Opressor exigiu muito de mim, afinal, a escrita tem sido minha válvula de escape e a salvação para os tormentos da minha alma. É escrevendo que consigo colocar para fora meus demônios pessoais e foi lutando com um desses demônios que a ideia nasceu. Travamos uma luta árdua e, por dois anos, vimos o câncer, literalmente, corroer a minha mãe de dentro para fora, levando de nós a figura saudável, linda e cheia de vida. Foi traumático de muitas formas e enterrar um ente querido sempre nos deixa à margem da loucura. Não sou adepta a entregar meus problemas aos profissionais da saúde, nada contra, mas comigo nunca deu certo, então corro atrás para conseguir resolver meus conflitos sozinha. Um desses conflitos chegou quando passei a ter pesadelos horríveis, carregados de dores, cobranças e perseguições. Eles são desesperadores!
Escrev
Ela estava linda.Os cabelos curtos e brancos como fiapos de algodão, o rosto descansado, em paz e pode parecer loucura o que vou dizer, mas existia um leve sorriso em seus lábios.Dormia.Para sempre.O lugar estava lotado. Sempre disse que ela parecia uma candidata para alguma vaga política, pois onde ia demorava uma eternidade porque parava para conversar com todo mundo. Nada mais justo que todos fossem conversar com ela uma última vez.Esse pensamento trouxe o nó de volta à minha garganta. O sentimento que estava reprimindo, fazendo um esforço sobrenatural para manter guardado em algum lugar, não iria desabar, não ali. Ainda não.O caixão foi fechado.As pessoas se posicionaram ao redor.Caminhavam lentamente levando o corpo sem vida da minha mãe.Seu último passeio.A cada passo meu coração acelerava um po
— A última vez.Prometi em alta voz pela milésima vez, não para uma amiga ou um parente, mas uma promessa feita à mulher que me encarava no reflexo do espelho. Estava visivelmente transtornada, batom levemente borrado no canto da boca, o corretivo sob os olhos já não escondia as noites em claro, ao contrário, evidenciavam ainda mais o efeito dos pesadelos intermináveis, e o lápis preto escorreu, deixando a imagem medonha.— Você é uma vergonha, Ariela! — repreendi a imagem patética que me encarava com o mesmo desgosto, se retorcendo com a pronúncia do meu nome.Nunca entendi a necessidade da minha mãe em escolher nomes estranhos, mas ela achava o significado do meu nome lindo – Ariela, “leoa de Deus” – e eu sempre achei tão estranho quanto o nome, mas não teria como mudar aquilo, o estrago foi feito há vi
A despedida foi maçante e dolorosa. Fui criada sob o peso de ser o que minha família precisasse que eu fosse, sempre me neguei em favor do querer e da vontade deles, pois foi assim que minha mãe me direcionou a ser por meu pai e meu irmão, sempre foram eles em primeiro lugar.Olhando pela pequena janela do avião, observando Congonhas, sabendo que estou deixando para trás não somente uma vida, mas também o peso da responsabilidade que ela jogou sobre meus ombros.Mesmo sabendo que tudo ficará bem e que eles são adultos e não precisam mais de mim, não da forma que ela sempre acreditou que precisavam, ainda assim a sensação de estar falhando com minha mãe me oprime. Quero gritar e fazer uma cena dentro do avião, pedir para descer e desistir de tudo, mas no momento em que estou para cometer essa loucura, já com a mão no cinto, sinto o toque em meu p
Sinto o sorriso se espalhar em meus lábios. Gosto da sensação que antecede o terror noturno, o dela principalmente. Há tempos me pego desfrutando do desespero que assola a mente dessa jovem. Ainda me lembro da primeira vez em que o seu medo me atingiu.O pânico que, mesmo a quilômetros de distância, conseguiu atravessar minhas barreiras e encher de sabor a minha noite, veio de um pesadelo após a perda de um parente. Aprecio a ligação materna, ela gera vínculos profundos, vínculos esses que têm o poder de gerar os melhores e piores resultados. Nesse caso em específico, está destruindo a minha presa.Seus pesadelos são fortes, reais. Acaba com ela a cada noite. Preciso sentir isso de perto, preciso saborear esse desespero, tocar esse medo com meus próprios dedos, quero beber dessa iguaria e me fartar na loucura que está a mente de Ariela.Ariel
Não consigo conter as lágrimas que escorrem sem controle, me sinto tão impotente diante as minhas falhas. A cada novo pesadelo, vejo o quanto eu poderia ter feito por ela e não fiz, quantas brechas ficaram abertas e o tamanho do meu egoísmo. Foram dois anos de sofrimento, mas não para todos nós. O sofrimento maior foi somente da minha mãe, ela que sentiu em seu corpo todos os males que o câncer pode proporcionar, foi mutilada de inúmeras formas, perdeu sua identidade como mulher, definhou sobre uma cama, sentia dores alucinantes e, ainda assim, me sentia no direito de acreditar que poderia reclamar de algo.Egoísta.E ainda agora me coloco no papel de coitada atormentada, acredito ser cruel a cobrança feita.Jamais.Devo isso a ela.Meu pulso ainda está latejando onde o meu salvador imaginário tocou novamente para me puxar das minhas dívidas part
Senti sua essência no exato momento em que seus pés entraram em meu domínio. Apressada, temerosa, intimidada. Esse medo que minha doce menina tem de viver inebria os meus sentidos, atrai-me como um viciado sem controle. Ajeito-me na cadeira em meu escritório, nunca fiquei tão perto dela assim. Ainda que no vigésimo andar, sua essência parece gritar, marcando sua presença com uma força que ela nem sequer sabe que possui.Controlo a respiração. Sinto-me um incapaz, pois quero me materializar diante dela e sugar seus medos, angústias e dor até a última gota, até não existir mais nada dentro dela, deixá-la como uma casca vazia, oca, sem sentido. Sinto os dedos esmagando a madeira da cadeira, preciso conter a minha ânsia. Levanto e meus pés passam a comandar o show, caminhando rente à parede de vidro, acalmando as gavinhas que habitam em mim.
O ar quente de Floripa encontra meu corpo no momento em que saio da geladeira que é aquele prédio, o choque térmico é inevitável e na mesma hora já sinto o nariz começar a fungar levemente.— Ótimo, vou ficar gripada! — resmungo para que o universo ouça que estou insatisfeita com ele e seus acontecimentos de merda.Preciso mesmo procurar uma profissional, não gosto muito dessa ideia, na verdade sempre a rejeitei. Acredito que se eu, que me conheço bem, não consigo dar um jeito em minhas neuras e loucuras, como alguém que só me escuta e fica me olhando com cara de paisagem me ajudará com isso?Mas diante do último acontecimento, não dá mais. Ter pesadelos é uma coisa, delirar em plena luz do dia em meu ambiente de trabalho – bem, onde será o meu ambiente de trabalho em breve – já é demais
O convite havia sido enviado. Não contenho o júbilo em saber que a ideia de levar os novos funcionários às casas noturnas sob a administração da Asupritor Eletrônica S/A foi a melhor de todas as decisões tomadas pelo conselho, ainda que com o intuito de agregarmos valores de conhecimento, união e a confraternização entre eles, mesmo assim, essa ideia caiu como uma luva.Saber que estaríamos dentro do mesmo ambiente e não precisaria usar de subterfúgios para vê-la, alegrava-me demais. Não que frequentar nossas casas fosse um hábito, mas por ela abriria uma exceção. Sentia-me aflito, como há tempos não me sentia. Algo em meu interior pulsava pedindo por Ariela, buscando ser saciado de alguma forma.Queria ver o pânico em seus olhos, sentir o desespero de sua alma, ouvir seu coração acelerado, batendo em ritmo