Cheguei à empresa pontualmente às oito da manhã, como de costume. Era algo automático, um hábito que vinha de anos de dedicação à SynerTech, a empresa que fundei ainda na faculdade com meus dois melhores amigos, Leandro e Miguel. Às vezes, penso que começamos com mais ousadia do que preparo, mas deu certo. Leandro, estudante de Educação Física na época, tinha os recursos iniciais graças ao apoio financeiro do pai e foi nosso primeiro acionista. Miguel, cursando Direito, cuidou da base legal. E eu? Bom, era o carro-chefe. Estava cursando Ciência da Computação e, com eles, transformei uma ideia em realidade.
A ideia inicial era simples: desenvolver softwares para grandes corporações. Para nós, parecia apenas um projeto para ganhar dinheiro extra e bancar as festas e viagens universitárias. Nunca imaginamos que, já no segundo ano, o negócio decolaria tanto que precisaríamos contratar uma equipe. Hoje, a SynerTech é uma empresa robusta, com dezenas de funcionários e grandes clientes. Mas, naquela manhã, o ambiente que sempre foi meu refúgio parecia diferente. As paredes, os pilares, cada detalhe me lembravam Milena. Quando nos mudamos para o prédio onde a empresa opera hoje, foi ela quem usou sua criatividade e conhecimento em arquitetura para projetar o design. “Esse lugar precisa ter alma,” dizia, animada. Milena dedicou dias inteiros a cada escolha, dos ladrilhos à iluminação, para que o espaço refletisse a essência da nossa amizade e do nosso trabalho. — Bom dia, Sr. Lucas — disse Marlene, minha secretária, com a mesma delicadeza de sempre. — Como está se sentindo hoje? Olhei para ela por um momento, tentando encontrar uma resposta. — Estou tentando lembrar por que levantei da cama hoje, Marlene — respondi, sentindo a tristeza pesar em cada palavra. Ela me deu um sorriso compreensivo, aquele tipo de sorriso que parece carregar um abraço. — Milena foi uma mulher extraordinária, Sr. Lucas. Tenho certeza de que, onde quer que esteja, ela diria para você sorrir, mesmo que ainda não tenha motivos. Tentei esboçar um sorriso, mas ele não alcançou meus olhos. Ainda assim, Marlene tinha razão. Milena sempre dizia isso. “Olhe para o céu”, ela costumava falar. Então, fui até minha sala. Abri as cortinas e fiquei em frente à janela de vidro, deixando a luz do sol entrar. Olhei para o céu por longos minutos, buscando um traço de conforto ou um sinal que fosse. Talvez, em algum lugar, ela estivesse olhando para mim também. O dia se arrastou como nunca. O trabalho, que costumava me manter ocupado e afastar pensamentos ruins, parecia vazio agora. Nos intervalos, era com Milena que eu trocava mensagens. Ela sempre tinha algo engraçado ou doce para dizer, algo que fazia qualquer dia comum parecer especial. Mas naquele dia, não havia mensagens. Só silêncio. Peguei meu celular e abri nossas conversas antigas. Meu dedo pairou sobre um áudio que ela havia enviado semanas antes. Respirei fundo e apertei o play. Sua voz preencheu a sala. “Oi, amor! Hoje vou preparar o nosso jantar… Bom, na verdade, vou passar no restaurante e pegar nossas pizzas favoritas, porque, né? Ninguém merece cozinhar numa quarta-feira. Escolhi aquelas com muito queijo, como você gosta. E depois a gente pode assistir um filme até dormir no sofá, um no braço do outro, porque a gente sabe que o filme vai ser só um plano de fundo mesmo.” Ela riu no final da mensagem, e, por um momento, eu senti como se ela estivesse ali, comigo. Quando o áudio acabou, o silêncio voltou, pesado e implacável. Me recostei na cadeira de couro do escritório, encarando a parede. A lembrança daquela noite me atingiu com força. Era uma quarta-feira qualquer, mas Milena tinha o dom de transformar o cotidiano em algo mágico. — Como ela fazia isso? — murmurei para mim mesmo, sentindo a garganta apertar. Olhei para a prateleira da sala, onde ela tinha deixado um pequeno vaso com flores artificiais que havia escolhido para “dar um toque de vida ao ambiente”. Elas estavam ali, imóveis, mas de alguma forma carregavam a essência dela. A dor que eu sentia era insuportável. Não era apenas saudade; era um buraco no peito, uma ausência que parecia se expandir a cada segundo. Me perguntei quanto tempo um luto poderia durar. Será que um dia essa dor se transformaria em algo mais suportável? O relógio marcou meio-dia, mas eu não sentia fome. Tudo parecia irrelevante sem Milena. Olhei para o céu novamente, buscando algum tipo de resposta, algo que me dissesse que ela estava bem, onde quer que estivesse. Lembrei da carta que encontrei em sua caixa de memórias, onde ela dizia: “Nunca se esqueça: olhe para o céu. Eu sempre estarei lá, de alguma forma.” Essas palavras me mantinham em pé, mas também traziam uma avalanche de sentimentos. Olhar para o céu era como um lembrete de que ela tinha ido embora. E, ao mesmo tempo, era uma conexão com ela. Marlene bateu levemente na porta, interrompendo meus pensamentos. — Sr. Lucas, desculpe incomodar, mas Leandro e Miguel estão aqui. Eles pediram para saber se o senhor quer almoçar com eles. Hesitei por um momento. Queria ficar sozinho, mas sabia que meus amigos estavam tentando me ajudar. — Diga que estarei lá em cinco minutos, Marlene. Obrigado. Ela sorriu e saiu, deixando a porta entreaberta. Respirei fundo, ajeitei o paletó e me levantei. Antes de sair, olhei mais uma vez para o céu. — Eu ainda não sei como continuar sem você, Milena,— pensei. — Mas vou tentar. Fechei a porta e segui para o próximo momento do dia, levando comigo as memórias dela, como uma âncora e um consolo silencioso.— Por que não me avisou que havia recebido alta do hospital? — perguntou Ester assim que abriu a porta. Seus braços me envolveram com força, como se quisesse me segurar antes que eu caísse. Deixei-me ficar naquele abraço, sentindo o calor e a segurança que só minha melhor amiga podia me oferecer. As lágrimas, que eu vinha segurando o dia inteiro, vieram como uma torrente. Chorei no ombro dela, soluçando, deixando escapar a dor que parecia presa na garganta. Ester e eu nos conhecemos na Étoile Ballet Company, onde dançávamos. Tínhamos 18 anos quando fizemos a audição juntas. Ela era de uma cidadezinha do interior, um daqueles lugares onde todo mundo conhece todo mundo. Apesar da riqueza dos pais, Ester vivia no meio de valores tradicionais. “Meus pais acham que as cidades grandes corrompem a alma”, dizia ela com um sorriso. — E talvez eles estejam certos — costumava completar, com seu jeito brincalhão. Eu, por outro lado, era o oposto de Ester. Cresci numa metrópole vibrante, cerca
O dia começou de forma previsível. Leandro e Miguel, em sua tentativa incansável de me distrair, decidiram me levar para almoçar em um bistrô recém-inaugurado na cidade. Não era o tipo de lugar que eu e Milena frequentaríamos. Ela amava lugares aconchegantes, com comida simples e boa, onde pudéssemos conversar sem pressa. Apesar do meu ceticismo em experimentar novos sabores, aceitei o convite. Não queria iniciar uma discussão com meus amigos.Sentamo-nos em uma mesa perto da janela. A luz do sol refletia nas taças de água, criando pequenos arco-íris sobre a toalha de linho branca. Fizemos nossos pedidos, e eu optei por algo simples: uma massa. Enquanto esperávamos, fiquei em silêncio, apenas ouvindo Leandro reclamar das exigências de ser personal trainer de influenciadores e Miguel desabafar sobre os desafios jurídicos de lidar com grandes corporações.— Lucas, se precisar de ajuda para organizar ou limpar os pertences da Milena, não precisa fazer isso sozinho. Estamos aqui, cara. —
Seis meses haviam se passado desde o pior momento da minha vida. Acordar todos os dias era um exercício de força, mas aos poucos comecei a encontrar pequenos motivos para seguir em frente.— Ficou lindo. É a nossa cara! O que você acha, Ester? — perguntei, dando um passo para trás para admirar o nosso trabalho no estúdio de dança.Ester, minha melhor amiga e parceira nessa empreitada, colocou as mãos na cintura e sorriu com aquele jeito contagiante que fazia qualquer ambiente parecer mais leve.— Hum, ficou incrível! Nós arrasamos, Paty.A ideia do estúdio nasceu de uma conversa entre lágrimas e abraços no sofá do apartamento que agora dividíamos. Depois de receber alta do hospital, recusei voltar para a casa dos meus pais, que viviam em outro país. Eu precisava de espaço, mas também precisava de companhia, e Ester foi a âncora que me manteve firme.— E se colocarmos a mesa da recepção ali à esquerda, perto da entrada? — sugeriu ela, apontando para um canto do espaço recém-pintado.As
Saímos da sorveteria quando as luzes da rua já estavam acesas, e a praça ao lado começava a ganhar vida. O céu estava tingido de tons de lilás e azul escuro, enquanto as pessoas ao redor davam início à sua rotina noturna. Crianças ainda com uniforme escolar corriam pela praça, adultos caminhavam ou corriam pelos trilhos de cascalho, e buzinas ecoavam no engarrafamento próximo.— O horário do caos. — Ester comentou, abrindo um sorriso divertido enquanto olhava ao redor.— Caótico, mas cheio de vida. — respondi, sentindo uma pontada de paz naquele momento simples.De repente, Ester parou bruscamente e apertou meu braço.— Olha só, amiga! Que lindo aquele cachorro Husky! — disse, já me puxando na direção do animal como uma criança que avista um brinquedo novo.
Estava na cozinha, preparando o jantar, quando Ester apareceu na sala, vestindo shorts jeans e sua camiseta do Rolling Stones, já desbotada pelo tempo, mas que ela adorava. Estava largada no sofá, com as pernas cruzadas e o olhar perdido em seus próprios pensamentos.— E aí, como foi conversar com o Miguel? — perguntei casualmente, enquanto retirava o salmão da geladeira para grelhar.Ela levantou os olhos na minha direção e esboçou um sorriso.— Não quero me precipitar, Paty, mas foi ótimo. Consegui conversar de verdade com ele. Ele é espirituoso, engraçado… — começou, com o tom animado que só usava quando algo realmente a impressionava.Enqua
— Acho que essa é a última caixa, Lucas. — disse Leandro, colocando-a ao lado das outras no canto da sala.Olhei para a pilha de caixas que agora ocupava aquele espaço. Demorei seis meses para criar coragem de retirar os pertences de Milena da nossa casa. Foi um processo lento e doloroso. Cada objeto que eu tocava parecia trazer de volta memórias que me esmagavam por dentro: as roupas que ela usava nos nossos jantares favoritos, os perfumes que enchiam o quarto com seu aroma, e as fotos… cada uma um lembrete do que nunca mais voltaria.Lágrimas teimosas queimavam nos olhos, mas as engoli antes que caíssem. Não era a hora de desabar, não agora, não na frente deles.Miguel, percebendo meu estado, colocou a mão no meu ombro, um gesto simples, mas reconfortante.— Você não precisa se desfazer de tudo de uma vez. Escolha algo para guardar, talvez uma foto dos dois, de um momento em que estavam felizes. Pode parecer pequeno, mas vai ajudar a manter as boas lembranças vivas. — disse ele com
Estava sentada à mesa da cozinha, ainda de pijama, saboreando meu cappuccino e uma fatia de pão com geleia. A manhã seguia tranquila, com o som distante dos pássaros preenchendo o silêncio aconchegante do lar. A luz suave do sol atravessava a janela, aquecendo levemente o ambiente.Ester apareceu na porta, os longos cabelos negros emaranhados e os olhos ainda pesados de sono. Usava um moletom folgado que parecia abraçá-la por inteiro, e os pés arrastavam-se preguiçosamente pelo chão frio.— Bom dia, Paty. Por que você não me acordou? — disse ela entre um bocejo, caminhando até o balcão em busca de uma caneca para o café.— Você parecia tão tranquila, Ester. Não tive coragem. — respondi com um sorriso pequeno.Ester se inclinou e me deu um beijo carinhoso no topo da cabeça antes de se servir com café. Aquele gesto simples, mas carregado de cuidado, fez meu peito se aquecer.Então, meu celular vibrou sobre a mesa. O som, embora discreto, pareceu ressoar mais alto do que deveria. Peguei
— Acredito que, com esses dados, temos tudo o necessário para desenvolver o aplicativo ideal para atender à sua empresa, Sr. Dalton. — finalizei, fechando meu caderno de anotações com precisão. — Nosso departamento jurídico entrará em contato com sua assistente para alinhar a assinatura do contrato.Após quase duas horas de conversa, análises e projeções, a reunião finalmente chegou ao fim. O Sr. Dalton levantou-se, ajustou o paletó impecável e me ofereceu um sorriso satisfeito antes de estender a mão para mim.— Agradecemos pela confiança depositada na SynerTech. — acrescentei ao apertar sua mão.— Eu que agradeço, Lucas. A proposta de vocês está perfeitamente alinhada ao que buscamos. — Sua voz carregava um tom firme, mas havia um brilho no olhar de quem enxergava potencial em nossa parceria.— Marlene, por favor, acompanhe o Sr. Dalton até a saída.Marlene, sempre eficiente, assentiu e seguiu com ele, deixando-me sozinho na ampla sala de reuniões. O silêncio que tomou conta do espa