A carta repousava em cima da impressora, como se desafiasse minha capacidade de ignorá-la. Enquanto eu me acomodava na cadeira para mais um dia de trabalho, minha cabeça não conseguia se concentrar nos tecidos do século XVIII, apenas na propriedade na encosta da montanha em Port Angeles. Kira e eu passamos um tempo pesquisando tudo sobre e tentando entrar em contato com alguma autoridade da cidade, sem sucesso.
Tudo isso era o tipo de coisa que eu via em filmes, não na minha vida monótona e presa a um escritório abafado, cercada por documentos esquecidos e projetos que ninguém se importava em ler. Kira olhou para mim, ansiosa. Eu sabia que ela queria que eu dissesse algo sobre o assunto, qualquer coisa que mostrasse que eu tinha um plano ou pelo menos uma ideia do que fazer a seguir.
Mas a verdade era que eu não tinha.Essa notícia havia caído como um raio em um dia já chuvoso, e minha mente se recusava a processá-la completamente.
— O que decidiu?
— Nada, ainda, mas falei com a minha mãe.
— E o que ela disse?
— Que minha avó saiu de lá há muito tempo e construímos nossa família aqui. Ela me pediu para não ir para Port Angeles, mas também disse que a casa é valiosa.
— Valiosa quanto?
— Valiosa a ponto de pagar minha dívida estudantil e me garantir um bom início de vida por aqui.
Os olhos de Kira brilharam. E eu senti um formigamento.
— Não é como se eu pudesse simplesmente largar tudo e correr para o outro lado do país, né?
Kira fez aquele som com a boca, aquele “tsss” que indicava que ela estava prestes a dizer algo irritantemente sensato.
— Vamos lá, Mirella. Seja honesta. O que você tem a perder? Este emprego? Este... escritório encantador cheio de artigos sobre toalha de mesa?
Eu ri, apesar de mim mesma.
— Você é habilidosa, criativa, todos os nossos professores viam tanto potencial em você!
— Não decepcionei, acho. Estou trabalhando em um dos jornais mais importantes do país.
— Que sequer aproveita todo o seu talento. Ela tinha razão.
O emprego não era exatamente algo que eu desejava manter para sempre, e aquele escritório, tão cheio de papéis quanto de decepções, era um lembrete constante de que meu potencial estava sendo desperdiçado.
Eu sabia que não era apenas sobre o emprego, mas sobre a vida que eu estava levando. Uma vida que tinha se transformado numa sequência sem fim de “bom o suficiente”, mas que nunca parecia ser realmente o que eu queria.
— Em quantos anos de trabalho aqui você consegue pagar sua dívida?
— Uns... 10 anos.
Dizer aquilo em voz alta me assustou.
— E vender essa propriedade resolveria seus problemas financeiros?
— Se ela for tão valiosa quanto minha mãe disse, eu poderia ficar pelo menos uns 10 anos sem trabalhar.
Kira bateu a palma da mão na mesa, como se já estivesse decidido. Ela estava certa. E essa carta... esse presente inesperado poderia ser a solução. Se eu vendesse a propriedade, poderia pagar a dívida estudantil que pairava sobre mim como um fantasma, e até ter algum tempo e dinheiro para encontrar um jornal bom que realmente valorizasse o meu trabalho.
— Ok, vamos entrar em contato com essa Naomi. — Finalmente disse, endireitando-me na cadeira. — O que pode dar errado? No mínimo vira uma história estranha para contar no futuro.
Kira sorriu como se já tivesse vencido a discussão.
— É assim que se fala! Mãos à obra!
Liguei o computador e digitei "Naomi Owens Port Angeles" na barra de pesquisa. Várias páginas surgiram, a maioria sem relação alguma com o que eu procurava. No entanto, depois de alguns minutos de filtragem, finalmente encontramos algo: um artigo antigo sobre propriedades históricas em Port Angeles.
E lá estava, um nome que chamou minha atenção: "Esposito Estate". Ao lado, uma menção rápida a Naomi Owens como a cuidadora e secretária pessoal da minha tia-avó, Karen Esposito.
— Achei algo! — exclamei, apontando para a tela. — Preciso entrar em contato com o editor dessa matéria.
— Deixa comigo, eu consigo. — Kira correu para sua mesa. Alguns longos minutos e ligações depois, ela me chamou.
— Ótimas notícias!
— O que foi? Conseguiu o contato da Naomi?
— Mais do que isso. O editor do artigo disse que a casa é uma propriedade histórica, provavelmente deve haver mais do que um pedaço de terra para vender.
— Tipo o quê?
— Fica na encosta da montanha, ele disse que tem uma lenda urbana de que há uma passagem da casa para o coração da montanha, cheia de pedras preciosas.
As palavras de Kira martelaram na minha cabeça. Eu odiava admitir, mas a ideia de explorar algo diferente, algo com um toque de mistério, começava a mexer comigo. Talvez eu precisasse mesmo sair do meu ambiente sufocante e dar uma chance ao desconhecido.
— E melhor ainda!
— Fala! — Sacodi as mãos, ansiosa.
— O governo e um milionário local já tentaram comprar o lugar por 5 milhões, mas sua tia recusou. Até gente de fora da cidade foi lá oferecer valores absurdos, mas ela não quis.
— Absurdos tipo quanto?
— 10 milhões. — Kira se inclinou sobre minha mesa e depositou o número de Naomi diante de mim. — Parabéns, amiga, você nunca mais vai precisar trabalhar na sua vida!
— Isso é sério?
— Foi o que ele disse.
— Vou ligar para ela. — Digitei o número em meu celular. — Se isso for verdade, vou pegar um avião amanhã mesmo para esse lugar.
— E o emprego?
— O emprego que se dane!
— Essa é a minha garota.
O telefone tocou várias vezes antes que uma voz atenciosa e profissional atendesse do outro lado.
— Escritório da propriedade Esposito, Naomi Owens falando.
Engoli em seco, repentinamente nervosa, mas forcei minha voz a sair firme.
— Oi, aqui é Mirella Esposito. Recebi a sua carta... sobre a propriedade da minha tia-avó em Port Angeles.
— Ah, senhorita Esposito! — A voz de Naomi mudou instantaneamente, tornando-se calorosa. — Estou tão feliz que tenha entrado em contato. Karen falava muito sobre você. Estou certa de que há muitas coisas que você precisa saber, e que só poderão ser explicadas pessoalmente. Eu já deixei tudo preparado para a sua chegada.
Minhas sobrancelhas se ergueram.
Minha tia-avó falava muito de mim? Naomi estava preparada? O que isso significava? Eu estava apenas ligando para obter mais informações, mas Naomi parecia estar um passo à frente, esperando que eu fizesse mais do que apenas um telefonema.
— Certo... — Hesitei, trocando um olhar com Kira, que assentia vigorosamente, encorajando-me. — Bom, então acho que vou precisar ir até Port Angeles.
— Excelente! — Naomi parecia genuinamente satisfeita. — Vou passar o endereço e se me fornecer os seus dados e um e-mail, também enviarei sua passagem. Tenho certeza de que esta viagem será esclarecedora para você, senhorita Esposito.
— Sim. Naomi, é verdade que tem muita gente interessada em comprar a propriedade?
— Sim, sua tia-avó vivia expulsando-os daqui. — Riu.
— E o lugar é tão valioso assim?
— As coisas têm o valor que colocamos nelas. O que posso dizer é que quem deseja comprar, oferece valores altos. Demais detalhes só trataremos pessoalmente.
— Ok, muito obrigada, Naomi.
Desliguei o telefone, sentindo uma mistura de nervosismo e empolgação. Olhei para Kira, que já tinha um sorriso vitorioso estampado no rosto.
— Você vai mesmo? — Ela me cutucou, rindo.
— Acho que sim.
— Até que enfim vou ver a minha amiga se aventurar fora da capital!
— Mas tem algo estranho. — Franzi a testa. — Se era algo tão importante assim?
— Não sei, amiga. Mais uma coisa para perguntar a ela. Kira se levantou e me deu um abraço apertado.
— Eu vou sentir sua falta, mas você precisa disso. Promete me ligar sempre?
— Prometo.
Olhei para minha mesa, para as pilhas de papéis e artigos tediosos, e sorri. A ideia de me livrar da rotina sufocante que eu tinha me enterrado agora parecia libertadora. E pensar que eu solucionaria o problema das minhas finanças em um estalar de dedos me dava uma satisfação como há muito não sentia.
A cidade estava ficando menor à medida que os dias passavam. Os mesmos prédios, as mesmas pessoas, os mesmos trajetos para o trabalho – e os mesmos artigos enfadonhos. De repente, cada pequena coisa na minha vida parecia sufocante. Mas o que realmente me empurrou para tomar uma decisão foi uma conversa que tive com a minha mãe, depois de finalmente contar sobre a propriedade e quão valiosa era.“Às vezes, a vida te dá oportunidades disfarçadas de obstáculos. Cabe a você descobrir o que elas realmente são”.E foi assim que dei o sinal verde para Naomi comprar a passagem.“Qualquer lugar menos aqui” parecia exatamente o que eu precisava. E quem sabe? Talvez uma pausa para recarregar as energias e uma vida em uma cidade pequena pudesse me oferecer a paz que o barulho incessante da capital nunca poderia.Pelo menos, era o que eu esperava.Empacotei minha vida em duas malas e uma caixa de sapatos cheia de pendrives, porque, claro, você nunca sabe quando vai precisar de um backup do artigo
O cheiro dela estava em toda parte, mesmo antes de vê-la. Doce, fresco, intenso, como uma flor silvestre recém-desabrochada.Era... Humano. Algo que, normalmente, seria insignificante para mim. Mas aquele aroma despertou não apenas o meu lobo, mas um instinto primitivo que eu não sentia havia muito tempo. Não consegui ignorar, não queria ignorar.Era cheiro humano, mas diferente. E essa diferença estava bagunçando todos os meus sentidos. Enquanto me encostava no carro de Draven que havia tentado acompanhar minha corrida animalesca até a fonte do meu desejo, cruzei os braços, observei a casa de sua família. A casa que deveria ser minha. Precisava ser minha. A névoa da manhã envolvia a propriedade, dançando como um véu protetor. E, naquele instante, eu senti que o poder da montanha estava mais forte do que nunca.E então, ela espiou pela janela.Quando a vi pela primeira vez, fiquei surpreso com o contraste entre seu cheiro capaz de dominar meus sentidos e ela. Era uma mulher jovem de c
A sensação de estar sozinha naquele lugar me abalava. Eu sabia que Naomi estava na cozinha preparando chá, mesmo assim, a casa parecia respirar ao meu redor, como se estivesse me cercando em um abraço fantasmagórico. Tomei um banho quente, vesti roupas limpas e confortáveis, mas a sensação de algo fora do lugar não desaparecia. Tinha algo nesse lugar.Algo que eu não conseguia entender, mas que parecia me chamar de maneira inquietante. Caminhei até a janela novamente, procurando por qualquer sinal daquele homem misterioso. Ele havia desaparecido, mas sua presença ainda pairava no ar, como um calor que se recusava a desaparecer.Era estranho.Eu podia jurar que senti o toque de sua respiração quando me olhou, uma onda de calor que atravessou a distância entre nós e se alojou sob minha pele. Um arrepio percorreu minha espinha, e meus lábios formigaram com a memória de um toque que nunca aconteceu. Como se ele estivesse ali, tão próximo que o espaço ao meu redor parecia ter encolhido.Qu
Segui o conselho de Kira e fui explorar a cidade.Port Angeles tinha um charme peculiar, suas ruas estreitas e prédios antigos pareciam ter sido arrancados de um livro de histórias, e a neblina que pairava no ar dava um toque quase mágico ao lugar. Após passar pela livraria-café, mercado e um dos restaurantes tradicionais da cidade comecei a compreender por que minha tia-avó havia amado este lugar.Mesmo assim, a inquietação não me deixava.Passei algumas horas perambulando, tentando absorver um pouco do que a cidade tinha a oferecer. Passei no cartório para assinar os papeis e assumir titularidade da casa, me aventurei em uma loja de antiguidades que parecia ter séculos de poeira acumulada e comprei alguns suprimentos em outro mercadinho.Tudo ali era diferente do que eu conhecia. Ainda assim, por mais que tentasse, a sensação de pertencimento que senti na casa não se repetia aqui. Era como se a cidade, de alguma forma, estivesse me testando.— Por que existe esse símbolo em quase to
As árvores ao lado da estrada passavam como vultos enquanto eu corria de volta para casa, em minha forma animal. Havia uma pressão em meu peito, como um incêndio que recusava a ser apagado. Quem ela pensava que era, me desafiando daquela maneira? Ela nem tinha ideia do que estava em jogo.Ainda assim, não consegui tirá-la da minha cabeça desde o momento em que a vi. E isso só piorava as coisas.“Eu vou decidir o que fazer com ela.” As palavras ecoaram na minha mente, irritantes como um zunido constante. Como se ela tivesse algum tipo de controle sobre a situação. Sobre mim.Não, eu não podia permitir isso. Eu precisava de controle, manter a ordem. Desde que assumi a liderança após a morte do meu pai, tudo o que fiz foi garantir a integridade da minha Alcateia e das nossas terras. Agora, com ela aqui, parecia que tudo estava prestes a ruir. Cheguei à porta de casa em um salto poderoso, os músculos das patas impulsionando meu corpo com força.O ar da noite cortava meus pulmões, um lembr
A noite tinha se instalado, trazendo consigo uma quietude que eu não conseguia encontrar em mim mesma. Após ligar para minha mãe e contar como havia sido o meu dia, preparei um chá de camomila, peguei um livro para ler, mas não consegui me concentrar, as palavras se misturaram, ficaram borradas e então cochilei.Minha mente retornou ao encontro de mais cedo.Arturo Pellegrini. Alto, poderoso, e incrivelmente irritante. E ao mesmo tempo... instigante.Meu corpo ainda carregava os resquícios da energia que ele trouxe consigo, um arrepio subindo pela espinha quando lembro da forma como me olhou. Senti um calafrio na espinha e acordei assustada.— Pare de pensar nisso, tire-o da sua cabeça e foque em resolver suas coisas e voltar para sua vida — me repreendi.Deixei o livro na poltrona, fui até a janela e encarei a floresta lá fora. A escuridão parecia densa, a neb
Eu podia sentir cada fibra do meu ser tensionada, como se estivesse conectada a tudo o que acontecia lá fora. A respiração ficou presa em minha garganta quando Arturo recuou, os flancos arfando, o sangue escorrendo por sua pelagem escura.— Não, não, não... —sussurrei, minhas mãos apertando a cortina até meus dedos ficarem brancos.Ele estava sendo empurrado para trás, para fora do portão, e algo nele parecia estar quebrando, como se cada passo fosse um fardo insuportável. Mas então ele parou. Ficou imóvel por um segundo que pareceu uma eternidade. Os lobos ao redor recuaram levemente, rosnando baixo, aguardando seu próximo movimento. A tensão no ar era sufocante, e eu podia sentir meu coração batendo tão forte que ecoava em meus ouvidos. E então, ele avançou.Com um rugido que parecia surgir das profundezas da terra, Arturo se lançou para frente, e o som de sua investida foi como o de uma onda se quebrando contra rochedos.Os lobos se dispersaram, tentan
Arturo dormia pesadamente diante da lareira, seus músculos tensos finalmente relaxando enquanto eu terminava de limpar a bagunça da noite. Olhei para ele, sentindo uma tempestade de emoções que não conseguia controlar. O ataque dos lobos tinha sido brutal, violento, e eu sabia que ele havia se ferido gravemente para me proteger.No entanto, eu não entendia nada do que estava acontecendo.— Por que esses lobos vieram atrás de mim?Eu me sentei no chão, encostada na parede, tentando organizar os pensamentos. Meus olhos continuavam a vagar em direção a Arturo, mesmo quando eu tentava olhar para qualquer outro lugar.Ele era tão... poderoso.Mesmo agora, com as roupas rasgadas e os ferimentos ainda visíveis em sua pele, a força que emanava dele era quase palpável. E era isso que me assustava. Eu sabia que deveria estar mais preocupada em sair daqui,