— Por que não me avisou que havia recebido alta do hospital? — perguntou Ester assim que abriu a porta. Seus braços me envolveram com força, como se quisesse me segurar antes que eu caísse.
Deixei-me ficar naquele abraço, sentindo o calor e a segurança que só minha melhor amiga podia me oferecer. As lágrimas, que eu vinha segurando o dia inteiro, vieram como uma torrente. Chorei no ombro dela, soluçando, deixando escapar a dor que parecia presa na garganta. Ester e eu nos conhecemos na Étoile Ballet Company, onde dançávamos. Tínhamos 18 anos quando fizemos a audição juntas. Ela era de uma cidadezinha do interior, um daqueles lugares onde todo mundo conhece todo mundo. Apesar da riqueza dos pais, Ester vivia no meio de valores tradicionais. “Meus pais acham que as cidades grandes corrompem a alma”, dizia ela com um sorriso. — E talvez eles estejam certos — costumava completar, com seu jeito brincalhão. Eu, por outro lado, era o oposto de Ester. Cresci numa metrópole vibrante, cercada de amigos e oportunidades. Meus pais, parte da alta sociedade, me deram tudo, não apenas material, mas amor, segurança, compreensão. Minha mãe era minha rainha, e meu pai, meu herói. Apesar de mimada às vezes, sempre me senti profundamente amada. Agora, sentada no sofá com Ester, tudo isso parecia tão distante, como um filme antigo cujas cores desbotaram com o tempo. Ela me aninhou em seus braços, acariciando meu cabelo. Era um gesto que me fazia sentir como uma criança novamente, buscando consolo para uma dor que parecia maior do que eu podia suportar. — Eu me sinto tão vazia — murmurei, a voz quase sumindo. Ester me apertou ainda mais, e naquele silêncio, ela disse tudo o que eu precisava ouvir sem usar uma única palavra. Depois de algum tempo ali, tentando reunir os pedaços de mim mesma, levantei-me e caminhei até o banheiro. Fechei a porta com cuidado e encarei o reflexo no espelho. Tirei a blusa primeiro, depois as calças, e cada peça de roupa parecia pesar toneladas. Quando fiquei de frente para o espelho, meu próprio reflexo me assustou. Minha pele clara, marcada por hematomas de tons roxos e amarelos, era um lembrete cruel da última briga com Marcus. Corri os dedos pelo braço, onde a pele ainda doía ao toque. Olhar para aquelas marcas era como reviver tudo. Cada grito, cada tapa, cada palavra cortante que ele usava para me diminuir. Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto, suaves como chuva antes da tempestade. Senti o peso delas, não só no rosto, mas na alma. Como se cada gota carregasse um pedaço da minha história que eu não queria mais lembrar, mas que também não conseguia esquecer. Sequei o rosto com a palma da mão, respirando fundo, tentando encontrar forças. Entrei no chuveiro, deixando a água quente escorrer pelo corpo. Cada gota parecia lavar, mesmo que só um pouco, a sujeira invisível que Marcus deixou em mim. Eu fechei os olhos e deixei a água cair sobre os cabelos, o rosto, os ombros, como se pudesse levar embora não só a dor, mas o medo, a culpa, e o vazio. Apoiei as mãos contra a parede fria, a testa encostada no azulejo. O som da água preenchia o silêncio, abafando os pensamentos. Por que eu deixei isso acontecer? Essa pergunta ecoava, mas nunca vinha com uma resposta. Por mais que eu soubesse que Marcus era o culpado, uma parte de mim ainda se perguntava se eu tinha falhado. Se eu deveria ter feito algo diferente. A água começou a esfriar, e o arrepio na pele me trouxe de volta ao presente. Peguei a toalha e me enrolei, tentando aproveitar o calor que restava. Ao sair do banheiro, Ester estava sentada no sofá, mexendo em um copo de chá que havia preparado. — Você está melhor? — perguntou, levantando os olhos para mim. Assenti, mas sabia que não estava. — Vai levar um tempo — continuou ela, lendo minha hesitação. — Mas eu estou aqui. Sempre. Sentei-me ao lado dela novamente, abraçando o corpo com os braços, ainda sentindo o frio da realidade. — Não sei como começar de novo, Ester. Não sei nem se quero — confessei, minha voz tão baixa que mal a reconheci. Ela colocou o chá de lado e segurou minhas mãos. — Patrícia, você já começou. A partir do momento em que decidiu sair daquela casa, você começou. E eu vou te ajudar a continuar. Fechei os olhos, sentindo o peso de suas palavras. Ester sempre teve essa habilidade de trazer luz para os cantos mais escuros da minha vida. — Eu só queria… ser quem eu era antes de tudo isso. Antes dele. Ester suspirou, passando os dedos pelo meu cabelo. — Você nunca vai ser a mesma, Paty. Mas sabe o que é bonito? Você vai ser ainda mais forte. Aquelas palavras ficaram ecoando em minha mente enquanto a noite avançava. Ester dormiu no sofá, insistindo em não me deixar sozinha naquela noite. E, mesmo que o peso ainda estivesse lá, algo em mim começou a acreditar que, talvez, um dia eu pudesse me reconstruir.O dia começou de forma previsível. Leandro e Miguel, em sua tentativa incansável de me distrair, decidiram me levar para almoçar em um bistrô recém-inaugurado na cidade. Não era o tipo de lugar que eu e Milena frequentaríamos. Ela amava lugares aconchegantes, com comida simples e boa, onde pudéssemos conversar sem pressa. Apesar do meu ceticismo em experimentar novos sabores, aceitei o convite. Não queria iniciar uma discussão com meus amigos.Sentamo-nos em uma mesa perto da janela. A luz do sol refletia nas taças de água, criando pequenos arco-íris sobre a toalha de linho branca. Fizemos nossos pedidos, e eu optei por algo simples: uma massa. Enquanto esperávamos, fiquei em silêncio, apenas ouvindo Leandro reclamar das exigências de ser personal trainer de influenciadores e Miguel desabafar sobre os desafios jurídicos de lidar com grandes corporações.— Lucas, se precisar de ajuda para organizar ou limpar os pertences da Milena, não precisa fazer isso sozinho. Estamos aqui, cara. —
Seis meses haviam se passado desde o pior momento da minha vida. Acordar todos os dias era um exercício de força, mas aos poucos comecei a encontrar pequenos motivos para seguir em frente.— Ficou lindo. É a nossa cara! O que você acha, Ester? — perguntei, dando um passo para trás para admirar o nosso trabalho no estúdio de dança.Ester, minha melhor amiga e parceira nessa empreitada, colocou as mãos na cintura e sorriu com aquele jeito contagiante que fazia qualquer ambiente parecer mais leve.— Hum, ficou incrível! Nós arrasamos, Paty.A ideia do estúdio nasceu de uma conversa entre lágrimas e abraços no sofá do apartamento que agora dividíamos. Depois de receber alta do hospital, recusei voltar para a casa dos meus pais, que viviam em outro país. Eu precisava de espaço, mas também precisava de companhia, e Ester foi a âncora que me manteve firme.— E se colocarmos a mesa da recepção ali à esquerda, perto da entrada? — sugeriu ela, apontando para um canto do espaço recém-pintado.As
Saímos da sorveteria quando as luzes da rua já estavam acesas, e a praça ao lado começava a ganhar vida. O céu estava tingido de tons de lilás e azul escuro, enquanto as pessoas ao redor davam início à sua rotina noturna. Crianças ainda com uniforme escolar corriam pela praça, adultos caminhavam ou corriam pelos trilhos de cascalho, e buzinas ecoavam no engarrafamento próximo.— O horário do caos. — Ester comentou, abrindo um sorriso divertido enquanto olhava ao redor.— Caótico, mas cheio de vida. — respondi, sentindo uma pontada de paz naquele momento simples.De repente, Ester parou bruscamente e apertou meu braço.— Olha só, amiga! Que lindo aquele cachorro Husky! — disse, já me puxando na direção do animal como uma criança que avista um brinquedo novo.
Estava na cozinha, preparando o jantar, quando Ester apareceu na sala, vestindo shorts jeans e sua camiseta do Rolling Stones, já desbotada pelo tempo, mas que ela adorava. Estava largada no sofá, com as pernas cruzadas e o olhar perdido em seus próprios pensamentos.— E aí, como foi conversar com o Miguel? — perguntei casualmente, enquanto retirava o salmão da geladeira para grelhar.Ela levantou os olhos na minha direção e esboçou um sorriso.— Não quero me precipitar, Paty, mas foi ótimo. Consegui conversar de verdade com ele. Ele é espirituoso, engraçado… — começou, com o tom animado que só usava quando algo realmente a impressionava.Enqua
— Acho que essa é a última caixa, Lucas. — disse Leandro, colocando-a ao lado das outras no canto da sala.Olhei para a pilha de caixas que agora ocupava aquele espaço. Demorei seis meses para criar coragem de retirar os pertences de Milena da nossa casa. Foi um processo lento e doloroso. Cada objeto que eu tocava parecia trazer de volta memórias que me esmagavam por dentro: as roupas que ela usava nos nossos jantares favoritos, os perfumes que enchiam o quarto com seu aroma, e as fotos… cada uma um lembrete do que nunca mais voltaria.Lágrimas teimosas queimavam nos olhos, mas as engoli antes que caíssem. Não era a hora de desabar, não agora, não na frente deles.Miguel, percebendo meu estado, colocou a mão no meu ombro, um gesto simples, mas reconfortante.— Você não precisa se desfazer de tudo de uma vez. Escolha algo para guardar, talvez uma foto dos dois, de um momento em que estavam felizes. Pode parecer pequeno, mas vai ajudar a manter as boas lembranças vivas. — disse ele com
Estava sentada à mesa da cozinha, ainda de pijama, saboreando meu cappuccino e uma fatia de pão com geleia. A manhã seguia tranquila, com o som distante dos pássaros preenchendo o silêncio aconchegante do lar. A luz suave do sol atravessava a janela, aquecendo levemente o ambiente.Ester apareceu na porta, os longos cabelos negros emaranhados e os olhos ainda pesados de sono. Usava um moletom folgado que parecia abraçá-la por inteiro, e os pés arrastavam-se preguiçosamente pelo chão frio.— Bom dia, Paty. Por que você não me acordou? — disse ela entre um bocejo, caminhando até o balcão em busca de uma caneca para o café.— Você parecia tão tranquila, Ester. Não tive coragem. — respondi com um sorriso pequeno.Ester se inclinou e me deu um beijo carinhoso no topo da cabeça antes de se servir com café. Aquele gesto simples, mas carregado de cuidado, fez meu peito se aquecer.Então, meu celular vibrou sobre a mesa. O som, embora discreto, pareceu ressoar mais alto do que deveria. Peguei
— Acredito que, com esses dados, temos tudo o necessário para desenvolver o aplicativo ideal para atender à sua empresa, Sr. Dalton. — finalizei, fechando meu caderno de anotações com precisão. — Nosso departamento jurídico entrará em contato com sua assistente para alinhar a assinatura do contrato.Após quase duas horas de conversa, análises e projeções, a reunião finalmente chegou ao fim. O Sr. Dalton levantou-se, ajustou o paletó impecável e me ofereceu um sorriso satisfeito antes de estender a mão para mim.— Agradecemos pela confiança depositada na SynerTech. — acrescentei ao apertar sua mão.— Eu que agradeço, Lucas. A proposta de vocês está perfeitamente alinhada ao que buscamos. — Sua voz carregava um tom firme, mas havia um brilho no olhar de quem enxergava potencial em nossa parceria.— Marlene, por favor, acompanhe o Sr. Dalton até a saída.Marlene, sempre eficiente, assentiu e seguiu com ele, deixando-me sozinho na ampla sala de reuniões. O silêncio que tomou conta do espa
— Está nervosa para hoje à noite, querida? — perguntou minha mãe, sua voz suave, como sempre, enquanto observava meu reflexo no espelho. Eu ajeitava, mais uma vez, o vestido azul marinho que havia escolhido para a ocasião, tentando ajustar os detalhes que, à minha maneira, poderiam transformar aquele vestido em algo mais do que uma simples peça de roupa. Era mais do que isso. Era uma representação de tudo o que eu estava prestes a viver.Suspirei profundamente, sentindo os ombros relaxarem. — Acho que sim. O novo sempre assusta, não é?Minha mãe sorriu, um sorriso caloroso, com aqueles olhos que pareciam saber mais do que eu. Ela se aproximou, tocando gentilmente minha cabeça, e ajeitou uma mecha de cabelo que insistia em cair sobre meu rosto. Seu toque foi como um bálsamo, e suas palavras, tão cheias de uma sabedoria tranquila, aqueceram meu coração. — O novo é apenas o início de algo que você ainda não conhece. Encare-o como uma página em branco, pronta para ser preenchida com as co