A despedida foi maçante e dolorosa. Fui criada sob o peso de ser o que minha família precisasse que eu fosse, sempre me neguei em favor do querer e da vontade deles, pois foi assim que minha mãe me direcionou a ser por meu pai e meu irmão, sempre foram eles em primeiro lugar.
Olhando pela pequena janela do avião, observando Congonhas, sabendo que estou deixando para trás não somente uma vida, mas também o peso da responsabilidade que ela jogou sobre meus ombros.
Mesmo sabendo que tudo ficará bem e que eles são adultos e não precisam mais de mim, não da forma que ela sempre acreditou que precisavam, ainda assim a sensação de estar falhando com minha mãe me oprime. Quero gritar e fazer uma cena dentro do avião, pedir para descer e desistir de tudo, mas no momento em que estou para cometer essa loucura, já com a mão no cinto, sinto o toque em meu pulso direito, não firme como é no sonho, mas suave e tranquilizador. E dessa vez estou acordada.
Olho para os lados à procura de respostas, esperando que mais alguém esteja tendo a mesma alucinação que eu, mas todos estão mergulhados em seu próprio mundo. Levo os dedos trêmulos aos pulsos, tocando-o delicadamente, com medo de que pudesse sentir dedos fantasmagóricos em mim, mas nada acontece, somente uma paz que me invade e quando me dou conta, já estamos sobrevoando São Paulo.
Não tem mais volta.
Meu apartamento é maravilhoso, daqueles que não acreditamos que possa existir na vida real, simples, confortável, aconchegante, que te abraça e envolve falando ao seu ouvido que você enfim está em casa. Dois quartos, sala e cozinha, todo mobiliado e com uma decoração fofa. Não há como reclamar, a proprietária tem bom gosto. Localizado no centro da ilha de Florianópolis, Avenida Mauro Ramos, perto da empresa, shopping, centro da cidade, lojas, mercados, farmácia, enfim, tudo o que preciso para simplesmente andar e encontrar. Após colocar todas as malas para dentro da minha nova casa e arrastá-las para aquele que será o meu quarto, sento-me no sofá e me sinto estranhamente perdida.
Decidi me mudar uma semana antes da data prevista para começar a trabalhar, pois precisava me encontrar dentro dessa nova vida. Agradeci aos céus quando Dani decidiu aceitar minhas súplicas e vir comigo para essa primeira semana. Ela aproveitou que estava com as férias vencidas e juntou o útil ao agradável: me ajudaria nesse recomeço e tiraria férias. Mas só chegaria no outro dia, ainda precisava resolver algumas coisas antes de viajar e eu estava ansiosa demais para ficar esperando. Ainda era cedo para pensar em dormir, estava agitada demais para ficar sentada olhando para a televisão e, ainda que amasse ler, não queria me perder em nenhum livro naquele momento. Peguei a bolsa e saí para a minha primeira noite de adulta solitária. Fui em direção ao shopping, que ficava a três quadras do meu apartamento, pois eu estava faminta.
Resolvi ir caminhando à beira mar e logo me deparei com uma das paisagens mais belas. Pela primeira vez desde que saí de São Paulo, fiquei feliz pela decisão tomada.
Que vista!
A lua reinava no céu estrelado, a brisa forte golpeava meu rosto, bagunçando meus longos fios castanhos, deixando um ninho de confusão em minha cabeça, mas não teria como me preocupar com a aparência naquele momento. As luzes da avenida refletiam sobre a água do mar que, mesmo imprópria para banho, embelezava extraordinariamente de ponta a ponta a avenida.
Era mesmo pura magia.
Algo atraiu a minha atenção, um prédio alto à minha esquerda, que destoava dos outros prédios residenciais à beira mar. Era feito totalmente de vidro, refletindo as luzes dos carros que passavam e dos postes ao seu redor. Desejei de coração que ali não fosse a Asupritor Eletrônica S/A. Sabia que o edifício da empresa era à beira mar, mas não poderia ser aquele, imponente demais. Para um recomeço, algo mais simples e menos intimidador, seria melhor.
O shopping, assim como tudo o que vi até agora, é lindo. Com algumas lojas de departamento conhecidas, mas outras que nunca vi. Achei a praça de alimentação, não conseguindo deixar de me impressionar com a quantidade de seres humanos lindos por metro quadrado. Me senti em um comercial da Barbie Moda Praia.
Mulheres lindas e homens tão bonitos quanto.
Andei ao redor, procurando por algo que realmente estava com vontade de comer, só para descobrir que, na verdade, não queria nada. A possibilidade de aquele ser o lugar onde iria trabalhar acabou com meu apetite.
Acabei na salada com frango grelhado.
Fiquei no shopping por duas horas, comprei algumas coisas para colocar a minha cara em meu novo espaço, passei no mercado e, por mais estranho que isso possa parecer, estava me sentindo em casa, como se aquele lugar estivesse me abraçando, me recebendo, dizendo que ali era o meu lugar.
Sorri com o pensamento.
Sinto o sorriso se espalhar em meus lábios. Gosto da sensação que antecede o terror noturno, o dela principalmente. Há tempos me pego desfrutando do desespero que assola a mente dessa jovem. Ainda me lembro da primeira vez em que o seu medo me atingiu.O pânico que, mesmo a quilômetros de distância, conseguiu atravessar minhas barreiras e encher de sabor a minha noite, veio de um pesadelo após a perda de um parente. Aprecio a ligação materna, ela gera vínculos profundos, vínculos esses que têm o poder de gerar os melhores e piores resultados. Nesse caso em específico, está destruindo a minha presa.Seus pesadelos são fortes, reais. Acaba com ela a cada noite. Preciso sentir isso de perto, preciso saborear esse desespero, tocar esse medo com meus próprios dedos, quero beber dessa iguaria e me fartar na loucura que está a mente de Ariela.Ariel
Não consigo conter as lágrimas que escorrem sem controle, me sinto tão impotente diante as minhas falhas. A cada novo pesadelo, vejo o quanto eu poderia ter feito por ela e não fiz, quantas brechas ficaram abertas e o tamanho do meu egoísmo. Foram dois anos de sofrimento, mas não para todos nós. O sofrimento maior foi somente da minha mãe, ela que sentiu em seu corpo todos os males que o câncer pode proporcionar, foi mutilada de inúmeras formas, perdeu sua identidade como mulher, definhou sobre uma cama, sentia dores alucinantes e, ainda assim, me sentia no direito de acreditar que poderia reclamar de algo.Egoísta.E ainda agora me coloco no papel de coitada atormentada, acredito ser cruel a cobrança feita.Jamais.Devo isso a ela.Meu pulso ainda está latejando onde o meu salvador imaginário tocou novamente para me puxar das minhas dívidas part
Senti sua essência no exato momento em que seus pés entraram em meu domínio. Apressada, temerosa, intimidada. Esse medo que minha doce menina tem de viver inebria os meus sentidos, atrai-me como um viciado sem controle. Ajeito-me na cadeira em meu escritório, nunca fiquei tão perto dela assim. Ainda que no vigésimo andar, sua essência parece gritar, marcando sua presença com uma força que ela nem sequer sabe que possui.Controlo a respiração. Sinto-me um incapaz, pois quero me materializar diante dela e sugar seus medos, angústias e dor até a última gota, até não existir mais nada dentro dela, deixá-la como uma casca vazia, oca, sem sentido. Sinto os dedos esmagando a madeira da cadeira, preciso conter a minha ânsia. Levanto e meus pés passam a comandar o show, caminhando rente à parede de vidro, acalmando as gavinhas que habitam em mim.
O ar quente de Floripa encontra meu corpo no momento em que saio da geladeira que é aquele prédio, o choque térmico é inevitável e na mesma hora já sinto o nariz começar a fungar levemente.— Ótimo, vou ficar gripada! — resmungo para que o universo ouça que estou insatisfeita com ele e seus acontecimentos de merda.Preciso mesmo procurar uma profissional, não gosto muito dessa ideia, na verdade sempre a rejeitei. Acredito que se eu, que me conheço bem, não consigo dar um jeito em minhas neuras e loucuras, como alguém que só me escuta e fica me olhando com cara de paisagem me ajudará com isso?Mas diante do último acontecimento, não dá mais. Ter pesadelos é uma coisa, delirar em plena luz do dia em meu ambiente de trabalho – bem, onde será o meu ambiente de trabalho em breve – já é demais
O convite havia sido enviado. Não contenho o júbilo em saber que a ideia de levar os novos funcionários às casas noturnas sob a administração da Asupritor Eletrônica S/A foi a melhor de todas as decisões tomadas pelo conselho, ainda que com o intuito de agregarmos valores de conhecimento, união e a confraternização entre eles, mesmo assim, essa ideia caiu como uma luva.Saber que estaríamos dentro do mesmo ambiente e não precisaria usar de subterfúgios para vê-la, alegrava-me demais. Não que frequentar nossas casas fosse um hábito, mas por ela abriria uma exceção. Sentia-me aflito, como há tempos não me sentia. Algo em meu interior pulsava pedindo por Ariela, buscando ser saciado de alguma forma.Queria ver o pânico em seus olhos, sentir o desespero de sua alma, ouvir seu coração acelerado, batendo em ritmo
Claro que estou confusa, aceitei ao convite do segurança para a área vip de ninguém mais, ninguém menos que o dono da empresa que fui contratada. Com “convite” estou sendo delicada, ele praticamente me intimou para subir ao grande aquário que pairava sobre as cabeças dos simples mortais que se amontavam na casa noturna com o nome bem sugestivo. Dani praticamente quicou indo até o andar de cima, estava de olho em um dos três caras que a comiam com os olhos, mas entre ficar no meio da multidão ou ser vista lá em cima, não pensou duas vezes.Assim que entramos fiquei paralisada por alguns segundos, pois três coisas “gritaram” imediatamente aos meus ouvidos:O aquário era todo de vidro, mas não conseguíamos ver o chão dele lá de baixo, só as paredes, mas o mesmo não acontecia aqui de cima, pois víam
Meu lugar de equilíbrio.Não poderia ter voltado para a casa que mantinha no mundo humano, não teria como simplesmente ficar vagando entre os pesadelos de outras pessoas. Não encontrava em mim a vontade suficiente para nenhum desses atos.Após o toque da ponta de sua língua em meu polegar, por somente uma mísera fração de segundos, minha menina irradiou vida para o meu corpo morto há séculos. Fiquei paralisado, vendo-a correr para longe de mim, sem ter como ou porquê ir atrás dela. Mesmo quando ela já estava na saída da Obsessão e seus olhos encontraram os meus, conseguia sentir a mesma intensidade, como se ainda estivesse diante de mim.Precisava me cercar do meu mundo, do que é conhecido, do que realmente sou feito e nada mais. Assim que meu corpo surgiu no submundo, senti o poder dela se esvaindo e o sorriso se espalhar em meus lábios.
Os dias passaram rápidos demais. Entre pesadelos, noites terríveis, sonhos sem sentido algum e passeios de exploração pela ilha, a semana foi embora e o tempo escorreu entre nossos dedos.Dani era a minha salvação necessária, estar ao lado dela me fazia bem. Sua presença e a forma positiva que enxergava a vida sempre me incentivava a seguir, ver o outro lado da mesma situação. Nem mesmo quando pegamos a tal caixa pessoal na recepção do prédio da Asupritor Eletrônica S/A e vimos tudo o que estava lá dentro, ela surtou.— Mas... olha, pense bem. — Olhávamos para dentro da caixa aberta entre nossas pernas no sofá. — Não é algo demais se pensarmos que é uma empresa de eletrônicos mega moderna, então deve ser normal os funcionários terem essas coisasEla deu de ombros, tirando de dentro da cai