CAPÍTULO 1
Em um hotel de uma pequena cidade, como Guarapuava, Valéria respirava aliviada, havia conseguido encontrar um lugar seguro, depois de tantas cidades em que tentou se instalar. Não era a primeira vez que estava na mesma situação, desde que fugiu de Israel, país onde cresceu e viveu até o dia em que um acidente levou seus pais e também a sua visão. Sua mão enfaixada recentemente, trazia à sua memória, o que aconteceu da última vez que tentou fugir do seu irmão, mas ele a encontrou, ainda doía cada agressão. Segurando a chave do quarto, ela respirou fundo, tremendo, ajeitando sua bolsa pequena, sua bengala e seus óculos quebrados que acabara de guardar, resultado da fuga dessa manhã, ao ouvir a voz do seu agressor, conseguir desvencilhar-se e precisar abandonar seu emprego mais uma vez. Valéria sabia que não seria fácil, ainda mais quando se lembrava que precisou deixar dois irmãos pequenos aos cuidados de sua irmã, seu coração doía, porém a esperança de buscá-los um dia, fazia com que não perdesse a fé, precisava seguir em frente, também por eles. Ela precisou se concentrar, contar literalmente todos os passos que dava, tentando memorizar para não esquecer, usando sua bengala naquela completa escuridão onde estava agora, porém num local tão novo, parecia difícil. Sentiu um vento frio percorrer sua espinha e seus pés doerem de cansaço, precisava descansar. Deitou em sua cama, mas antes que o sono chegasse, Valéria se assustou ao perceber que havia esquecido de fechar a porta, ou alguém havia arrombado a fechadura. [Crrrr!] — Quem está aí? — praticamente saltou da cama, pegando sua bengala, quase sem respirar, se colocou em posição de ataque, mas ninguém respondeu nada. Trêmula, ela se concentrou no barulho. Sem visão, qualquer ruído poderia ajudá-la a identificar muitas coisas. Quando ela percebeu o movimento corporal tão próximo dela, não evitou em bater com força, mesmo com o pulso machucado e enfaixado, acertou a cabeça de Theodoro que chegava em seu quarto fixo daquele hotel. — QUE ISSO? FOMOS ATINGIDOS! — tenente Theodoro gritou ao se jogar no chão. Ele apenas havia bebido um pouco para aplacar a dor do noivado da mulher que ele sonhou em viver o restante da sua vida, e estava prestes a casar com outro. Mas desde que havia sido encontrado em Israel, quase morto pela guerra há dois anos, sofre com esses transtornos psicóticos, e um simples barulho pode desencadear muitas coisas, pois lembram tiros, bombas e granadas. Na volta para seu quarto, um barulho alto de um estouro lá fora, o deixou em crise, e com a pancada da moça, ele perdeu o controle, entrando em outro quarto — AHHH! — Com o susto, a bengala de Valéria caiu no chão, quando ouviu aquele grito novamente... — SOLDADO ATINGIDO! SOLDADO ATINGIDO! SOCORRO! — O grito que ela conhecia muito bem; de desespero, dor e medo, que tantas vezes ajudara a acalmar em Israel. — TIROS! GRANADA! Ela se abaixou nervosa, apalpando o chão até encontrar a bengala novamente, então se levantou inquieta, convencida de que estava ficando louca. Preferiu contar três passos e sair do quarto, agora duvidava que seria o seu, e aquele não deveria ser o seu soldado, mas ouviu novamente: — AHHHHH! AHHHHH! BOMBA, BOMBA! PRECISAMOS CORRER! — por Deus, era ele! Aquela voz era dele, o homem a quem ela salvara em Israel, mas como? Seria um milagre encontrá-lo? — ME AJUDEM! — Os gritos se tornaram mais audíveis, então ele parecia chorar, seus movimentos no chão eram perceptíveis. Sua voz e seu cheiro eram inconfundíveis. — Eu estou aqui, se acalme! É você, não é? Como viemos parar no mesmo país? — aproximou-se dele, o acalmou, e o ajudou a deitar na cama. Colocou a bengala no chão e corajosamente pôs as mãos sobre ele. Emocionou-se ao encontrar sua mão, segurou-a com firmeza, encostou seu corpo ao dele e sentiu-se em casa. Quando encontrou aquele homem quase morto pela guerra em Israel, ela também estava morta por dentro, sem expectativas, e ajudá-lo a sobreviver foi sua cura diária. — Que bom estar com você de novo! — aconchegou-se, sentindo uma emoção prestes a explodir no peito, como pequenas bombas de alegria expandindo dentro dela. Por um momento, perguntou-se se seu momento havia chegado... Deus havia se lembrado dela? Pois agora sabia que não era um sonho; era real, ele estava ali. Como tantas outras vezes, ele parecia febril. Quando ouviu sua voz, parou de gritar e a puxou para si. Puxou-a tanto que ela colocou o ouvido sobre seu coração e ali permaneceu por um tempo, ouvindo suas batidas enquanto o acalmava: — Shiii, estou aqui com você! Sinta minhas mãos, estão quentes... — sentiu um vento fresco vindo da porta, afastou-se com dificuldade e fechou-a. Tirou o hijab que cobria a cabeça, transbordando de alegria, deitou-se sobre ele novamente. — É tão bom estar sobre você! Antes você estava tão quebrado, agora está tão forte... — sussurrou as últimas palavras enquanto tocava seus braços e notava sua nova força, passaram dois anos desde que estivera com ele. Curiosa, passou as mãos pelos cabelos, agora um pouco mais longos; antes estavam raspados. Tocou seu rosto cuidadosamente e percebeu que ele estava acordado, provavelmente olhando para ela. Parecia ter saído daquele transe, do pesadelo terrível em que estava. Segurou a mão que o tocava e por um momento ela hesitou; talvez ele não se lembrasse dela. Mas não... ele beijou seus dedos e a puxou completamente para a cama, ficando sobre ela. — Está melhor? — ela perguntou. — Estou ótimo... nossa, você é linda! Como veio parar aqui? — sua mão tocou o rosto dela e ela inclinou a cabeça para trás, relaxando na cama. — Eu não sei... — então ele a beijou. Ela só havia sido beijada uma vez, um rapaz que fez uma aposta que beijaria a moça boba e cega da escola, e isso com quase quinze anos, então nem contava. Seu corpo amoleceu inteiro, ele a beijava e cada célula do seu corpo implorava para que não parasse, era simplesmente maravilhoso, havia um leve gosto de bebida, ele parecia ter bebido um copo de vinho ou algo do tipo. Naquele momento ela se entregou verdadeiramente àquele homem, esquecendo seus medos, traumas e problemas... porém uma frase balbuceada quando ele estava prestes a pegar no sono, a quebrou completamente: — Quando sair feche a porta, farei o pagamento depois! — em choque ela colocou a mão no peito, uma lágrima escorreu dos seus olhos, e num salto levantou daquela cama. “Ele não se lembrou de mim!“ Uma repulsa e uma dor muito grande a atingiu. Não pensou em mais nada, simplesmente se abaixou procurando a bengala branca. — Acontece que estou no meu quarto. Vá embora você! — em fúria, Valéria atacou aquela bengala naquele homem com força. — AI! QUE ISSO, SUA LOUCA! O QUE PENSA QUE ESTÁ... — ele falou alto, mas Valéria não queria ouvir mais nada, ergueu a bengala na altura da cabeça e deu mais vezes, até que Theodoro levantou meio atordoado. — SAIA DO MEU QUARTO! OU VOU CHAMAR A POLÍCIA! — ela gritou com raiva, e sem entender ele vestiu apenas uma cueca e saiu pelo corredor, percebendo que realmente não era seu quarto.CAPÍTULO 02 Theodoro Almeida Quase caí da cama com o susto que levei, aquela louca me expulsou sem motivo algum, provavelmente ficarei dolorido com as pancadas dela, e o pior foi quando vi com meus próprios olhos, que aquele quarto não era o meu. As coisas aconteceram muito rápido, estranhei não me lembrar de ter ligado para chamar uma acompanhante, mas ser tratado assim não dava... olhei pra mim mesmo e me assustei: “Merda! Me fez sair de cueca em pleno corredor!“ Entrei no meu quarto e fui logo me vestindo, sem conseguir raciocinar direito, pegando as primeiras peças que via. . Passei a mão na cabeça, comecei a andar de um lado para o outro, e lembranças da noite que tive vieram de repente. Aquela prostituta me acordou em meio ao surto psicótico e conseguiu me controlar, como ela havia feito aquilo? Ninguém além da mulher que amo conseguiu fazer isso, mas como ela fez? Fiquei olhando pela janela, deveria ter uma explicação, claro que deveria... Abri a porta apres
CAPÍTULO 03 Valéria Muniz “Não posso mais ficar nesse quarto, não é mais seguro!“ — pensei ao me apressar em me vestir e pegar minhas coisas. Não encontrei meu hijab, cobri a cabeça com um sobre-lençol. Me esbarrando nas paredes, tentando calcular a distância entre aquele quarto e a recepção eu saí chorando, sem conseguir evitar a decepção que me atormentava, até que alguém bateu forte, de frente comigo, quase caí. — É IDIOTA OU O QUÊ? QUASE QUEBROU O MEU SALTO, PUTA DESAJEITADA! EU PELO MENOS, NÃO ANDO DE CABELOS BAGUNÇADOS PELOS QUARTOS, COBERTO COM LENÇOL SUJO!— era uma voz feminina, com um perfume doce fortíssimo, mas eu estava tão desesperada que continuei andando, encontrei o corredor e demorei para conseguir chegar à recepção e conseguir um novo quarto. “Lençol sujo?“ — de repente estranhei, pensando nisso, mas o enrolei de baixo do braço. Quando cheguei no quarto, tranquei com chave, grudei as costas na porta e nem respirei direito, fazendo aquela oração importante
CAPÍTULO 04 Theodoro Almeida O percurso foi rápido, porém a minha cabeça dava voltas, pensando naquela mulher. Eu deveria ter ido antes atrás dela, mas não fui, e acabei atordoado com os seus modos. . Assim que cheguei no quartel, alguns sargentos e soldados bateram continência, mas o meu interesse era no soldado Messias, eu sabia que ficar afastado, traria problemas. — O que aconteceu? — perguntei antes de abrir a porta da enfermaria. — O tenente Soares o fez pagar muitas flexões, ele não comeu nada, porque o tenente disse que não iria tomar o café enquanto não terminasse quinhentas, e ele não aguentou. — Não acredito! O que ele fez? — Acusação de revolta, porque tentou ajudar outro soldado. — eu sabia o que aquele babaca do outro tenente havia feito, se aproveitado que eu não estava, para descontar a sua inveja no jovem rapaz que ele sabe que eu trouxe pra cá e era do orfanato. Entrei no local e fiquei ainda mais revoltado quando vi que o rapaz ainda estava desm
CAPÍTULO 05 Valéria Muniz Era um barulho do alarme de incêndio, aquilo não poderia estar acontecendo comigo, por Deus... como eu sairia sozinha por aqui? Sem conhecer nada? E sem a ajuda de um guia, como encontrei quando cheguei e consegui resolver tantas coisas? Meu corpo ficou tenso, enquanto aquele barulho me assustava. Fui batendo nas prateleiras, senti produtos caírem em cima de mim, mas me esforcei para conseguir sair. Quando cheguei na porta, quase chorei de emoção, não queria morrer bem agora que estava tão perto da minha liberdade, não era justo. Com os ouvidos super em alerta, e sentindo o ambiente mais quente, eu parei em frente a porta do quarto, tentando ser racional e não me desesperar. Pessoas falavam ao mesmo tempo, contei quatro passos da porta para frente e fui andando, mas parei quando percebi que tantas pessoas batiam e encostavam em mim, o que me deixou desesperada, sem saber o que fazer. “Eu queria tanto ver, queria saber o que estava acontecendo!“
CAPÍTULO 06 Valéria Muniz — Calma, aqui está a sua bengala. Por que ficou tão nervosa? — o rapaz perguntou com uma voz suave. — Eu preciso sair desse hotel. Meu irmão está atrás de mim, ele não pode me encontrar, me ajude moço, por favor! — procurei pelas mãos dele, ele segurou. — Meu nome é Rafael, pode me chamar assim. Eu te ajudo a se manter escondida aqui, se esse homem pode te causar mal... — Não, eu preciso ir, ele sempre me encontra, preciso ir. — comecei a andar naquele corredor pequeno e com cheiro ruim, procurando as minhas coisas, apalpando tudo, com medo de encostar no que não devia, peguei a minha pequena bolsa. — Olhe, eu não tenho muito dinheiro, mas posso te pagar para que me ajude a encontrar um quarto em uma pensão mais barata. — Fui tentando sair, e ele me ajudou. — Você está muito nervosa... olha, espera até o final do dia, não posso ir com você, agora. É só ficar lá dentro, posso te trazer uns pães e também almoço, não se apavore. Meu coração estava d
CAPÍTULO 07 Valéria Muniz A pior parte quando não se consegue ver, é saber que você está sozinha, não há ninguém por você. Se você cair, terá que se levantar, se não encontrar o seu caminho, terá que depender de estranhos, correndo riscos que você nunca saberá ao certo a profundidade deles e, sobretudo, se sentir numa escuridão interna, sabendo que ninguém poderá te encontrar lá dentro, porque você não tem ninguém. É exatamente assim que me sinto... numa completa escuridão. Se sempre foi assim? Não, já tive uma vida coberta de luz, mas se apagou. Assim o meu coração dói, segurando na porta de um carro estranho, onde o vidro está totalmente aberto, mas me sinto presa, implorando internamente para que ainda existam pessoas boas, e me deem apenas uma chance, de provar que não sou inútil por ser cega. O silêncio me mata a cada segundo, “mamãe, me sinto tão perdida!“ “Você me disse que sempre estaria comigo, mas onde está? Eu não consigo te ver!“ . — Você disse que sabe cuidar d
CAPÍTULO 08 Valéria Muniz Momentos seguintes, na casa de Anelise: Eu concordei com tudo o que ela dizia, só queria um trabalho e também fugir de Aaron. Ela me deixou conhecer um bebezinho muito cheiroso, de apenas cinco meses, que se chamava Samuel, e na mesma hora me acalmei com um anjinho daqueles, “ela confiou em mim”. — Olha, filho, a sua babá chegou! — se aproximou de mim, e senti ela com o bebê, me entregando. — Nossa, ele é tão quietinho! Não estranhou. — Como sabe que ele está acordado? Samuel é bem silencioso. — ajeitei o pequeno nos meus braços, e ouvi pequenos resmungos. — Através dos sons, movimentos corporais, mesmo que poucos, consigo identificar. — encostei o bebê perto de mim, gosto de sentir a respiração, a temperatura, me sinto mais confiante. — Puxa... — ela se expressou mostrando que estava impressionada com algo. Naquele dia, ela me mostrou toda a casa, tudo que o bebê usaria, e como funcionava. Dona Anelise me deu um quart
CAPÍTULO 09 Theodoro Almeida [Mensagem de texto de Anelise] — Você está bem? Não consegui te achar por esses dias, você vem no meu casamento, não é? — fiquei olhando para o celular e pensando que poderia ter sido eu o escolhido para se casar com ela, mas não disse nada. Respirei fundo, comecei a digitar uma mensagem, mas apaguei, pensei melhor e comecei novamente, eu não gostaria de ferir o coração da minha doce Ane. — Vou sim, estou muito bem, porém cheio de trabalho! — digitei, enviei e depois joguei o celular sobre o criado. “Era hoje... o dia em que eu precisaria enterrar esse sentimento que tenho por ela, esquecer que um dia já a amei, e pensar nela apenas como uma amiga. Sem muita cerimônia, olhei o único traje social que tinha no armário. Não era dos mais novos, então decidi ir fardado para Curitiba. Levarei o soldado Messias, mesmo que meu coração seja outra vez esmagado, não será a primeira vez, então eu aguentarei. . Enquanto Anelise casava com Vicente, tentei