Senti o primeiro tapa no terceiro mês de namoro. A dor na pele foi imediata, mas a dor na alma veio depois, como uma onda que arrasta tudo. Marcus disse que era porque eu estava flertando com Felipe, um colega advogado dele, durante um coquetel da empresa. Eu mal trocara palavras com o homem além do básico de educação, mas para Marcus, meu sorriso era suficiente para justificar sua raiva.
Naquele momento, vi a sombra por trás do sorriso perfeito e dos dentes alinhados. Mas já estava envolvida demais para perceber o perigo. Marcus era tudo o que eu achava querer em um homem: sedutor, bem-sucedido e confiante. Tinha 28 anos quando nos conhecemos, seis anos a mais do que eu, o suficiente para eu acreditar que ele era mais maduro e que juntos formaríamos um belo casal. Na época, eu era bailarina e vivia o auge da minha carreira aos 22 anos. Minha rotina era intensa, e os palcos eram meu mundo. Foi em uma das minhas apresentações que conheci Marcus. Eu estava atrasada para o segundo ato e corria pelo teatro em direção ao camarim quando esbarrei em um grupo de pessoas. Meu coração estava acelerado, mas o impacto me fez parar. Lá estava ele: terno impecável, cabelos perfeitamente alinhados, e aquele sorriso que parecia iluminar o ambiente. — Eu acho que isso aqui é seu,— disse ele, segurando minha sapatilha. — É sim! Você acabou de salvar minha vida,— respondi, quase sem fôlego. Peguei a sapatilha com pressa, mas ainda consegui sorrir antes de sair correndo. — Meu coreógrafo nunca me perdoaria se eu perdesse isso. — Qual é o seu nome? — ele perguntou, a voz firme, mas suave. — Patrícia,— respondi rapidamente antes de desaparecer pelo corredor. Quando a apresentação terminou, cansada, fui para o camarim, e lá estava ele. Segurava um buquê de lírios brancos — minhas flores favoritas, embora ele não pudesse saber disso ainda. — Você! — exclamei, surpresa. — Sim, eu. E, infelizmente, as flores não são minhas, — ele disse com um sorriso, estendendo o buquê. — O entregador deixou comigo, e achei que poderia usar isso como desculpa para te ver. Ri da forma descontraída com que ele falava. Marcus tinha uma presença carismática que fazia tudo parecer mais leve. Peguei o buquê e vi o cartão que o acompanhava: “Para a melhor bailarina de todas, boa sorte na apresentação! Com amor, Ester.” — Ah, são da minha melhor amiga,— expliquei, tentando esconder a decepção momentânea. — Ótimo! Assim talvez eu tenha menos concorrência,— ele disse, com um brilho divertido nos olhos. Não pude evitar sorrir de volta. — Posso te convidar para uma bebida?— ele perguntou. Aceitei. Fomos a um bar próximo ao teatro, e as horas passaram como se fossem minutos. Ele era engraçado, contava histórias e piadas que me faziam rir como há tempos eu não ria. Quando olhava nos meus olhos, sentia que ele realmente me ouvia, como se cada palavra minha fosse importante. Na hora de ir embora, ele insistiu em me levar para casa, mas recusei. Preferi pegar um táxi. Ainda assim, trocamos telefones, e nos dias seguintes ele não perdeu tempo em me conquistar. Em duas semanas, ele me pediu em namoro, e eu aceitei. Tudo parecia perfeito. Nos primeiros meses, ele era o homem que qualquer mulher sonharia em ter ao lado. Atencioso, divertido e sempre presente. Mas a primeira sombra de quem Marcus realmente era surgiu devagar, quase imperceptível. Ele começou a ser muito atento aos meus movimentos, a perguntar mais do que o normal sobre os lugares que eu ia e as pessoas com quem eu conversava. — Quem era aquele homem que te abraçou no final da apresentação?— ele perguntou uma vez, com um tom que parecia brincadeira, mas seus olhos denunciavam algo mais sério. — Meu professor de dança. Ele me parabenizou,— expliquei, rindo. Ele assentiu, mas percebi um leve aperto na mandíbula. E então veio o primeiro tapa. Naquela noite, eu estava especialmente animada. Era um coquetel da empresa de Marcus, e ele me convidara para acompanhá-lo. Passei boa parte do tempo conversando educadamente com as pessoas, incluindo Felipe, um colega advogado dele. Não era nada além de cordialidade, mas Marcus não viu assim. Quando chegamos em casa, a explosão veio. — Você acha que eu sou idiota? Ficar sorrindo e brincando com o Felipe?! — ele gritou. — Eu só estava sendo educada, Marcus. É seu colega de trabalho,— argumentei, surpresa com a intensidade do ataque. Então veio o tapa, rápido, como se fosse algo natural para ele. Meu rosto ardeu, mas o choque foi maior que a dor. Depois, ele chorou. Pediu desculpas, disse que tinha perdido a cabeça, que era apenas porque me amava demais e não suportava a ideia de me perder. Eu quis acreditar. Os dias que seguiram foram cheios de desculpas e promessas. Ele trouxe flores, me levou para jantar, e por um tempo, parecia que tudo voltaria ao normal. Mas, na verdade, aquilo foi só o começo. Agora, olhando para trás, me pergunto por que não vi os sinais antes. Por que ignorei aquele aperto no peito que senti desde o início. Mas acho que, no fundo, eu já sabia: o brilho de Marcus era apenas uma fachada. E por trás dele havia escuridão.O enterro de Milena foi tão bonito quanto ela era em vida. Simples, mas cheio de amor. Amigos e familiares se reuniram para se despedir, cada rosto carregando a dor de uma perda profunda. Milena era o tipo de pessoa que iluminava qualquer lugar onde entrava, e naquele dia, parecia que o céu havia ficado mais cinzento em sua ausência.— Sinto muito, Lucas,— disseram Leandro e Miguel quase ao mesmo tempo. Eles me abraçaram como se ainda fôssemos crianças, como se aquele gesto fosse suficiente para colar os pedaços do meu coração.Outras condolências vieram em seguida. Palavras de conforto, olhares de piedade. Cada frase era um lembrete cruel de que Milena não estava mais ali comigo, que seu sorriso, seu toque, sua risada haviam sido apagados para sempre.Depois do velório, me despedi de todos e segui para casa sozinho, dirigindo o carro que ela tanto amava: meu Maverick GT 78, preto. Milena tinha uma paixão por carros antigos, algo que aprendera com o avô ainda na infância. Ela costumav
Cheguei à empresa pontualmente às oito da manhã, como de costume. Era algo automático, um hábito que vinha de anos de dedicação à SynerTech, a empresa que fundei ainda na faculdade com meus dois melhores amigos, Leandro e Miguel. Às vezes, penso que começamos com mais ousadia do que preparo, mas deu certo. Leandro, estudante de Educação Física na época, tinha os recursos iniciais graças ao apoio financeiro do pai e foi nosso primeiro acionista. Miguel, cursando Direito, cuidou da base legal. E eu? Bom, era o carro-chefe. Estava cursando Ciência da Computação e, com eles, transformei uma ideia em realidade.A ideia inicial era simples: desenvolver softwares para grandes corporações. Para nós, parecia apenas um projeto para ganhar dinheiro extra e bancar as festas e viagens universitárias. Nunca imaginamos que, já no segundo ano, o negócio decolaria tanto que precisaríamos contratar uma equipe. Hoje, a SynerTech é uma empresa robusta, com dezenas de funcionários e grandes clientes.Mas,
— Por que não me avisou que havia recebido alta do hospital? — perguntou Ester assim que abriu a porta. Seus braços me envolveram com força, como se quisesse me segurar antes que eu caísse. Deixei-me ficar naquele abraço, sentindo o calor e a segurança que só minha melhor amiga podia me oferecer. As lágrimas, que eu vinha segurando o dia inteiro, vieram como uma torrente. Chorei no ombro dela, soluçando, deixando escapar a dor que parecia presa na garganta. Ester e eu nos conhecemos na Étoile Ballet Company, onde dançávamos. Tínhamos 18 anos quando fizemos a audição juntas. Ela era de uma cidadezinha do interior, um daqueles lugares onde todo mundo conhece todo mundo. Apesar da riqueza dos pais, Ester vivia no meio de valores tradicionais. “Meus pais acham que as cidades grandes corrompem a alma”, dizia ela com um sorriso. — E talvez eles estejam certos — costumava completar, com seu jeito brincalhão. Eu, por outro lado, era o oposto de Ester. Cresci numa metrópole vibrante, cerca
O dia começou de forma previsível. Leandro e Miguel, em sua tentativa incansável de me distrair, decidiram me levar para almoçar em um bistrô recém-inaugurado na cidade. Não era o tipo de lugar que eu e Milena frequentaríamos. Ela amava lugares aconchegantes, com comida simples e boa, onde pudéssemos conversar sem pressa. Apesar do meu ceticismo em experimentar novos sabores, aceitei o convite. Não queria iniciar uma discussão com meus amigos.Sentamo-nos em uma mesa perto da janela. A luz do sol refletia nas taças de água, criando pequenos arco-íris sobre a toalha de linho branca. Fizemos nossos pedidos, e eu optei por algo simples: uma massa. Enquanto esperávamos, fiquei em silêncio, apenas ouvindo Leandro reclamar das exigências de ser personal trainer de influenciadores e Miguel desabafar sobre os desafios jurídicos de lidar com grandes corporações.— Lucas, se precisar de ajuda para organizar ou limpar os pertences da Milena, não precisa fazer isso sozinho. Estamos aqui, cara. —
Seis meses haviam se passado desde o pior momento da minha vida. Acordar todos os dias era um exercício de força, mas aos poucos comecei a encontrar pequenos motivos para seguir em frente.— Ficou lindo. É a nossa cara! O que você acha, Ester? — perguntei, dando um passo para trás para admirar o nosso trabalho no estúdio de dança.Ester, minha melhor amiga e parceira nessa empreitada, colocou as mãos na cintura e sorriu com aquele jeito contagiante que fazia qualquer ambiente parecer mais leve.— Hum, ficou incrível! Nós arrasamos, Paty.A ideia do estúdio nasceu de uma conversa entre lágrimas e abraços no sofá do apartamento que agora dividíamos. Depois de receber alta do hospital, recusei voltar para a casa dos meus pais, que viviam em outro país. Eu precisava de espaço, mas também precisava de companhia, e Ester foi a âncora que me manteve firme.— E se colocarmos a mesa da recepção ali à esquerda, perto da entrada? — sugeriu ela, apontando para um canto do espaço recém-pintado.As
Saímos da sorveteria quando as luzes da rua já estavam acesas, e a praça ao lado começava a ganhar vida. O céu estava tingido de tons de lilás e azul escuro, enquanto as pessoas ao redor davam início à sua rotina noturna. Crianças ainda com uniforme escolar corriam pela praça, adultos caminhavam ou corriam pelos trilhos de cascalho, e buzinas ecoavam no engarrafamento próximo.— O horário do caos. — Ester comentou, abrindo um sorriso divertido enquanto olhava ao redor.— Caótico, mas cheio de vida. — respondi, sentindo uma pontada de paz naquele momento simples.De repente, Ester parou bruscamente e apertou meu braço.— Olha só, amiga! Que lindo aquele cachorro Husky! — disse, já me puxando na direção do animal como uma criança que avista um brinquedo novo.
Estava na cozinha, preparando o jantar, quando Ester apareceu na sala, vestindo shorts jeans e sua camiseta do Rolling Stones, já desbotada pelo tempo, mas que ela adorava. Estava largada no sofá, com as pernas cruzadas e o olhar perdido em seus próprios pensamentos.— E aí, como foi conversar com o Miguel? — perguntei casualmente, enquanto retirava o salmão da geladeira para grelhar.Ela levantou os olhos na minha direção e esboçou um sorriso.— Não quero me precipitar, Paty, mas foi ótimo. Consegui conversar de verdade com ele. Ele é espirituoso, engraçado… — começou, com o tom animado que só usava quando algo realmente a impressionava.Enqua
— Acho que essa é a última caixa, Lucas. — disse Leandro, colocando-a ao lado das outras no canto da sala.Olhei para a pilha de caixas que agora ocupava aquele espaço. Demorei seis meses para criar coragem de retirar os pertences de Milena da nossa casa. Foi um processo lento e doloroso. Cada objeto que eu tocava parecia trazer de volta memórias que me esmagavam por dentro: as roupas que ela usava nos nossos jantares favoritos, os perfumes que enchiam o quarto com seu aroma, e as fotos… cada uma um lembrete do que nunca mais voltaria.Lágrimas teimosas queimavam nos olhos, mas as engoli antes que caíssem. Não era a hora de desabar, não agora, não na frente deles.Miguel, percebendo meu estado, colocou a mão no meu ombro, um gesto simples, mas reconfortante.— Você não precisa se desfazer de tudo de uma vez. Escolha algo para guardar, talvez uma foto dos dois, de um momento em que estavam felizes. Pode parecer pequeno, mas vai ajudar a manter as boas lembranças vivas. — disse ele com