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Capítulo 2 - Meu mundo parou

Amanheceu tão rápido quanto eu podia imaginar. Nem bem acordei e o corpo queria ficar na cama, mas meu espírito dizia para levantar, e rápido! Diante do meu guarda-roupa cheio de histórias não contadas, me deparei com aquele blazer preto que usei no casamento do meu irmão, o Rogério.

Tinha uns dois anos que não o usava. Nunca achei necessário, mas a ocasião exigia uma boa apresentação.

— Imbecil! — disse a mim mesmo.

Para que tudo isso? Vai que ela simplesmente não goste de você? Sim, havia o risco de não dar certo.

Todo esporte-fino e com o perfume Quasar no pescoço, poderia ir mais seguro. Ao chegar ao escritório, logo notaram meu visual “diferente”. Isabela, a secretária de cabelos curtos bem penteados e olhos castanhos, me fitou com curiosidade. Passei por ela e por outros que se entreolharam.

Natália, com seus 30 e poucos anos, chegou até mim na velocidade “5” e interrogou logo de cara. A alta e magra, com seus seios pequenos e quadril fino, olhou para este e disparou:

— Regi, hoje tem encontro né?

 Um sorriso malicioso formou-se em sua boca devidamente untada com batom brilhante. Pensei: “respondo ou não?” Decidi responder, mas sem palavras, apenas acenei positivamente. Então, ela disse:

 — Eu sabia! Boa sorte com ela…

Natália, te agradecerei sempre por essa pequena intromissão em minha vida particular, gostei. A tensão por causa daqueles olhares com pensamentos que nem quero imaginar, passou.

Esperei as doze badaladas do dia com o toque diário da sirene de altíssimos decibéis, instalada no prédio da redação do jornal A Tribuna. Clássica, ela é a implacável salvadora dos famintos e cansados de tanto trabalhar.

Desci para um pequeno — e necessário — desjejum ali na XV de Novembro, longe ainda das 13h. Até a praça do encontro, apenas alguns metros. Fui olhando à procura de qualquer loira suspeita, mas nada.  

#

Essa Praça Barão do Rio Branco não tem bancos de pedra como na Praça Mauá, aquela da linha 20. Contudo, é contornada com uma mureta que tem base de assento. Fiquei um pouco afastado da banca de jornal ali perto, estando, assim, em frente ao prédio do Banco do Brasil.

O relógio marcava 13h. Faltava ela chegar, mas enquanto aguardava, reparei que o céu estava azul, bem diferente da sexta-feira, e podia ouvir os pássaros nas árvores também.

Da mesma forma, o quicar os pneus dos carros sobre os paralelepípedos de “trocentos” anos eram bem audíveis, assim como o vento suave e levemente gélido, marcando a entrada do inverno.

13h10. Meu relógio Casio acusou o atraso. Ponderei ligar, mas me contive, pois, deixaria passar meia hora. Abortar não era legal, mas para consolo, havia meu Fusca me esperando.

Conjeturei: “calma, ela já vem… Espere!” Do outro lado da rua, surge uma loira que vem em minha direção. Pensei: “agora vai!” Contudo, olhando mais de perto, conforme ela se aproximava, reparei em seus cabelos curtos e bem escurecidos no alto.

Seu rosto denunciava sua idade, infelizmente. Social, carregava uma bolsa vermelha e devia ter uns 50 e poucos anos. De certo não era Elizabeth se passando por “novinha”.

Passou por mim, mas ainda deu uma olhada e um leve sorriso… Na minha cabeça surgiu: “ela se passando por mais nova?” Talvez… O livro falava que algumas pessoas faziam isso.

13h15. Metade do prazo para abortar havia se passado. Olhei para trás e a loira “mais velha” entrara num ônibus. O celular marcou 13h16. Então, ao retornar meu olhar de volta à direção do banco, vi uma figura se aproximar rapidamente.

Ela estava a uns sete metros de mim, aproximadamente, quando consegui fixar o olhar. Nesse momento, meu mundo parou! Em um segundo, minha mente iniciava uma luta para converter a imagem e processá-la como real.

Fiquei petrificado! Não podia ser! Era virtualmente impossível. Naquele eterno segundo os pensamentos passaram pelos neurônios como um relâmpago. Aqueles impulsos elétricos me diziam: você está tendo uma visão. Não é real!   

Sim, era real. A grande engrenagem que move o mundo, simplesmente se encaixou na minha pobre existência. Pensei: “meu Deus, como pode ser ela?” Era ela!

Não a Elisa do chat ou Elizabeth que conhecera e marcara aquele encontro. Nem uma, nem outra. Ali, diante deste pobre mortal que vos conta sua vida, estava a loira do trólebus! Sim, aquela arrebatadora de corações da Linha 20!

Perdi o sorriso, porque não tinha como não ficar impressionado. Era ela mesma! Estava em um lindo vestido florido com um fundo avermelhado. Seus cabelos loiros brilhavam como ouro, avolumados em relação ao dia anterior. Aqueles olhos verdes conquistaram minha alma!

— Oi, tudo bem? Reginaldo? — perguntou-me curiosa e um pouco assustada.

Afinal, conhecer alguém que você nunca viu, não é o que se faça todo dia, não é mesmo? Não tinha erro. Como ela poderia saber meu nome, se não fosse a… Elizabeth? Imitei um sorriso e respondi:

— Sim, o próprio.

Não pensei em outras palavras, fora pego de surpresa. Então, ela abriu sorriso lindo e seus olhos transpassaram-me como uma lança afiada. Desarmei-me.

— Prazer, Elizabeth — respondeu estendendo a mão.

Num rápido impulso, levantei e apertei sua mão, que assim como a minha, estava suada. Seu rosto se aproximou do meu, num movimento de cumprimento, que aceitei ainda em estado de choque…

Seu perfume nunca saiu da minha lembrança. Não é possível descrevê-lo em palavras, mas havia uma mistura de flores-do-campo, que deveria ser paradisíaca, pois eu estava diante de uma representante dos Elísios, uma das ninfas.

Por alguns segundos nos olhamos e na minha mente falei: “ela vai me reconhecer”. Entretanto, não disse nada.

Um segundo encontro?

Elizabeth, com aquele sorriso amável, era realmente linda. Parei nos olhos dela… De tão verdes, pareciam ocultar duas nebulosas e seu brilho era simplesmente indescritível.

Meus sentidos começaram a fluir novamente e relembramos a conversa na madrugada. Cada detalhe revisto, cada nova impressão. Parecia que nos conhecíamos há muitos anos. Foi uma longa conversa nas horas mais mágicas da minha vida.

Entretanto, enquanto eu as vivia, ainda não havia dado conta disso. Demos risadas de coisas bobas e parecíamos como crianças num parque infantil. Nada sério ou adulto, contudo, tive que iniciar o processo e revelei alguns extras da minha vida.

Não podia ser totalmente sincero sobre certos assuntos, afinal, ainda não conhecia Elizabeth. A impressão, porém, tornou-se outra com o passar dos minutos e me sentia cada vez mais seguro com ela. A tensão inicial se foi quase que completamente.

— Você é, digamos, diferente de como eu imaginava — disse ela com um sorriso engraçado.

Já absorto diante de tamanha beleza, perguntei:

— Sou mais feio ou mais bonito?

Esse é o tipo de pergunta que você jamais deve fazer, porém, mandei sem atenção à situação. Ela pensou… Fez aquele olhar de interrogação e abriu um sorriso que aparta qualquer briga ou discussão.

— Apenas, diferente. Mas, estou gostando do que vejo.

Essa resposta me desbancou e calei-me por um tempo. Respondi que ela era mais do que eu imaginava e era verdade. “Uma doce surpresa”, pensei.

Mesmo que não a tivesse conhecido no ônibus — e isso me colocaria numa situação delicada logo mais — Elizabeth se mostrava uma pessoa tão linda por dentro quanto por fora.

#

Passava das 14h30 quando Elizabeth decidiu me mostrar onde trabalhava, ali na XV de Novembro. No caminho, adiantei-me em mostrar o prédio do meu emprego.

Enquanto andávamos naquela estreita e histórica rua de Santos, me derretia a cada olhar que lançava sobre mim. Com prédios centenários como testemunhas, andávamos sem a menor pressa.

Chegando ao “endereço dela”, me mostrou o prédio onde trabalhou até poucas horas antes daquele momento.

— Se não fosse tão tarde, levaria você para conhecer o “meu canto” lá dentro — falou.

Agradeci e, antes que pudesse dizer algo, ela completou:

— Mas, por hoje chega. Melhor estar aqui fora que trabalhando lá dentro.

Elizabeth disse que nem todo sábado trabalhava, mas que aquele era sua escala. Então, me olhando curiosa, indagou:

— Será que não nos conhecemos dessa rua? Afinal, trabalhamos tão perto um do outro.

Decidi ali colocar todos os pingos nos “is”. Olhei-a sério e perguntei se ela acreditava em coincidência. Pensativa, Beth apenas disse um “talvez, não sei dizer ao certo”.

Continuei sério e disse que, pelo menos ali da XV, nunca a vi. Todavia, confessei que já nos olhamos e Beth pareceu surpresa.

— De onde? Ou melhor, onde? — respondeu intrigada.

Falei que a resposta era a Praça Mauá. Andamos até lá bem juntinhos e ela pareceu gostar disso. Naquele momento já brotava algo entre nós.

No caminho, contei que na sexta-feira havia passado pela praça correndo para não levar chuva. Quando chegamos ao ponto da Linha 20, que estava sem ônibus, abri o jogo:

— Beth. Posso chamar te chamar assim?

Ela aceitou e continuei:

— Foi nesse lugar que conheci você!

Olhou-me surpresa.

— Ontem, entrei no trólebus “20” e me sentei num banco virado ao contrário. Você, Elizabeth, sentou-se na minha frente. Lembra?

Passados alguns segundos, com um olhar perdido, ela mirou em mim, assustando-me, pois, parecia outra pessoa. Ali, lembrava a “loira do trólebus”.

— Não acredito! Era você? Agora lembro… Mas como? Não pode ser! — respondeu perplexa.

Também fiquei assim, mas não sei se foi por ela ter se transformado tão de repente ou por sua falta de memória.

— Sim, era eu mesmo e confesso que, quando te vi naquela praça, fiquei congelado de tanta surpresa — disse.

Beth ainda não acreditava nisso e continuou a dizer:

— Ainda não consigo imaginar como nos encontramos duas vezes no mesmo dia, mas em situações totalmente opostas. 

Interpelei:

— Duas situações que fugiram de nossas mãos…

Enquanto dizia isso, seu sorriso voltou e não pude deixar passar, pois, aquele era o momento de algo mais. Entretanto, antes de falar novamente, ela colocou a mão sobre meu ombro. Séria, Beth tinha olhos carentes e disse:

— Ainda bem que não nos conhecemos ontem. Eu estava tão amarga e triste. Queria estar logo em casa. Um dos motivos você já sabe — ela se referia ao término do namoro recente — e então foi melhor assim.

Segurei a mão dela em meu ombro e disse com sinceridade:

— Aquele Reginaldo de ontem também não estava bem. Era um velho “eu”, alguém que quero que fique no “ontem”, sabe por quê? 

Não a deixei responder:

— Porque hoje encontrei um “novo” Reginaldo e isso se deve exclusivamente a você. Me libertou de uma prisão de muitos anos, Beth.

Os olhos dela brilharam e, com um ar terno, falou:

— Posso dizer o mesmo “Regi”. Hoje não sou nada do que era ontem. Estou leve, livre de mim mesma, graças a você, meu querido.

Nesse momento ela veio e me abraçou. Sentir aquele corpo quente e perfumado no meu foi como encontrar um quasar num universo escuro.

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