Sinto o sorriso se espalhar em meus lábios. Gosto da sensação que antecede o terror noturno, o dela principalmente. Há tempos me pego desfrutando do desespero que assola a mente dessa jovem. Ainda me lembro da primeira vez em que o seu medo me atingiu.
O pânico que, mesmo a quilômetros de distância, conseguiu atravessar minhas barreiras e encher de sabor a minha noite, veio de um pesadelo após a perda de um parente. Aprecio a ligação materna, ela gera vínculos profundos, vínculos esses que têm o poder de gerar os melhores e piores resultados. Nesse caso em específico, está destruindo a minha presa.
Seus pesadelos são fortes, reais. Acaba com ela a cada noite. Preciso sentir isso de perto, preciso saborear esse desespero, tocar esse medo com meus próprios dedos, quero beber dessa iguaria e me fartar na loucura que está a mente de Ariela.
Ariela.
A leoa de Deus.
O riso cresce em meus lábios, não poderia ser mais irônico.
Estou tão preso à necessidade de me afundar nessa menina que senti o exato momento em que seus pés tocaram na minha ilha, como se tudo o que aqui existe cantasse em uníssono a sua chegada. Ela nem ao menos se deu conta que meus olhos a seguiam, vigiando seus passos e seu deleite com o mundo que estou lhe presenteando antes do abate.
Há séculos passeio entre mundos, me alimentando do medo, desespero, perda e fracasso dos seres humanos, me estabelecendo entre os ricos e poderosos dos mortais, reinando em glória e poder entre os sobrenaturais. Sou o pior da minha espécie e, sem dúvida alguma, o pior que poderia habitar entre os dela.
Seu ritual começa e o meu automaticamente se liga ao dela.
Me sento na larga poltrona em minha sala. A ampla cobertura que ocupa os dois últimos andares do Asupritor Eletrônica S/A me traz a vista da beira mar e a ponte Hercílio Luz, ponte essa que está em reforma infinita. Jamais terminam com essa obra.
Sinto os olhos revirarem nas órbitas, por que me importar? Como se realmente essa fosse ser a minha visão dessa noite. Há meses não vejo a paisagem das amplas paredes de vidro da minha cobertura, há meses tudo o que minha noite me proporciona são os deliciosos e atormentados momentos dela.
Ariela troca os lençóis da nova cama, afofa os travesseiros, jogando-os no lugar novamente. Está pecaminosa somente com uma blusinha de alcinhas finas e uma calcinha tão minúscula que nem precisaria estar vestindo.
Sinto minha língua molhar meus lábios.
Deliciosa.
E, como de costume, não demora muito para que a escuridão lhe envolva, a carregue com cuidado para um sono profundo e meu sorriso se escancare novamente.
As batidas de seu coração se alteram, ela está com medo. Mesmo inconsciente consegue prever o que está por vir. Está trocando o corpo sem vida da mãe no necrotério do hospital, os olhos lavados em lágrimas. É minha vez de entrar no jogo.
Os olhos da mãe – meus olhos – se abrem e Ariela dá dois passos para trás, em angústia. Quero rir, mas preciso manter a seriedade da brincadeira.
“Você sabe que eu sinto frio, Ariela. Como pode fazer isso comigo?”
Pergunto usando a voz fantasmagórica da mãe e a menina tenta se justificar em total desespero. Não permito, continuo acusando, agredindo, usando os buracos emocionais que essa mulher causou nessa humana quebrada. A cada lágrima que ela derruba, cada explicação e súplica de desculpa, me sinto transbordar em um regozijar indescritível.
“Você me deixou no frio Ariela, você me deixou!”
Grito enquanto uso a imagem que tanto a atormenta e quero gargalhar em êxtase total, mas sinto que a perderei a qualquer momento e não posso deixar isso acontecer, ainda não. Quero mais desses momentos, quero muito mais. Jamais senti um terror noturno tão intenso quanto essa menina me proporciona.
Seguro em seu pulso direito e puxo-a para a noite escura, acordando-a, sendo novamente o seu salvador.
Não sinto meu corpo, somente a presença do seu medo em mim. Somente uma fração de segundos separa a minha realidade da realidade humana. Já não estou mais sentado em minha cobertura, o impacto do desespero dela é tão grande que consegue me arremessar sem nem ao menos precisar de qualquer gota de esforço vindo de mim.
A obscuridade que habita em mim se deleita reconhecendo seu verdadeiro reinado, meu corpo é recebido pelo trono que parece me abraçar, grato por minha chegada. Estou cercado por densas trevas, o gélido ar se infiltra em minhas narinas, correndo livre em meu corpo. O sorriso ainda está em meus lábios, pois a sensação de que minha menina desperta em mim é única.
— Mestre? — Ouço um ruído qualquer querendo me tirar da plenitude daquele momento. Se necessário fosse, aniquilaria com todos para que as angústias de Ariela fossem somente minha. — Mestre?
Meus olhos se abrem contra a minha vontade, visualizando a escuridão do meu reino, a aflição na face das monstruosidades distorcidas que me servem em extrema adoração. Diferente da terra dos humanos, meu reino é escuro, frio e sem vida. Aqui somente existe lamúria, dor e sofrimento. Foco o dono do desprezível ruído que teima em me incomodar, sabendo que sua existência tem os segundos contados.
— Como se atreve? — Ouço o tom baixo e mortal da minha voz e vejo a espécime à minha frente se escolher e tremer por completo.
— Me perdoe, mestre, mas acreditei que o senhor precisava saber disso. O desespero da menina é tanto que tem escorrido pelas fendas entre mundos e alguns vem se alimentando dela.
Sabia que o impacto do terror que ela sofria era algo jamais vivido, mas subestimei sua dor. Senti o desprezo se manifestando, tomando forma dentro de mim. Com ele, senti também o ódio em saber que seres inferiores estavam se banqueteando com o prazer que cabia somente ao meu deleite. Vermes malditos.
Noto que o infeliz ainda está ajoelhado em minha frente, esperando que sua atitude seja recompensada de alguma forma. Ergo a mão e, sem me dar ao trabalho de tocar sua pela imunda e asquerosa, fecho os dedos vagarosamente. Vejo-o arregalar os olhos enquanto o ar lhe falta, o sorriso se espalha em meus lábios e o gosto da morte me banha. Fecho meus dedos com força, virando o punho e quebrando o pescoço da criatura à minha frente. Em um piscar de olhos, seu decrépito corpo se desfaz diante de mim.
Não posso deixar que se alimentem dela, não de Ariela. Suas angústias e desespero são preciosos demais para serem divididos. Ela é minha e tudo o que vier dela, em sua totalidade, me pertence.
Não consigo conter as lágrimas que escorrem sem controle, me sinto tão impotente diante as minhas falhas. A cada novo pesadelo, vejo o quanto eu poderia ter feito por ela e não fiz, quantas brechas ficaram abertas e o tamanho do meu egoísmo. Foram dois anos de sofrimento, mas não para todos nós. O sofrimento maior foi somente da minha mãe, ela que sentiu em seu corpo todos os males que o câncer pode proporcionar, foi mutilada de inúmeras formas, perdeu sua identidade como mulher, definhou sobre uma cama, sentia dores alucinantes e, ainda assim, me sentia no direito de acreditar que poderia reclamar de algo.Egoísta.E ainda agora me coloco no papel de coitada atormentada, acredito ser cruel a cobrança feita.Jamais.Devo isso a ela.Meu pulso ainda está latejando onde o meu salvador imaginário tocou novamente para me puxar das minhas dívidas part
Senti sua essência no exato momento em que seus pés entraram em meu domínio. Apressada, temerosa, intimidada. Esse medo que minha doce menina tem de viver inebria os meus sentidos, atrai-me como um viciado sem controle. Ajeito-me na cadeira em meu escritório, nunca fiquei tão perto dela assim. Ainda que no vigésimo andar, sua essência parece gritar, marcando sua presença com uma força que ela nem sequer sabe que possui.Controlo a respiração. Sinto-me um incapaz, pois quero me materializar diante dela e sugar seus medos, angústias e dor até a última gota, até não existir mais nada dentro dela, deixá-la como uma casca vazia, oca, sem sentido. Sinto os dedos esmagando a madeira da cadeira, preciso conter a minha ânsia. Levanto e meus pés passam a comandar o show, caminhando rente à parede de vidro, acalmando as gavinhas que habitam em mim.
O ar quente de Floripa encontra meu corpo no momento em que saio da geladeira que é aquele prédio, o choque térmico é inevitável e na mesma hora já sinto o nariz começar a fungar levemente.— Ótimo, vou ficar gripada! — resmungo para que o universo ouça que estou insatisfeita com ele e seus acontecimentos de merda.Preciso mesmo procurar uma profissional, não gosto muito dessa ideia, na verdade sempre a rejeitei. Acredito que se eu, que me conheço bem, não consigo dar um jeito em minhas neuras e loucuras, como alguém que só me escuta e fica me olhando com cara de paisagem me ajudará com isso?Mas diante do último acontecimento, não dá mais. Ter pesadelos é uma coisa, delirar em plena luz do dia em meu ambiente de trabalho – bem, onde será o meu ambiente de trabalho em breve – já é demais
O convite havia sido enviado. Não contenho o júbilo em saber que a ideia de levar os novos funcionários às casas noturnas sob a administração da Asupritor Eletrônica S/A foi a melhor de todas as decisões tomadas pelo conselho, ainda que com o intuito de agregarmos valores de conhecimento, união e a confraternização entre eles, mesmo assim, essa ideia caiu como uma luva.Saber que estaríamos dentro do mesmo ambiente e não precisaria usar de subterfúgios para vê-la, alegrava-me demais. Não que frequentar nossas casas fosse um hábito, mas por ela abriria uma exceção. Sentia-me aflito, como há tempos não me sentia. Algo em meu interior pulsava pedindo por Ariela, buscando ser saciado de alguma forma.Queria ver o pânico em seus olhos, sentir o desespero de sua alma, ouvir seu coração acelerado, batendo em ritmo
Claro que estou confusa, aceitei ao convite do segurança para a área vip de ninguém mais, ninguém menos que o dono da empresa que fui contratada. Com “convite” estou sendo delicada, ele praticamente me intimou para subir ao grande aquário que pairava sobre as cabeças dos simples mortais que se amontavam na casa noturna com o nome bem sugestivo. Dani praticamente quicou indo até o andar de cima, estava de olho em um dos três caras que a comiam com os olhos, mas entre ficar no meio da multidão ou ser vista lá em cima, não pensou duas vezes.Assim que entramos fiquei paralisada por alguns segundos, pois três coisas “gritaram” imediatamente aos meus ouvidos:O aquário era todo de vidro, mas não conseguíamos ver o chão dele lá de baixo, só as paredes, mas o mesmo não acontecia aqui de cima, pois víam
Meu lugar de equilíbrio.Não poderia ter voltado para a casa que mantinha no mundo humano, não teria como simplesmente ficar vagando entre os pesadelos de outras pessoas. Não encontrava em mim a vontade suficiente para nenhum desses atos.Após o toque da ponta de sua língua em meu polegar, por somente uma mísera fração de segundos, minha menina irradiou vida para o meu corpo morto há séculos. Fiquei paralisado, vendo-a correr para longe de mim, sem ter como ou porquê ir atrás dela. Mesmo quando ela já estava na saída da Obsessão e seus olhos encontraram os meus, conseguia sentir a mesma intensidade, como se ainda estivesse diante de mim.Precisava me cercar do meu mundo, do que é conhecido, do que realmente sou feito e nada mais. Assim que meu corpo surgiu no submundo, senti o poder dela se esvaindo e o sorriso se espalhar em meus lábios.
Os dias passaram rápidos demais. Entre pesadelos, noites terríveis, sonhos sem sentido algum e passeios de exploração pela ilha, a semana foi embora e o tempo escorreu entre nossos dedos.Dani era a minha salvação necessária, estar ao lado dela me fazia bem. Sua presença e a forma positiva que enxergava a vida sempre me incentivava a seguir, ver o outro lado da mesma situação. Nem mesmo quando pegamos a tal caixa pessoal na recepção do prédio da Asupritor Eletrônica S/A e vimos tudo o que estava lá dentro, ela surtou.— Mas... olha, pense bem. — Olhávamos para dentro da caixa aberta entre nossas pernas no sofá. — Não é algo demais se pensarmos que é uma empresa de eletrônicos mega moderna, então deve ser normal os funcionários terem essas coisasEla deu de ombros, tirando de dentro da cai
Não consegui dormir. Sei que ele me desejou bons sonhos, mas naquela noite, infelizmente, não atendi aquele pedido. Meus pensamentos trabalhavam com uma frequência absurda, trazendo imagens, lembranças de momentos, ligando pontos, criando vínculos. Em um mundo cheio de mulheres, como ele conseguiu se envolver com a melhor amiga dela?Ela estava lá, acompanhou a dor da minha mãe, viu seu corpo definhando sobre a cama, sendo comido de dentro para fora. Vivenciou o que as sessões agressivas de quimioterapia lhe causavam, o quanto emagreceu e ouviu as confissões da minha mãe, do quanto não se sentia mais mulher para o meu pai.Não conseguia entender.Passei a lembrar de todas as vezes em que nos encontramos na casa dos meus pais e ela estava lá, rindo, conversando, brincando com ele como se fossem dois irmãos ou amigos antigos e quando, após a morte da minha m&ati