Tenho uma dívida imensa com todos aqueles que conviveram comigo no período de criação. Fui movido, do princípio ao fim, pelas palavras de apoio e incentivo de todos vocês. Se você está lendo essas palavras, agradeço por utilizar um pouco de seu tempo e viver no meu universo.
“Às vezes o medo é um aviso, é como alguém colocando a mão em seu ombro e dizendo: Não vá além deste ponto”
(Memnoch – Anne Rice)
Antes mesmo de abrir os olhos, as mãos sondavam a calçada ao redor em busca da garrafa de plástico. Inútil. No fundo de sua mente ele já sabia que ela estaria vazia. Teria de suportar a garoa e o frio, completamente sóbrio, até o comércio abrir, o que aconteceria, na melhor das expectativas, cinco horas mais tarde.
Precisava evitar ao máximo qualquer movimento, afinal, o lado externo da manta, que já era insuficiente para barrar o frio, estava encharcada. A única parte realmente aquecida de seu corpo eram os pés, guardados sob a carne macia e peluda do fiel companheiro canino. Deus sabe que eu devo cada maldito dedo de meus pés miseráveis a você! Como se tivesse ouvido os pensamentos do velho companheiro, o cão abriu os olhos, ergueu a cabeça e deu um latido carinhoso.
Ninguém sabia seu nome, nem o do cão que o acompanhava. Com indiferença, sabiam apenas que o velho e fedorento mendigo costumava dormir na Rua da Prosperidade, perto da esquina com a Avenida Boa Esperança. O mendigo, por sua vez, mostrava a mesma indiferença por aquela sociedade suja e corrompida sem o menor medo de morrer de fome, afinal, Deus mandou seu filho sofrer na terra e convencer as pessoas que aqueles que entregarem as sobras aos moradores de rua, terão os vícios e deslizes perdoados, independente de o mendigo mostrar gratidão ou não.
Apesar da sobriedade & ressaca, do frio, da dureza do pavimento sob seu corpo e da garoa que castigava o rosto, o sono voltou a pesar em sua cabeça. Vindos das profundezas da mente, os mesmos velhos pensamentos e devaneios que o assombravam desde que passou a morar na rua vinham à tona. Cada vez menos o frio, cada vez menos a dureza do chão, cada vez menos a gélida garoa no rosto, cada vez menos ressaca.
Em algum lugar distante de sua mente um cão rosnava... Em algum lugar distante de sua mente passou a sentir uma fria umidade nos pés... Em algum lugar de sua mente algo quente e viscoso se espalhava ao redor, primeiro dos pés, depois das pernas, ignorando a proteção da manta, rastejando lentamente. Em algum lugar de sua mente começou a perceber que algo errado estava acontecendo e que ele não deveria estar dormindo. Ouviu um estalo e percebeu que a manta fora arrancada de seu corpo com a mesma brusquidão que um mágico tira a toalha de uma mesa para não derrubar as garrafas e taças. No segundo seguinte já estava em pé, totalmente acordado, a respiração ofegante, a ressaca como uma lembrança distante. A adrenalina tornando a realidade viscosa como mel.
O mendigo olhou ao redor procurando o fiel companheiro. Percebeu que uma viscosa mancha vermelho-escura cobria a calçada e penetrava nos vãos dos dedos dos pés descalços. A manta jazia no chão, cerca de dois metros à frente, quase na esquina com a Av. Boa Esperança, na mesma direção em que parte da poça viscosa parecia haver sido arrastada.
Suas pernas passaram a se mover lentamente na direção da manta. A cabeça tentava negar a nítida certeza de que estava seguindo o rastro de sangue do cão que se manteve fiel quando ninguém mais no mundo o fez. Aproximava-se da esquina quando começou a ouvir um som úmido, como o de algo entrando e saindo de uma bacia com água. Sentiu uma gota gelada de suor escorrer pelas costas. A apreensão paralisou seu corpo.
O som do outro lado da curva da esquina era constante e se fazia mais nítido. Um barulho de caixas caindo, alguns metros atrás de si, deveria tê-lo feito olhar para trás, mas manteve-se na mesma posição. Queria avançar até a esquina e não podia. Queria voltar e ver o que acontecia às suas costas e também não conseguia. Seus olhos captaram um vulto do outro lado da rua, à sua direita. Fechou os olhos.
O frio que enregelava os dedos das mãos não era apenas sintoma da baixa temperatura ambiente, bem como a secura de sua boca não era apenas resultado da última garrafa de pinga, a estranheza que se apoderava de seu corpo era um medo primordial. Não o medo que sentiu ao entrar no quarto pela manhã e encontrar a mãe gelada e rígida como um boneco de cera. Nem o medo que sentiu ao perceber que seu amor da juventude jamais seria correspondido. Um medo maior e mais profundo, a certeza de que a própria morte se aproximava e de que ela seria brutal.
Reconhecendo o próprio fim, fez a única coisa que lhe pareceu possível: gritou.
Larissa decidiu desligar o chuveiro antes que seu irmão caçula derrubasse a porta do banheiro. Sabia que estava atrasada para escola, mas a sua vida já era chata e tediosa o suficiente, mesmo com os demorados banhos quentes tomados pela manhã, para que algum empecilho a fizesse abrir mão deles. - Pronto, Guí! Já tô saindo.A porta do banheiro se abriu, deixando uma nuvem de vapor escapar, embaçando instantaneamente o vidro do corredor. - Até que enfim hein, eu já tava pensando em chamar o I.M.L!
Os moradores da cidade dizem que Angabaíba é um nome tupi, o que não é estranho em terras brasileiras. Só em São Paulo, podemos citar outras cidades, bairros e ruas que tenham os nomes oriundos da mesma fonte: Itu, Itupeva, Moji Guaçu, Moji Mirim e tantas outras que encheriam linhas e linhas. As divisões entre a população local começam quando dizemos: “Oquei, é tupi, mas que raios significa?” Começam as típicas brigas da cidade. Existem aqueles que apostariam a própria vida em que um significado plausível seria Terra cheia de coisa boa, o outro grupo, que também apostaria a própria vida e
Apesar dos azulejos brancos na parede e azulados no chão, do silêncio (interrompido por uma ou outra tosse, gemido de dor, sussurro, ou choro desesperado) e da extrema sensação de limpeza, o ambiente hospitalar está longe de ser receptivo e aconchegante. E é nesses corredores que encontramos, andando de um lado para o outro, as pessoas que tiveram a sensibilidade de se retirar do quarto de seus parentes ou amigos antes que eles percebessem que quem vem para consolar & confortar, na maioria das vezes deseja mais do que tudo nesse mundo é ser consolado & confortado.Andando de um lado para o outro no Hospital Municipal de Angabaíba, Larissa pensava que o trauma psicológico causado por ter presenciado de camarote o atropelamento de seu próprio irmão, sozinho, já
Retirado do jornal Comércio Angabaíbano em 11 de março de 2013:Sem teto é vítima de possível grupo NeonazistaNa última quinta-feira (10) morador de rua, sem documentação, ainda não identificado. Foi assassinado de maneira brutal, covarde e desumana. O corpo foi encontrado pelos irmãos Guilherme e Larissa Borges Faria e pelo empresário Otávio Medeiros, de uma forma um tanto inusitada e dramática. Guilherme, de 11 anos, ao avi
Os vários pisos quebrados e rachados, encardidos, alguns até mesmo com um pouco de mato crescendo por sua descontinuidade, indicavam que o local deveria ser algum prédio a muito não utilizado. As paredes apresentavam um alto grau de umidade, o que ajudava a criar a sensação de abandono. É neste corredor de algum lugar que ninguém normal visitaria durante a noite que corre, de mãos dadas, estava o jovem casal. Ele com seu velho par de um modelo genérico de All Star, vestindo um novo velho blue jeans rasgado, uma camiseta branca e justa. Ela de saltos altos (por que?), também de calça jeans, baby look branca e um leve agasalho por cima. Um desespero, nada genuíno, marcado em seus rostos. - Capitão Aurélio taê? O homem, na soleira da porta da delegacia estava todo vestido de preto. Sapato social, calça de lona, camiseta e boné. A barba por fazer e o palito de dentes na boca deixariam qualquer pessoa com a sensação de estar na presença de algum mau caráter qualquer. Este homem, no entanto, não era um mau caráter qualquer, era um bem especial. Joaquim era o policial civil responsável por manter uma comunicação amistosa entre os policiais civis e os militares, o que podia ser percebido pelo pacote pardo em suas mãos. No interior da delegacia a movimentação era a7
Quando Paulo olhou para a janela e percebeu o que estava anoitecendo, fechou, apressado, a tela de seu notebook, puxou o carregador da tomada e pulou a cama em um salto, aterrissando de joelhos, com a cabeça olhando por debaixo da cama em busca de seu coturno. Encontrou o par e puxou, enquanto se levantava e sentava na cama. Calçou-os com o devido cuidado de amarrá-los por cima da calça cáqui camuflada e seguiu em direção ao armário. Escolheu uma camiseta justa, totalmente vermelha, e cobriu com ela todas as tatuagens de seu corpo. Abriu uma das gavetas da cômoda e, afastando as meias, encontrou seu canivete butterfly, que enfiou na cintura. No banheiro, deu uma ultima ajeitada em seu cabelo loiro, cortado à escovinha. Fez uma última cara de mau antes de se decidir por ir embora. - Não sei até que ponto eu concordo com o feriado do “20 de novembro”, sei lá, uma vez, alguém me falou que não curtia porque só os fracos têm um dia pra si. Tipo, não tem dia pra branco! - Olha, Eliana, aposto que a pessoa que te falou isso era branca! - Era... - É sempre fácil pra quem tá por cima manter seu lugar no topo e parte do processo tá justamente em deslegitimar a luta e os símbolos de quem tá por baixo. Manja?&n9