O enterro de Milena foi tão bonito quanto ela era em vida. Simples, mas cheio de amor. Amigos e familiares se reuniram para se despedir, cada rosto carregando a dor de uma perda profunda. Milena era o tipo de pessoa que iluminava qualquer lugar onde entrava, e naquele dia, parecia que o céu havia ficado mais cinzento em sua ausência.
— Sinto muito, Lucas,— disseram Leandro e Miguel quase ao mesmo tempo. Eles me abraçaram como se ainda fôssemos crianças, como se aquele gesto fosse suficiente para colar os pedaços do meu coração. Outras condolências vieram em seguida. Palavras de conforto, olhares de piedade. Cada frase era um lembrete cruel de que Milena não estava mais ali comigo, que seu sorriso, seu toque, sua risada haviam sido apagados para sempre. Depois do velório, me despedi de todos e segui para casa sozinho, dirigindo o carro que ela tanto amava: meu Maverick GT 78, preto. Milena tinha uma paixão por carros antigos, algo que aprendera com o avô ainda na infância. Ela costumava dizer que o som do motor desses carros tinha alma, algo que os modelos modernos jamais poderiam replicar. A cada curva, meus olhos desviavam involuntariamente para o banco do passageiro. Era impossível não sentir sua ausência naquele espaço. Durante tantos passeios juntos, ela ficava ali, rindo, cantando ou gesticulando enquanto falava de seus projetos de arquitetura. Agora, o banco estava vazio, mas sua presença ainda parecia pairar no ar, como um fantasma gentil que eu não queria afastar. Na tentativa de escapar dos meus próprios pensamentos, liguei o rádio. A melodia que encheu o carro era inconfundível: “Oh, Pretty Woman”. Era a música favorita de Milena, parte da trilha sonora de Uma Linda Mulher, o filme que ela amava e criticava ao mesmo tempo. — Esse filme é um clichê absurdo, Lucas,— ela dizia, cruzando os braços enquanto me olhava do sofá. — Mas tem um charme que eu não consigo resistir. E a trilha sonora é perfeita! Lembrar disso trouxe um sorriso involuntário ao meu rosto. Era típico de Milena: reconhecer as falhas de algo e, mesmo assim, amar aquilo com todo o coração. Ela sempre encontrava beleza nas imperfeições. Quando a música terminou, o silêncio voltou a tomar conta do carro, mais pesado do que antes. A estrada parecia interminável, como se cada quilômetro estivesse me levando para longe de tudo o que era familiar. Chegar em casa foi como entrar em um museu. Cada canto trazia uma lembrança dela: o casaco que ela havia deixado no sofá, os livros de arquitetura espalhados pela mesa, e até mesmo o cheiro leve do perfume que ainda pairava no ar. Sentei no sofá e olhei para o porta-retratos na estante. Era uma foto nossa, tirada em um dia comum, mas que agora parecia tão distante. Na foto, Milena sorria com o sol batendo em seu rosto. Aquele sorriso… Ele parecia conter todo o amor do mundo, como se ela pudesse iluminar até os momentos mais sombrios. Peguei o porta-retratos e o segurei nas mãos, sentindo as lágrimas rolarem pelo meu rosto antes mesmo de perceber que estava chorando. — Eu não sei como continuar sem você, Milena,— sussurrei para o vazio. O som do relógio na parede era a única resposta. Cozinhar naquela noite parecia uma tarefa impossível. Milena costumava ser a chef de casa, improvisando receitas que enchiam a cozinha com aromas deliciosos. Eu me limitava a ajudar, cortando vegetais ou lavando a louça. Agora, o silêncio da cozinha era ensurdecedor. Abri a geladeira, mas o simples ato de pegar algo para comer parecia errado. Acabei fechando a porta sem tirar nada. Subi para o quarto, me joguei na cama e encarei o teto por um longo tempo, ouvindo o som da minha própria respiração e o eco das memórias. Foi então que me lembrei da caixa. Era uma pequena caixa de madeira que Milena mantinha no armário, cheia de cartas, ingressos de cinema e pequenos objetos que ela considerava especiais. Ela sempre dizia que cada coisa ali tinha uma história, e que um dia, quando estivéssemos velhos, ela me mostraria tudo para revivermos juntos cada momento. Levantei-me e procurei a caixa. Estava no fundo do armário, exatamente onde ela a guardava. Sentei no chão e abri a tampa com cuidado, como se estivesse invadindo um pedaço da alma dela. Lá dentro estavam nossas memórias: o ingresso do nosso primeiro filme juntos, uma foto nossa no parque onde a pedi em casamento, e um cartão que eu havia dado a ela em nosso aniversário de namoro. No fundo da caixa, encontrei uma pequena folha de papel dobrada. Era uma carta dela. “Lucas, Se um dia você encontrar esta carta, quero que saiba que você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Obrigada por me amar, por me fazer rir e por sonhar comigo. Não importa o que aconteça, você sempre será o meu porto seguro. Nunca se esqueça: olhe para o céu. Eu sempre estarei lá, de alguma forma. Com amor, Milena.” Aquelas palavras me atingiram como um soco. Eu chorei como nunca havia chorado antes, segurando a carta contra o peito. Naquela noite, enquanto encarava o teto, algo dentro de mim mudou. O vazio ainda estava lá, mas as palavras dela eram como uma âncora, um lembrete de que, mesmo na ausência, o amor dela continuava me guiando.Cheguei à empresa pontualmente às oito da manhã, como de costume. Era algo automático, um hábito que vinha de anos de dedicação à SynerTech, a empresa que fundei ainda na faculdade com meus dois melhores amigos, Leandro e Miguel. Às vezes, penso que começamos com mais ousadia do que preparo, mas deu certo. Leandro, estudante de Educação Física na época, tinha os recursos iniciais graças ao apoio financeiro do pai e foi nosso primeiro acionista. Miguel, cursando Direito, cuidou da base legal. E eu? Bom, era o carro-chefe. Estava cursando Ciência da Computação e, com eles, transformei uma ideia em realidade.A ideia inicial era simples: desenvolver softwares para grandes corporações. Para nós, parecia apenas um projeto para ganhar dinheiro extra e bancar as festas e viagens universitárias. Nunca imaginamos que, já no segundo ano, o negócio decolaria tanto que precisaríamos contratar uma equipe. Hoje, a SynerTech é uma empresa robusta, com dezenas de funcionários e grandes clientes.Mas,
— Por que não me avisou que havia recebido alta do hospital? — perguntou Ester assim que abriu a porta. Seus braços me envolveram com força, como se quisesse me segurar antes que eu caísse. Deixei-me ficar naquele abraço, sentindo o calor e a segurança que só minha melhor amiga podia me oferecer. As lágrimas, que eu vinha segurando o dia inteiro, vieram como uma torrente. Chorei no ombro dela, soluçando, deixando escapar a dor que parecia presa na garganta. Ester e eu nos conhecemos na Étoile Ballet Company, onde dançávamos. Tínhamos 18 anos quando fizemos a audição juntas. Ela era de uma cidadezinha do interior, um daqueles lugares onde todo mundo conhece todo mundo. Apesar da riqueza dos pais, Ester vivia no meio de valores tradicionais. “Meus pais acham que as cidades grandes corrompem a alma”, dizia ela com um sorriso. — E talvez eles estejam certos — costumava completar, com seu jeito brincalhão. Eu, por outro lado, era o oposto de Ester. Cresci numa metrópole vibrante, cerca
O dia começou de forma previsível. Leandro e Miguel, em sua tentativa incansável de me distrair, decidiram me levar para almoçar em um bistrô recém-inaugurado na cidade. Não era o tipo de lugar que eu e Milena frequentaríamos. Ela amava lugares aconchegantes, com comida simples e boa, onde pudéssemos conversar sem pressa. Apesar do meu ceticismo em experimentar novos sabores, aceitei o convite. Não queria iniciar uma discussão com meus amigos.Sentamo-nos em uma mesa perto da janela. A luz do sol refletia nas taças de água, criando pequenos arco-íris sobre a toalha de linho branca. Fizemos nossos pedidos, e eu optei por algo simples: uma massa. Enquanto esperávamos, fiquei em silêncio, apenas ouvindo Leandro reclamar das exigências de ser personal trainer de influenciadores e Miguel desabafar sobre os desafios jurídicos de lidar com grandes corporações.— Lucas, se precisar de ajuda para organizar ou limpar os pertences da Milena, não precisa fazer isso sozinho. Estamos aqui, cara. —
Seis meses haviam se passado desde o pior momento da minha vida. Acordar todos os dias era um exercício de força, mas aos poucos comecei a encontrar pequenos motivos para seguir em frente.— Ficou lindo. É a nossa cara! O que você acha, Ester? — perguntei, dando um passo para trás para admirar o nosso trabalho no estúdio de dança.Ester, minha melhor amiga e parceira nessa empreitada, colocou as mãos na cintura e sorriu com aquele jeito contagiante que fazia qualquer ambiente parecer mais leve.— Hum, ficou incrível! Nós arrasamos, Paty.A ideia do estúdio nasceu de uma conversa entre lágrimas e abraços no sofá do apartamento que agora dividíamos. Depois de receber alta do hospital, recusei voltar para a casa dos meus pais, que viviam em outro país. Eu precisava de espaço, mas também precisava de companhia, e Ester foi a âncora que me manteve firme.— E se colocarmos a mesa da recepção ali à esquerda, perto da entrada? — sugeriu ela, apontando para um canto do espaço recém-pintado.As
Saímos da sorveteria quando as luzes da rua já estavam acesas, e a praça ao lado começava a ganhar vida. O céu estava tingido de tons de lilás e azul escuro, enquanto as pessoas ao redor davam início à sua rotina noturna. Crianças ainda com uniforme escolar corriam pela praça, adultos caminhavam ou corriam pelos trilhos de cascalho, e buzinas ecoavam no engarrafamento próximo.— O horário do caos. — Ester comentou, abrindo um sorriso divertido enquanto olhava ao redor.— Caótico, mas cheio de vida. — respondi, sentindo uma pontada de paz naquele momento simples.De repente, Ester parou bruscamente e apertou meu braço.— Olha só, amiga! Que lindo aquele cachorro Husky! — disse, já me puxando na direção do animal como uma criança que avista um brinquedo novo.
Estava na cozinha, preparando o jantar, quando Ester apareceu na sala, vestindo shorts jeans e sua camiseta do Rolling Stones, já desbotada pelo tempo, mas que ela adorava. Estava largada no sofá, com as pernas cruzadas e o olhar perdido em seus próprios pensamentos.— E aí, como foi conversar com o Miguel? — perguntei casualmente, enquanto retirava o salmão da geladeira para grelhar.Ela levantou os olhos na minha direção e esboçou um sorriso.— Não quero me precipitar, Paty, mas foi ótimo. Consegui conversar de verdade com ele. Ele é espirituoso, engraçado… — começou, com o tom animado que só usava quando algo realmente a impressionava.Enqua
— Acho que essa é a última caixa, Lucas. — disse Leandro, colocando-a ao lado das outras no canto da sala.Olhei para a pilha de caixas que agora ocupava aquele espaço. Demorei seis meses para criar coragem de retirar os pertences de Milena da nossa casa. Foi um processo lento e doloroso. Cada objeto que eu tocava parecia trazer de volta memórias que me esmagavam por dentro: as roupas que ela usava nos nossos jantares favoritos, os perfumes que enchiam o quarto com seu aroma, e as fotos… cada uma um lembrete do que nunca mais voltaria.Lágrimas teimosas queimavam nos olhos, mas as engoli antes que caíssem. Não era a hora de desabar, não agora, não na frente deles.Miguel, percebendo meu estado, colocou a mão no meu ombro, um gesto simples, mas reconfortante.— Você não precisa se desfazer de tudo de uma vez. Escolha algo para guardar, talvez uma foto dos dois, de um momento em que estavam felizes. Pode parecer pequeno, mas vai ajudar a manter as boas lembranças vivas. — disse ele com
Estava sentada à mesa da cozinha, ainda de pijama, saboreando meu cappuccino e uma fatia de pão com geleia. A manhã seguia tranquila, com o som distante dos pássaros preenchendo o silêncio aconchegante do lar. A luz suave do sol atravessava a janela, aquecendo levemente o ambiente.Ester apareceu na porta, os longos cabelos negros emaranhados e os olhos ainda pesados de sono. Usava um moletom folgado que parecia abraçá-la por inteiro, e os pés arrastavam-se preguiçosamente pelo chão frio.— Bom dia, Paty. Por que você não me acordou? — disse ela entre um bocejo, caminhando até o balcão em busca de uma caneca para o café.— Você parecia tão tranquila, Ester. Não tive coragem. — respondi com um sorriso pequeno.Ester se inclinou e me deu um beijo carinhoso no topo da cabeça antes de se servir com café. Aquele gesto simples, mas carregado de cuidado, fez meu peito se aquecer.Então, meu celular vibrou sobre a mesa. O som, embora discreto, pareceu ressoar mais alto do que deveria. Peguei