Nem pra trazer café?— Não vou precisar de café... Esse será suficiente. — Pegou a xícara e soprou a fumaça. — Aliás, obrigado.— Am... Ok... De nada.— Ele está o quê? — Virgílio perguntou, do outro lado da linha.— Definitivamente me evitando. — Lee repetiu. — Já faz uma semana.— Não estou surpreso.— Eu estou! Trabalho pra ele qua
— Conte Victor Conte, rei dos papéis e tintas!— Você... — Victor deu um suspiro cansado.— Ora, ora, ora, é assim que você saúda um amigo de longa data? — Ele riu, sarcástico.— E eu sou seu amigo, por acaso?— Ah, você é! Vem, vamos beber alguma coisa.— Algo que seque mais a garganta do que isso? — Pôs a taça vazia numa bandeja passando na mão de um garçom.— Eu posso te oferecer algo bom pra sua garganta... — Passaram por cortinas vermelhas, que davam para uma sala privada. — Mas não aqui.— Passo. — Victor não esperou ser convidado para se sentar.— Eu gostaria de saber até quando. — Deu mais uma de suas risadinhas burlescas, enchendo dois copos redondos de whisky.— Não é da sua conta.— Longe de mim me meter. — Passou um copo para Victor e se sentou.
Lee voltou pra mansão do senhor Conte na segunda-feira, sem conseguir tirar aquela história da cabeça. Então vampiros ficam sem cor quando estão a muito tempo sem sangue, é isso? Nunca tinha ouvido falar daquilo.— Mande lembranças ao Nosferatu. — Virgílio disse ao se despedir, quando o deixou na rodoviária.— Ah, vá te catar! — Virgílio tinha a certeza firme de que Victor era um vampiro, apesar de sempre falar brincalhão daquela forma, e tinha certeza só por tê-lo visto uma vez e com base nas histórias da sua avó. Queria que as coisas fossem fáceis na sua cabeça também, mas ele ainda não conseguia acreditar totalmente, mesmo com dois furos no pescoço.— Senhor Conte? — Deu uma espiada para dentro do escritório. Ninguém lá.— Patrão Conte? — Chamou de novo, subindo as escadas até o quarto de Victor. A porta dupla estava fechada. Encostou o ouvido na porta. Nada. Quis testar a maçaneta, mas
— Dante Lee, Dante Lee...— Ah, saco... Não deveria ter te contado. — Lee reclamou. — Aff... Eu tô tão... Chateado com tudo isso.— Relaxa, mano; na verdade eu tô surpreso que vocês só transaram.— VG...— Olha pelo lado bom, ele não é casado.— Virgílio, é sério! — Exclamou. — Não foi pra isso que eu aceitei esse emprego, eu... — Esfregou a mão no rosto, agoniado. — Eu tô... Me sentindo culpado.
— Fetiches com sangue. Já ouviu falar?— Ah... Já...?... Por alto.— Então... — Ele apoiou os cotovelos nos joelhos. — ... é aí que eu entro. — Falou baixinho, como que contando um segredo. — E você pode entrar também.— Isso não faz sentido. — Ele tomou metade do whisky em um gole. — Você é maluco.— Pessoas pensam que tem fetiches. Nós não, nós temos um fetiche de verdade. Um fetiche com sangue. — Voltou a recostar as costas na cadeira. — Basta se misturar entre elas, as pessoas que acham que tem fetiches sexuais com sangue, e... <
Lee olhou em volta, mesmo que não precisasse, mas na verdade precisou, porque só então notou que não haviam espelhos naquela mansão, sendo a única exceção o espelho velho atrás da porta do armário do seu quarto.Girou nos calcanhares e abriu a boca, mas Victor já estava na cozinha, conversando com Santino.— Muito obrigado pelo seu tempo, eu agradeço muito.— Não agradeça antes de experimentar. — Santino estava amolando uma faca atrás da bancada da cozinha, vestido numa elegante dólmã preta e um lenço vermelho afastando os cabelos do rosto.— Su
— Hã... — Victor riu soprado, agarrando os joelhos do garoto com as mãos, mas Lee ignorou aquilo e moveu a cintura no seu colo novamente, agora com a mãos firmes nos seus ombros. — Você não tem a menor noção do perigo, Dante Lee. — Puxou o ar entre os dentes, tentando parar Lee de novo, agora apertando suas coxas. — Escuta... Eu posso ficar anos sem sangue, você está muito enganado se acha que consegue barganhar qualquer coisa comigo oferecendo sangue pra mim.— Você até pode, mas é o que você quer? — Jogou os próprios cabelos para trás com a mão, a outra no ombro largo, apertando de leve. — Eu tô aqui, deixando você tomar o quanto te saciar... E pode ser a última vez. — Ergueu as sobrancelhas. — Vai deixar passar?Victor suspir
— Por que acha que eu sinto o cheiro dele? — Victor franziu o cenho para ele. — Não sei... — Girou nos calcanhares, se afastando. — Talvez por causa do jeito que olha para ele. — Pensei ter te ouvido dizer que não queria se meter. — E não quero. — Virgílio se sentou de volta na sua cadeira, cruzando as pernas. — Mas se você está assim tão desinteressado no Lee boy... — Virou o restante do whisky na boca. — Você sabe que eu não me preocupo muito se sinto cheiro ou não na hora de tirar o atraso. — Não me importo. — “Desgraçado”, pensou consigo. — Não tirando a vida dele... Lee é um bom mordomo. &nb