A cidade estava ficando menor à medida que os dias passavam. Os mesmos prédios, as mesmas pessoas, os mesmos trajetos para o trabalho – e os mesmos artigos enfadonhos. De repente, cada pequena coisa na minha vida parecia sufocante. Mas o que realmente me empurrou para tomar uma decisão foi uma conversa que tive com a minha mãe, depois de finalmente contar sobre a propriedade e quão valiosa era.
“Às vezes, a vida te dá oportunidades disfarçadas de obstáculos. Cabe a você descobrir o que elas realmente são”.
E foi assim que dei o sinal verde para Naomi comprar a passagem.
“Qualquer lugar menos aqui” parecia exatamente o que eu precisava. E quem sabe? Talvez uma pausa para recarregar as energias e uma vida em uma cidade pequena pudesse me oferecer a paz que o barulho incessante da capital nunca poderia.
Pelo menos, era o que eu esperava.
Empacotei minha vida em duas malas e uma caixa de sapatos cheia de pendrives, porque, claro, você nunca sabe quando vai precisar de um backup do artigo sobre toalhas de mesa. Just in case.
DEPOIS DA VIAGEM
O voo foi turbulento, como se a minha decisão de mudar de vida estivesse, literalmente, me sacudindo. E quando finalmente peguei a estrada que levava à casa da minha tia-avó senti um frio na barriga, um formigamento intenso sobre a pele e uma certa sonolência.
Encarei a cidade pela janela do carro e percebi que Port Angeles não se parecia em nada com a cidade em que eu vivia. A sensação de isolamento era palpável. As ruas estreitas e os prédios antigos davam um ar de mistério ao lugar, como se cada esquina escondesse um segredo que ninguém ousava mencionar.
À medida que o taxista prosseguia, meus sentidos começaram a captar os detalhes ao redor: o aroma terroso das árvores, a umidade no ar e o som suave do vento soprando por entre as montanhas próximas. Uma neblina fina pairava sobre a cidade, trazendo uma sensação de calma e uma pitada de inquietação. Apesar de estar envolta nessa atmosfera curiosamente tranquila, o desconforto me atingiu logo ao sair do carro. Eu estava menstruada, é claro. Ótimo timing, pensei, enquanto procurava uma farmácia para comprar absorventes, Tylenol e chocolates.
Tão irritada quanto ansiosa, respirei fundo e tentei afastar o mau humor que ameaçava se instalar. Era hora de focar na missão: conhecer a propriedade, falar com Naomi, entender o que diabos estava acontecendo com a minha vida. A casa da minha tia-avó ficava na encosta da montanha, afastada do centro da cidade, como uma sentinela solitária. Quando finalmente cheguei, o motorista parou o carro em frente ao portão de ferro reforçado e encarei a construção à minha frente.
Era imponente e antiga, com um telhado inclinado coberto de musgo e paredes de pedra que pareciam ter sido esculpidas pelo tempo. Arbustos cresciam ao redor da entrada, e as janelas altas e estreitas davam à casa um ar gótico, como se ela estivesse perpetuamente à espera de visitantes inesperados. Desci do carro, sentindo a gravilha rangendo sob meus pés.
O ar ali era mais fresco, impregnado com o cheiro das árvores e da terra molhada pela neblina matinal. Um arrepio percorreu minha espinha quando um vento frio me envolveu, fazendo com que eu abraçasse o casaco ao redor do corpo. Enquanto me aproximava da porta, ela se abriu antes que eu pudesse bater. Uma mulher mais velha, de postura rígida e cabelos grisalhos presos em um coque apertado, me encarou.
— Senhorita Esposito, seja bem vinda! — Ela veio em minha direção. — Eu sou Naomi Owens, trabalhei para sua avó.
Sua voz era calma, carregada de um profissionalismo que eu não esperava encontrar em uma cidade tão afastada.
— Obrigada, Naomi. Posso entrar? Está tão frio.
— A casa é sua — ela me deu espaço para passar.
Entrei, e um aroma de madeira velha e chá de ervas invadiu minhas narinas. O interior da casa era ainda mais impressionante do que a fachada: piso de madeira escura, lustres antigos, e objetos antigos e aparentemente valiosos por todos os cantos.
— Droga. Parece que meu sinal não pega aqui — ergui o celular acima da cabeça.
— Sem sinal de celular e a internet, quando funciona, é mais lenta que uma carroça.
— E como as pessoas se comunicam por aqui? Sinal de fumaça?
— Telefonia local. — Indicou o aparelho antigo em cima de uma mesa no canto da sala. — Fiquei feliz e surpresa ao saber que viria tão rápido.
— Sim, é que... — engoli em seco. — Posso ser sincera com você, Naomi?
— Sempre, por favor.
— Não tenho interesse em ficar.
A expressão dela foi uma mistura de surpresa com um olhar de desafio, como se soubesse que eu não iria embora tão cedo.
— Estou feliz que a minha tia-avó deixou essa propriedade para mim, e ela é... — parei por um segundo e girei no meu próprio eixo. — Linda.
A cólica menstrual e sensação de dor de cabeça haviam passado. Na verdade, não me lembrava de ter me sentindo tão bem, disposta e viva desce que nasci.
— Sim — Naomi concordou.
— Mas quero vendê-la. Preciso do dinheiro e sei que alguém daqui cuidaria melhor do lugar.
— Tudo bem — me lançou um olhar compreensivo. — Mas antes de ligarmos para os interessados em comprar, que tal conhecer o lugar?
— Claro.
— Esse lugar tem estado em sua família há anos.
Eu estava prestes a perguntar o que ela queria dizer com aquilo quando algo chamou minha atenção do lado de fora da janela. Um movimento.
Me aproximei da janela, afastando a cortina com um toque hesitante. E foi então que eu o vi. Ele estava parado ao lado de um carro preto, braços cruzados, como se estivesse perfeitamente confortável sendo o centro das atenções.
Alto, musculoso e com uma presença magnética, mesmo à distância ele era impossível de ignorar. Os cabelos negros caíam desordenadamente sobre a testa, conferindo-lhe um ar despreocupado, que contrastava com a intensidade do olhar que ele lançou em minha direção. Aquele olhar... cinzento e profundo, como se pudesse enxergar através de mim e, ao mesmo tempo, me desafiar a decifrá-lo.
Seus traços eram marcantes – uma mandíbula bem definida e lábios que se curvavam em um meio sorriso, o tipo de sorriso que sugeria confiança, charme e, talvez, um toque de perigo. Era como se ele soubesse exatamente o que queria, e estivesse acostumado a conseguir. Eu deveria me sentir desconfortável ou talvez assustada por um estranho tão... impactante estar do lado de fora da minha nova propriedade. Mas tudo o que senti foi um arrepio subindo pela coluna. Não era medo. Era... curiosidade.
— Quem é ele? — Sussurrei, desviei os olhos por alguns segundos. Naomi, que tinha seguido meu olhar, se aproximou da janela.
— Quem?
— Ele — apontei.
E não havia mais nada lá.
— Será que é cansaço da viagem? Naomi segurou em meu ombro.
Assenti e tirei um chocolate da minha bolsa, dando uma mordida logo em seguida.
— Acho que sim.
— Talvez um banho quente resolva — ela sorriu. — E um café da manhã reforçado também.
— Acho que falamos a mesma língua, Naomi.
Me afastei da janela lentamente, mas o meu coração ainda batia mais rápido do que deveria. Havia algo naquele homem que gritava perigo e parecia que não abandonaria os meus pensamentos tão cedo.
O cheiro dela estava em toda parte, mesmo antes de vê-la. Doce, fresco, intenso, como uma flor silvestre recém-desabrochada.Era... Humano. Algo que, normalmente, seria insignificante para mim. Mas aquele aroma despertou não apenas o meu lobo, mas um instinto primitivo que eu não sentia havia muito tempo. Não consegui ignorar, não queria ignorar.Era cheiro humano, mas diferente. E essa diferença estava bagunçando todos os meus sentidos. Enquanto me encostava no carro de Draven que havia tentado acompanhar minha corrida animalesca até a fonte do meu desejo, cruzei os braços, observei a casa de sua família. A casa que deveria ser minha. Precisava ser minha. A névoa da manhã envolvia a propriedade, dançando como um véu protetor. E, naquele instante, eu senti que o poder da montanha estava mais forte do que nunca.E então, ela espiou pela janela.Quando a vi pela primeira vez, fiquei surpreso com o contraste entre seu cheiro capaz de dominar meus sentidos e ela. Era uma mulher jovem de c
A sensação de estar sozinha naquele lugar me abalava. Eu sabia que Naomi estava na cozinha preparando chá, mesmo assim, a casa parecia respirar ao meu redor, como se estivesse me cercando em um abraço fantasmagórico. Tomei um banho quente, vesti roupas limpas e confortáveis, mas a sensação de algo fora do lugar não desaparecia. Tinha algo nesse lugar.Algo que eu não conseguia entender, mas que parecia me chamar de maneira inquietante. Caminhei até a janela novamente, procurando por qualquer sinal daquele homem misterioso. Ele havia desaparecido, mas sua presença ainda pairava no ar, como um calor que se recusava a desaparecer.Era estranho.Eu podia jurar que senti o toque de sua respiração quando me olhou, uma onda de calor que atravessou a distância entre nós e se alojou sob minha pele. Um arrepio percorreu minha espinha, e meus lábios formigaram com a memória de um toque que nunca aconteceu. Como se ele estivesse ali, tão próximo que o espaço ao meu redor parecia ter encolhido.Qu
Segui o conselho de Kira e fui explorar a cidade.Port Angeles tinha um charme peculiar, suas ruas estreitas e prédios antigos pareciam ter sido arrancados de um livro de histórias, e a neblina que pairava no ar dava um toque quase mágico ao lugar. Após passar pela livraria-café, mercado e um dos restaurantes tradicionais da cidade comecei a compreender por que minha tia-avó havia amado este lugar.Mesmo assim, a inquietação não me deixava.Passei algumas horas perambulando, tentando absorver um pouco do que a cidade tinha a oferecer. Passei no cartório para assinar os papeis e assumir titularidade da casa, me aventurei em uma loja de antiguidades que parecia ter séculos de poeira acumulada e comprei alguns suprimentos em outro mercadinho.Tudo ali era diferente do que eu conhecia. Ainda assim, por mais que tentasse, a sensação de pertencimento que senti na casa não se repetia aqui. Era como se a cidade, de alguma forma, estivesse me testando.— Por que existe esse símbolo em quase to
As árvores ao lado da estrada passavam como vultos enquanto eu corria de volta para casa, em minha forma animal. Havia uma pressão em meu peito, como um incêndio que recusava a ser apagado. Quem ela pensava que era, me desafiando daquela maneira? Ela nem tinha ideia do que estava em jogo.Ainda assim, não consegui tirá-la da minha cabeça desde o momento em que a vi. E isso só piorava as coisas.“Eu vou decidir o que fazer com ela.” As palavras ecoaram na minha mente, irritantes como um zunido constante. Como se ela tivesse algum tipo de controle sobre a situação. Sobre mim.Não, eu não podia permitir isso. Eu precisava de controle, manter a ordem. Desde que assumi a liderança após a morte do meu pai, tudo o que fiz foi garantir a integridade da minha Alcateia e das nossas terras. Agora, com ela aqui, parecia que tudo estava prestes a ruir. Cheguei à porta de casa em um salto poderoso, os músculos das patas impulsionando meu corpo com força.O ar da noite cortava meus pulmões, um lembr
A noite tinha se instalado, trazendo consigo uma quietude que eu não conseguia encontrar em mim mesma. Após ligar para minha mãe e contar como havia sido o meu dia, preparei um chá de camomila, peguei um livro para ler, mas não consegui me concentrar, as palavras se misturaram, ficaram borradas e então cochilei.Minha mente retornou ao encontro de mais cedo.Arturo Pellegrini. Alto, poderoso, e incrivelmente irritante. E ao mesmo tempo... instigante.Meu corpo ainda carregava os resquícios da energia que ele trouxe consigo, um arrepio subindo pela espinha quando lembro da forma como me olhou. Senti um calafrio na espinha e acordei assustada.— Pare de pensar nisso, tire-o da sua cabeça e foque em resolver suas coisas e voltar para sua vida — me repreendi.Deixei o livro na poltrona, fui até a janela e encarei a floresta lá fora. A escuridão parecia densa, a neb
Eu podia sentir cada fibra do meu ser tensionada, como se estivesse conectada a tudo o que acontecia lá fora. A respiração ficou presa em minha garganta quando Arturo recuou, os flancos arfando, o sangue escorrendo por sua pelagem escura.— Não, não, não... —sussurrei, minhas mãos apertando a cortina até meus dedos ficarem brancos.Ele estava sendo empurrado para trás, para fora do portão, e algo nele parecia estar quebrando, como se cada passo fosse um fardo insuportável. Mas então ele parou. Ficou imóvel por um segundo que pareceu uma eternidade. Os lobos ao redor recuaram levemente, rosnando baixo, aguardando seu próximo movimento. A tensão no ar era sufocante, e eu podia sentir meu coração batendo tão forte que ecoava em meus ouvidos. E então, ele avançou.Com um rugido que parecia surgir das profundezas da terra, Arturo se lançou para frente, e o som de sua investida foi como o de uma onda se quebrando contra rochedos.Os lobos se dispersaram, tentan
Arturo dormia pesadamente diante da lareira, seus músculos tensos finalmente relaxando enquanto eu terminava de limpar a bagunça da noite. Olhei para ele, sentindo uma tempestade de emoções que não conseguia controlar. O ataque dos lobos tinha sido brutal, violento, e eu sabia que ele havia se ferido gravemente para me proteger.No entanto, eu não entendia nada do que estava acontecendo.— Por que esses lobos vieram atrás de mim?Eu me sentei no chão, encostada na parede, tentando organizar os pensamentos. Meus olhos continuavam a vagar em direção a Arturo, mesmo quando eu tentava olhar para qualquer outro lugar.Ele era tão... poderoso.Mesmo agora, com as roupas rasgadas e os ferimentos ainda visíveis em sua pele, a força que emanava dele era quase palpável. E era isso que me assustava. Eu sabia que deveria estar mais preocupada em sair daqui,
— A lua?Quis rir, mas a seriedade em seu rosto impediu o som de sair. Tudo dentro de mim gritava que aquilo era loucura. Mas então, um arrepio percorreu minha espinha, como se algo no ar ao nosso redor estivesse reagindo às palavras dele.— Quem é o seu povo?— Nós somos lobos e a lua é a fonte do nosso poder, nossa rainha. Minha cabeça girou. Nada disso fazia sentido.— E o que você é, Arturo?Ele se virou lentamente para me encarar, e quando seus olhos encontraram os meus, eu senti um arrepio percorrer minha espinha.— Eu sou parte disso. Sou o Alfa máximo da minha Alcateia, sou o guardião dessas terras. E você, Mirella, é a lua.A sala pareceu girar ao meu redor.As palavras dele atingiram meu peito como uma onda, deixando- me sem ar. Guardião? Eu era a lua? Eu não sabia se queria rir ou gritar. Isso era ridículo. Era impossível.E, no entanto, havia algo em seu tom, em seu olhar, que fazia tudo parecer... verdadeiro