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O doce sabor da carne
O doce sabor da carne
Por: Evandro Rafael Saracino
Parte I - Tranquilidade Perdida - 1

Agradecimentos

Tenho uma dívida imensa com todos aqueles que conviveram comigo no período de criação. Fui movido, do princípio ao fim, pelas palavras de apoio e incentivo de todos vocês. Se você está lendo essas palavras, agradeço por utilizar um pouco de seu tempo e viver no meu universo.

“Às vezes o medo é um aviso, é como alguém colocando a mão em seu ombro e dizendo: Não vá além deste ponto”

(Memnoch – Anne Rice)

     Antes mesmo de abrir os olhos, as mãos sondavam a calçada ao redor em busca da garrafa de plástico. Inútil. No fundo de sua mente ele já sabia que ela estaria vazia. Teria de suportar a garoa e o frio, completamente sóbrio, até o comércio abrir, o que aconteceria, na melhor das expectativas, cinco horas mais tarde.

    Precisava evitar ao máximo qualquer movimento, afinal, o lado externo da manta, que já era insuficiente para barrar o frio, estava encharcada. A única parte realmente aquecida de seu corpo eram os pés, guardados sob a carne macia e peluda do fiel companheiro canino. Deus sabe que eu devo cada maldito dedo de meus pés miseráveis a você! Como se tivesse ouvido os pensamentos do velho companheiro, o cão abriu os olhos, ergueu a cabeça e deu um latido carinhoso.

    Ninguém sabia seu nome, nem o do cão que o acompanhava. Com indiferença, sabiam apenas que o velho e fedorento mendigo costumava dormir na Rua da Prosperidade, perto da esquina com a Avenida Boa Esperança. O mendigo, por sua vez, mostrava a mesma indiferença por aquela sociedade suja e corrompida sem o menor medo de morrer de fome, afinal, Deus mandou seu filho sofrer na terra e convencer as pessoas que aqueles que entregarem as sobras aos moradores de rua, terão os vícios e deslizes perdoados, independente de o mendigo mostrar gratidão ou não.

    Apesar da sobriedade & ressaca, do frio, da dureza do pavimento sob seu corpo e da garoa que castigava o rosto, o sono voltou a pesar em sua cabeça. Vindos das profundezas da mente, os mesmos velhos pensamentos e devaneios que o assombravam desde que passou a morar na rua vinham à tona. Cada vez menos o frio, cada vez menos a dureza do chão, cada vez menos a gélida garoa no rosto, cada vez menos ressaca.

    Em algum lugar distante de sua mente um cão rosnava... Em algum lugar distante de sua mente passou a sentir uma fria umidade nos pés... Em algum lugar de sua mente algo quente e viscoso se espalhava ao redor, primeiro dos pés, depois das pernas, ignorando a proteção da manta, rastejando lentamente. Em algum lugar de sua mente começou a perceber que algo errado estava acontecendo e que ele não deveria estar dormindo. Ouviu um estalo e percebeu que a manta fora arrancada de seu corpo com a mesma brusquidão que um mágico tira a toalha de uma mesa para não derrubar as garrafas e taças. No segundo seguinte já estava em pé, totalmente acordado, a respiração ofegante, a ressaca como uma lembrança distante. A adrenalina tornando a realidade viscosa como mel.

    O mendigo olhou ao redor procurando o fiel companheiro. Percebeu que uma viscosa mancha vermelho-escura cobria a calçada e penetrava nos vãos dos dedos dos pés descalços.  A manta jazia no chão, cerca de dois metros à frente, quase na esquina com a Av. Boa Esperança, na mesma direção em que parte da poça viscosa parecia haver sido arrastada.

    Suas pernas passaram a se mover lentamente na direção da manta. A cabeça tentava negar a nítida certeza de que estava seguindo o rastro de sangue do cão que se manteve fiel quando ninguém mais no mundo o fez. Aproximava-se da esquina quando começou a ouvir um som úmido, como o de algo entrando e saindo de uma bacia com água. Sentiu uma gota gelada de suor escorrer pelas costas. A apreensão paralisou seu corpo.

    O som do outro lado da curva da esquina era constante e se fazia mais nítido. Um barulho de caixas caindo, alguns metros atrás de si, deveria tê-lo feito olhar para trás, mas manteve-se na mesma posição. Queria avançar até a esquina e não podia. Queria voltar e ver o que acontecia às suas costas e também não conseguia. Seus olhos captaram um vulto do outro lado da rua, à sua direita. Fechou os olhos.

O frio que enregelava os dedos das mãos não era apenas sintoma da baixa temperatura ambiente, bem como a secura de sua boca não era apenas resultado da última garrafa de pinga, a estranheza que se apoderava de seu corpo era um medo primordial. Não o medo que sentiu ao entrar no quarto pela manhã e encontrar a mãe gelada e rígida como um boneco de cera. Nem o medo que sentiu ao perceber que seu amor da juventude jamais seria correspondido. Um medo maior e mais profundo, a certeza de que a própria morte se aproximava e de que ela seria brutal.

Reconhecendo o próprio fim, fez a única coisa que lhe pareceu possível: gritou.

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