Victor Conte

— Conte Victor Conte, rei dos papéis e tintas! 

— Você... — Victor deu um suspiro cansado. 

— Ora, ora, ora, é assim que você saúda um amigo de longa data? — Ele riu, sarcástico. 

— E eu sou seu amigo, por acaso? 

— Ah, você é! Vem, vamos beber alguma coisa. 

— Algo que seque mais a garganta do que isso? — Pôs a taça vazia numa bandeja passando na mão de um garçom. 

— Eu posso te oferecer algo bom pra sua garganta... — Passaram por cortinas vermelhas, que davam para uma sala privada. — Mas não aqui. 

— Passo. — Victor não esperou ser convidado para se sentar. 

— Eu gostaria de saber até quando. — Deu mais uma de suas risadinhas burlescas, enchendo dois copos redondos de whisky. 

— Não é da sua conta. 

— Longe de mim me meter. — Passou um copo para Victor e se sentou. — Mas, fingindo que eu estou interessado... — Cruzou as pernas. — Qual mesmo o último lançamento da sua editora? 

— Deuses americanos. — Respondeu. — Neil Gaiman. 

— Ah! Sei qual é! — Exclamou. — Aquela história onde deuses estão lutando para não serem esquecidos...

— Pois se forem, morrem. — Completou. — Essa mesma. 

— Hã... — Riu. — Seria fácil se fosse assim com a gente, hein? — Tomou um gole de whisky. 

— Seria... — Victor brincou com o fluído no seu copo. 

— Sabe uma coisa? — Pôs o copo na mesa. — Deuses morrem porque não tomam o sangue do sacrifício direto no gargalo.

— Você está me testando? 

— Não posso apenas estar preocupado? —Victor revirou os olhos. — Bom, eu tenho certo tempo pra tentar te convencer, não?

— Lee chega às nove. 

— Hm... Sei... Seu novo... — Fez aspas com os dedos. — “Mordomo”?

Lee acordou com o travesseiro macio da casa do senhor Conte debaixo da cabeça e ficou feliz em constatar para si mesmo que todas aquelas imagens bizarramente vívidas caindo da sua memória como uma chuva de granizo era só um sonho estranho. “O senhor Sonho pede sonhos estranhos em troca de noites bem dormidas”, era o que sua mãe costumava dizer e ele sorriu ao lembrar disso. Se espreguiçou; ele dormiu bem aquela noite. 

Abriu o armário pra se vestir e a imagem que encontrou no espelho atrás da porta não era bem o que ele esperava. — Ah, cara... — Murmurou pra si mesmo. Tinham dois furos no seu pescoço, e seu corpo estava cheio de manchas vermelhas de sangue seco. Seu sangue seco. Além de marcas de dedos nas pernas. 

Ele não dormiu bem por ter tido um sonho estranho... ele dormiu bem por ter gozado na boca do seu, diga-se de passagem, patrão. 

— Ótimo! — Reclamou para si mesmo, indo tomar um banho. — Agora as histórias do Virgílio são reais. Aonde foi que eu me enfiei? 

Abotoou a camisa até o último botão, cobrindo o curativo no pescoço. Tudo aconteceu tão rápido, à meia luz, sem porquês nem explicações, só... Aconteceu. E era tudo tão estranho. 

Foi pra cozinha preparar o café do senhor Conte. Senhor Conte... Um vampiro? Pff... Aquilo não fazia o menor sentido. Pegou a bandeja e levou até o escritório. A porta estava aberta. 

— Bom dia... Am... 

— Bom dia, Lee. — Victor sequer levantou o rosto voltado para um livro aberto em uma de suas enormes mãos. — Deixe o café na mesa. Obrigado.

— Ok... — Ele falava com tranquilidade, seu tom de voz de sempre. — Se o senhor precisar de mais alguma coisa... 

— Nada mais por hoje, aliás... — Finalmente fechou o livro. — Você está dispensado esse final de semana.

— Como?

— Não se preocupe, vai receber o que combinamos, sempre... — Se sentou na sua cadeira atrás da escrivaninha. — Só... Quero que você descanse, sim? Passe esse tempo da maneira que melhor lhe aprouver. 

Naquela sexta à noite Lee já estava com uma mochila pronta e caminhando até a rodoviária. A mansão do senhor Conte ficava afastada e ele simplesmente poderia ter passado sua “folga” lá mesmo, mas preferia pensar que o senhor Conte leu seu pensamento e deu a deixa pra ele dar uma respirada longe, ah...de um vampiro. Se é que se tratava daquilo mesmo. Na verdade, Lee não queria admitir, mas a ideia de Victor ser um vampiro soava melhor do que a ideia de Victor ser um maluco que acreditava ser um, com apliques nos caninos e com um vício bizarro por beber sangue. Além do mais, ele o viu daquela maneira… totalmente transformado, uns momentos antes de mordê-lo. 

“Uau, eu fui mordido por um vampiro”, pensava, esperando sentado num banco da rodoviária enquanto esperava Virgílio chegar. “Ele vai gostar de saber disso”. 

— E aí? — Virgílio deu duas buzinadas desnecessárias quando chegou. Deu a volta e entrou no carro. — O senhor Conte já te mostrou os dentes? — Perguntou enquanto ele punha o cinto. 

— Não. — Decidiu que era melhor não contar nada. 

— Estranho ele te liberar assim, não é? 

— Normal. 

— Você está trabalhando direito, Dante Lee? — Riu debochado. — Isso tudo me cheira a pé na sua bunda. 

— Vira essa boca pra lá. — Riu junto. — O senhor Conte só está sendo generoso. 

— Será? — Passou um sinal vermelho. — Eu ainda acho ele estranho. 

— E eu queria saber de onde você tira dinheiro pra pagar suas multas. 

— Vamos passar em casa rapidinho. 

— Rapidinho? 

— É, pra poder se preparar; vou te levar pra um lugar legal. 

— Seu plano é ir pra uma boate a essa hora pra podermos ficar de ressaca amanhã? 

— Também, mas não é só uma boate. — Ele sorriu sacana. — É um lugar legal... — Alongou as palavras. — Por isso você precisa se preparar... Se é que me entende. 

Num primeiro momento, Lee se animou com a ideia e realmente se preparou, mas quando chegaram na tal boate com “vip service” Virgílio desapareceu e ele só ficou bebendo mesmo, vendo o barman fazendo um milhão e meio de truques de mágica com as bebidas e os copos atrás do balcão. Umas três pessoas até chegaram nele, mas recusou todas, com a nítida certeza de que ia imaginar Victor se transasse com elas, e transar com alguém pensando em outra pessoa não fazia seu estilo. 

No sábado ele acordou às três da tarde, com um pouco de dor de cabeça. 

— O Virgílio acordou antes de você, acredita? — A avó de Virgílio estava pondo um bolo na mesa quando ele saiu do quarto. 

— Ah... — Ele esfregou a mão na cara, fingindo estar envergonhado. — Seu neto é um péssimo exemplo pra mim. 

— Pra mim também. — Ela riu divertida. — Aquilo lá é um demônio encarnado. Senta, filho. Vou te servir chá, você quer?

— Aceito. — Riu da definição que a senhora dera ao amigo. Realmente fazia sentido. — Espero que ele não esteja dando muito trabalho agora que não estou aqui pra vigiar ele. 

— Ah, ele sente sua falta, demais! Você acredita?... — Ela trouxe a chaleira do fogão. — Ele me disse, “Vó, conte ao Lee suas histórias sobre vampiros”. Hahaha... — Ela riu. — “Lee não é bobo que nem você”, eu disse a ele. “Não quer ouvir histórias chatas de uma velha caquética”. 

— Ah, eu quero ouvir sim! — Sorriu pra ela, realmente interessado. Realmente mesmo. — A senhora sabe o quanto eu me divirto ouvindo suas histórias. 

— Ora, mentiroso! — Brincou, servindo chá numa xícara toda florida. — Vou te contar, mas só porque você é um menino muito educado. — Serviu chá em outra xícara, essa sem flores. 

— O Virgílio não é?

— Ele fica me chamando de vó. — Reclamou. — Já cansei de m****r que ele pare de me chamar de vó.

— Vó! — Virgílio entrou na sala, uma toalha pendurada no pescoço, os cabelos molhados. — Também quero chá. — Se juntou a eles na mesa redonda, se inclinando para deixar um beijo no rosto dela. 

— Seque os cabelos, menino! — Brigou. — Essa idade e ainda não sabe secar os cabelos. 

Ele sorriu pra ela, carinhoso. Lee sorriu de olhar para os dois. Ele não era íntimo assim das suas avós, nenhuma das duas, apesar de estarem vivas. Lamentava por isso. 

— Vamos, vó, conte suas histórias sobre vampiros. — ele cortou um pedaço de bolo com uma mão, a outra com a toalha secando os cabelos. — Lee não quer acreditar em mim, mas é porque só você sabe convencer.

— Bom... — Ela tomou um gole do seu chá. Lee segurou sua xícara com as duas mãos, trocando um olhar inesperado com Virgílio, que sorriu de lado pra ele, como quem está prestes a ganhar uma aposta. — Eu era menina, tinha assim... Uns nove anos, talvez um pouco mais...

Estava pulando amarelinha na calçada, imaginando as linhas no chão; sempre fazia isso pra me distrair enquanto ia de casa até o armazém. Era chato, imaginem, quase todo dia minha mãe me dava uma lista de compras com o dinheiro num saquinho e pedia que eu fosse ao armazém. E lá ia eu... Pulando amarelinha até chegar ao armazém. Não lembro o nome do armazém, porque nunca fiz questão de olhar, mas posso inclusive desenhar o interior se me pedirem... Tinha a vitrine, e a porta da frente batia num sininho quando a gente entrava. Naquela dia eu entrei, estiquei meus pezinhos e dei a lista ao moço atrás do balcão. Ele me pediu pra esperar, como sempre, então fiquei dando voltas pelas gôndolas e pelas latas empilhadas aqui e ali, me perguntando o que aconteceria se eu tirasse uma latinha da base da pilha. 

Eu estava prestes a tentar a sorte, minha mãozinha já em torno de uma lata quando o sininho da porta tocou e eu me virei pra olhar. 

Era um homem que frequentava o armazém, reconheci pelo rosto, mas só pelo rosto, porque seus cabelos castanhos… estavam brancos, e sua pele branca e seca como a de uma cobra prestes a trocar a pele. Eu me assustei silenciosamente, dando um passo para trás, mas o moço que voltava ao balcão, trazendo uma pequena sacola com as compras da minha mãe, não se assustou. 

Não, ele não se assustou, mesmo que seus olhos tenham ido diretamente para o moço doente, parado perto da porta, como que esperando. Eles se encararam por uns segundos, o moço tossiu no punho fechado, então o moço do balcão olhou pra mim. Dei a ele o dinheiro no saquinho, ele me deu as compras, e então eu fui embora. Digo, eu só tinha nove anos mas era suficientemente esperta, sabia que eles estavam me esperando sair da loja, então ouvi o sininho tocando atrás de mim, andei cinco passos largos pela calçada e voltei na ponta dos pés, espiando pelo canto da vitrine. 

Os dois moços estavam conversando, pareciam muito sérios, o moço do armazém com uma marca na testa, as sobrancelhas juntas, o moço doente vez ou outra tossia bastante, suas costas tremendo. 

Eu continuava ali, minha respiração fazendo o vidro da vitrine embaçar; certo momento o moço doente pôs a mão no bolso do sobretudo, eu respirei mais fundo e o vidro embaçou na altura dos meus olhos. Puxei a manga do vestido até o pulso e passei no vidro, e quando pude ver de novo o moço doente me olhava, dois pontinhos vermelhos no rosto branco focando direto nos meus. Tive um sobressalto, e então aconteceu: toda a vidraça da vitrine trincou.

Lee e Virgílio soltaram uma exclamação. 

Imaginem! Toda ela trincou, sem soltar um pedacinho, mas ficou toda quebrada, ali, montada como se fosse um quebra-cabeça, risquinho pós risquinho, deixando a vitrine toda esbranquiçada. Eu saí correndo dali, correndo sem olhar para trás, sem parar, até chegar em casa. Minha mãe perguntou o que tinha acontecido, e reclamou que o nó do saco de castanhas havia se soltado. Eu não disse nada, não consegui dizer, apenas balancei a cabeça em negação. 

Mas vocês sabem, o susto de uma criança dura pouco e eu me esqueci daquilo... Me esqueci até o dia em que minha mãe me mandou comprar frutas no armazém. 

Virgílio e Lee apertaram as xícaras, sentindo a chegada do final da história. 

Havia um enorme vão aonde o vidro da vitrine fora quebrado, mas a porta também não estava mais lá, nem o sininho, sequer o letreiro que eu nunca havia lido estava lá. Uma senhora que também frequentava o armazém estava passando naquele momento, me viu e parou pra conversar comigo. 

“Esse armazém fechou, querida”, ela me disse. 

“A senhora sabe porquê?” Eu perguntei, então ela me contou que o dono conseguira uma passagem de trem para alguma cidade do litoral, e ainda contou que haviam boatos de que ele ia pegar um navio para os Estados Unidos. 

“Ele vai voltar?”, Eu perguntei, e ela riu da minha ingenuidade. “Eu duvido muito”, ela disse, “Venha, vou te mostrar outro armazém onde você pode fazer as compras pra sua mãe”. 

Eu assenti e fui com ela, me perguntando se o moço do armazém estava realmente bem, são e salvo num trem ou num navio rumo a uma nova vida. 

— E ele estava? — Lee perguntou. 

— Nunca soube de nenhuma notícia. — Ela respondeu. — Mas vi o homem doente um tempo depois, andando na calçada. Ele, vi com certeza, estava saudável, são e a salvo. 

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