Os Atributos da Jovem dupla
Os Atributos da Jovem dupla
Por: Franesio@toko1234
Prólogo

Depois de uma gandaia congruente, num período de estágio no hospital David Bernardino, Márcia e suas colegas saíram para relaxar.

"Viúvas Negras"— era esse o nome que se destacava na cabeceira da porta do espaço lúdico onde Márcia e suas amigas costumavam se apresentar. Não eram clientes, mas dançarinas, garotas que assumiam identidades fictícias para esconder suas vidas fora dali.

— Tenente Márcia, já reparaste como o ambiente mudou ultimamente? — comentou uma das amigas, cruzando os braços com desdém.

Márcia suspirou, observando a movimentação ao redor.

— Nem tanto. Continua a mesma coisa… homens casados, mais velhos, procurando algo passageiro. Nunca aparece alguém diferente, alguém que realmente queira ficar com uma de nós.

A outra soltou uma risada curta, quase cética. Ela era a mais prática do grupo, sempre reduzindo tudo à realidade nua e crua.

— Ah, Márcia… esperavas o quê? — disse, com um toque de ironia. — A maioria chega aqui cheio de dívidas, cansados da vida… No final, só querem esquecer os problemas por algumas horas.

— Nossa, Almirante Jurelma! Que discurso inspirador — retrucou Márcia, arqueando as sobrancelhas. — Esperas que eu bata palmas também?

A terceira amiga, mais sonhadora, que até então apenas ouvia, balançou a cabeça com um sorriso mordaz. Ela ainda acreditava, no fundo, que um dia poderia sair dali.

— Pois continuem esperando, minhas queridas — disse, brincando com a borda do copo em sua mão. — Mas não se iludam. Daqui ninguém sai com promessas de amor… só com marcas que nem sempre se apagam.

Márcia desviou o olhar, pensativa. Sabia que aquelas palavras carregavam mais do que cansaço ou cinismo—havia nelas uma verdade difícil de engolir.

Márcia havia chegado do interior de Benguela dois meses atrás para um programa de estágio profissional em vários hospitais de Luanda. Jovem de 19 anos, assustada, mas precisa e direta em seus objetivos. Sem casa própria e longe da família, a cidade implacável a pressionava de todos os lados. Foi quando, numa tarde qualquer, ouviu algo que mudaria sua vida.

No hospital Maria Pia, enquanto esperava na porta do consultório do médico-chefe, escutou vozes na sala ao lado. Ficou imóvel, segurando a respiração.

— Sabes, Margarida — disse uma voz feminina, satisfeita. — O meu bordel ganhou classe. Com o senhor Humberto lá, os ricaços do país passaram a frequentá-lo.

Márcia arqueou as sobrancelhas.

— Consegui novas modelos — continuou a mulher. — Algumas são daqui mesmo, deste hospital. Elas me trazem as pílulas e, em troca, ganham acesso ao espaço.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Sem perceber, ela já estava envolvida.

Dois meses depois, Márcia vivia uma rotina dupla. Passava as noites no bordel de Dona Madalena, vestindo a mesma lingerie vibrante, com o mesmo batom vermelho desenhando um sorriso que não lhe pertencia. Entre promessas vazias e risos embriagados, era sempre um novo nome a cada madrugada, um novo toque que não deixaria marca, mas que pesava sobre sua pele.

Até que, uma noite, o peso tornou-se insuportável.

O quarto estava imerso em uma penumbra avermelhada. O cheiro amargo de cigarro e vinho branco misturava-se ao perfume barato impregnado nos lençóis. Márcia ouvia sempre as mesmas palavras, promessas doces tingidas de machismo.

— Ouve, Márcia… tu és uma menina linda e talentosa. Não devias estar aqui.

Ela riu, sem humor.

— Nossa, senhor Humberto… és como um pai para mim. — Sua voz carregava uma ironia cruel. — Apesar De que o senhor também se deita comigo. Então, por favor, poupe os conselhos e vamos acabar logo com isso.

Ele se inclinou, o cheiro de álcool e suor enroscando-se em sua pele.

— Márcia… você é especial para mim. Eu paro de transar contigo, se quiser. Você quer sair para viver um romance?

Ela fechou os olhos por um instante. As palavras dele escorriam como um veneno doce, uma ilusão temporária antes do golpe inevitável.

— Acorda, menina. Eu te pago para me ajudar a atingir o prazer. Agora vira.

O ar tornou-se pesado. O gosto metálico do sangue espalhou-se por sua boca após um tapa seco. Sua garganta parecia aprisionar qualquer súplica antes mesmo de nascer.

— Cala a boca, menina. — O tom dele era frio, metódico. — Posso acabar com o seu estágio ou te colocar no auge. Agora vira… e grita daquele jeito que eu gosto.

Todo aquele cenário era bizarro para Márcia. No entanto, ela suportava. Pelo seu sonho.

A única fuga era a sala de Dona Bárbara. Médica, professora de educação sexual, psicóloga e conselheira no bordel. Uma mulher de idade avançada que, mesmo marcada pelas cicatrizes da vida, tornara-se uma mãe para as meninas.

— Senhora Bárbara… a senhora acha que existe um homem que levaria uma de nós a sério? — perguntou Márcia, certa noite.

Bárbara cruzou as mãos sobre o colo e sorriu.

— Por que essa pergunta, menina? Duvidas de quem és?

Márcia abaixou o olhar.

— Vivemos essa dualidade. Ora médicas, ora putas. Existe alguém que possa nos amar depois de tudo?

— Se ele realmente te quiser, vai entender. Se não quiser… deixa essa vida antes que ela te devore. Mas nunca esqueça, menina: tu és mais do que esse lugar.

Aquelas palavras ficaram na mente de Márcia. Ela passou a dedicar-se ainda mais ao estágio, lembrando-se do porquê de ter começado tudo aquilo.

Certa noite, no hospital, ao entrar no quarto de um paciente, sentiu um arrepio gelar sua espinha.

— Ora, ora… Que surpresa, Márcia.

Era Humberto. O mesmo sorriso cínico, o mesmo cheiro de cigarro e álcool. Ele se aproximou, segurando seus braços.

— Você não vai gritar. Você nunca grita.

Antes que pudesse reagir, a porta abriu-se bruscamente.

— Mas o que diabos está acontecendo aqui?

A voz firme de Dona Bárbara cortou o ar. Humberto se afastou com um sorriso presunçoso.

— Estávamos apenas conversando, não é, querida?

— Saia daqui agora, antes que eu chame a segurança! — Bárbara ordenou.

Humberto ajeitou o terno e saiu, como se nada tivesse acontecido.

Duas horas depois, Márcia caminhava pelas ruas de Luanda. O letreiro néon piscava em tons vermelhos e dourados: "Viúvas Negras". Homens embriagados, risos forçados, mulheres de olhares vazios. O mesmo jogo de sempre.

Ela parou diante da entrada, respirou fundo e sorriu de canto.

Dessa vez, não era uma fuga. Era um retorno.

Mas sob suas próprias regras.

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