Larissa decidiu desligar o chuveiro antes que seu irmão caçula derrubasse a porta do banheiro. Sabia que estava atrasada para escola, mas a sua vida já era chata e tediosa o suficiente, mesmo com os demorados banhos quentes tomados pela manhã, para que algum empecilho a fizesse abrir mão deles.
- Pronto, Guí! Já tô saindo.
A porta do banheiro se abriu, deixando uma nuvem de vapor escapar, embaçando instantaneamente o vidro do corredor.
- Até que enfim hein, eu já tava pensando em chamar o I.M.L!
Enquanto cruzava o corredor, uma toalha enrolada na cabeça, outra enrolada no corpo, lançou um olhar de desprezo para seu irmão, que ria enquanto sumia pelo portal de neblina que levava ao banheiro. “E ainda tenho que vestir esta merda de uniforme verde todo dia”. Vestiu-se & maquiou-se enquanto sofria com as insolúveis crises existenciais da adolescência. Ficou imersa em problemas até Guilherme chamá-la avisando que já estava pronto para a escola.
Como acontece com algumas cidades satélites de Campinas, Angabaíba é grande se comparada às demais cidades do interior paulista e pequena se comparada com as cidades grandes. Bem administrada, se tornou referencia por sua excelente estrutura preservando o aconchego e paz das cidades interioranas. Ruim para Guilherme e Larissa, pois seus pais se sentiam tão tranquilos em relação à pacata cidade que os irmãos tinham de ir todos os dias caminhando os infinitos três quilômetros que separavam a casa da escola.
Seis e dez era o horário exato que beijavam as faces macias da avó Judite, trancavam a porta da frente e se punham a caminho da escola todas as manhãs e aquele 10 de março não seria um dia diferente. Larissa abrindo o portão da frente; Guilherme saindo com a sacola de lixo; Larissa fechando o portão da frente. Guilherme passando a mão nas costas da camiseta branca de Larissa, fingindo limpá-las; Larissa xingando Guilherme, ofendendo por tabela a mãe de ambos; Guilherme rindo, descendo a rua, sem esperar a irmã que dava uma última ajeitada no cabelo.
Andaram pouco mais da metade do percurso quando chegaram à Av. Boa Esperança, o comércio ainda estava fechado e as poucas almas que transitavam pela região passavam todas de carro.
Guilherme, com seus onze anos de idade, ainda não tinha sido ignorado e reprimido o suficiente e por isso manifestava a curiosidade e criatividade natural de todos os seres humanos:
- Mana, olha que engraçado! Aqui choveu de noite, lá em casa não.
Não houve resposta. Guilherme se aproximou de Larissa, arrancou o fone de ouvido de sua orelha esquerda e repetiu a frase:
- Olha, mana, aqui choveu!
- E daí?
- Lá em casa não choveu!
- E daí?
- Vai se ferrar, então!
- Vai se ferrar você, moleque idiota!
- O que é aquilo?
- Não enche!
- É sério, o que é aquilo?
Guilherme começava a atravessar a rua, apontando para algo que parecia um amontoado de caixas de papelão e panos velhos formando uma figura quase humana, quando ouviu sua irmã gritando para que parasse. Escutou o som da buzina e um milhão de informações passaram por sua cabeça. Teve tempo de olhar para os olhos esbugalhados de sua irmã e sua boca formando um “O” perfeito. Teve tempo de lembrar o dever de história estava incompleto e que o professor Chico mandaria um bilhete para seus pais. Teve tempo de virar a cabeça para o lado e ver um senhor de meia idade, do outro lado do para-brisa, com o rosto franzido. Teve tempo de pensar que talvez o dever não fosse mais tão importante. Teve tempo de escutar o barulho de derrapada e sentir as pernas serem levantadas do chão.
Larissa observava, totalmente impotente, seu irmão sendo jogado para cima como um boneco de pano, o rosto batendo no para-brisa, o corpo rolando pelo capô, primeiro para cima, depois para baixo, a pequena cabeça quicando no asfalto.
O senhor desceu do carro o mais rápido que pôde, e tanto ele quanto Larissa chegaram a tempo de ouvir Guilherme pronunciar uma única frase antes de desmaiar:
- Eu acho que aquilo na calçada é um homem morto.
Os moradores da cidade dizem que Angabaíba é um nome tupi, o que não é estranho em terras brasileiras. Só em São Paulo, podemos citar outras cidades, bairros e ruas que tenham os nomes oriundos da mesma fonte: Itu, Itupeva, Moji Guaçu, Moji Mirim e tantas outras que encheriam linhas e linhas. As divisões entre a população local começam quando dizemos: “Oquei, é tupi, mas que raios significa?” Começam as típicas brigas da cidade. Existem aqueles que apostariam a própria vida em que um significado plausível seria Terra cheia de coisa boa, o outro grupo, que também apostaria a própria vida e
Apesar dos azulejos brancos na parede e azulados no chão, do silêncio (interrompido por uma ou outra tosse, gemido de dor, sussurro, ou choro desesperado) e da extrema sensação de limpeza, o ambiente hospitalar está longe de ser receptivo e aconchegante. E é nesses corredores que encontramos, andando de um lado para o outro, as pessoas que tiveram a sensibilidade de se retirar do quarto de seus parentes ou amigos antes que eles percebessem que quem vem para consolar & confortar, na maioria das vezes deseja mais do que tudo nesse mundo é ser consolado & confortado.Andando de um lado para o outro no Hospital Municipal de Angabaíba, Larissa pensava que o trauma psicológico causado por ter presenciado de camarote o atropelamento de seu próprio irmão, sozinho, já
Retirado do jornal Comércio Angabaíbano em 11 de março de 2013:Sem teto é vítima de possível grupo NeonazistaNa última quinta-feira (10) morador de rua, sem documentação, ainda não identificado. Foi assassinado de maneira brutal, covarde e desumana. O corpo foi encontrado pelos irmãos Guilherme e Larissa Borges Faria e pelo empresário Otávio Medeiros, de uma forma um tanto inusitada e dramática. Guilherme, de 11 anos, ao avi
Os vários pisos quebrados e rachados, encardidos, alguns até mesmo com um pouco de mato crescendo por sua descontinuidade, indicavam que o local deveria ser algum prédio a muito não utilizado. As paredes apresentavam um alto grau de umidade, o que ajudava a criar a sensação de abandono. É neste corredor de algum lugar que ninguém normal visitaria durante a noite que corre, de mãos dadas, estava o jovem casal. Ele com seu velho par de um modelo genérico de All Star, vestindo um novo velho blue jeans rasgado, uma camiseta branca e justa. Ela de saltos altos (por que?), também de calça jeans, baby look branca e um leve agasalho por cima. Um desespero, nada genuíno, marcado em seus rostos. - Capitão Aurélio taê? O homem, na soleira da porta da delegacia estava todo vestido de preto. Sapato social, calça de lona, camiseta e boné. A barba por fazer e o palito de dentes na boca deixariam qualquer pessoa com a sensação de estar na presença de algum mau caráter qualquer. Este homem, no entanto, não era um mau caráter qualquer, era um bem especial. Joaquim era o policial civil responsável por manter uma comunicação amistosa entre os policiais civis e os militares, o que podia ser percebido pelo pacote pardo em suas mãos. No interior da delegacia a movimentação era a7
Quando Paulo olhou para a janela e percebeu o que estava anoitecendo, fechou, apressado, a tela de seu notebook, puxou o carregador da tomada e pulou a cama em um salto, aterrissando de joelhos, com a cabeça olhando por debaixo da cama em busca de seu coturno. Encontrou o par e puxou, enquanto se levantava e sentava na cama. Calçou-os com o devido cuidado de amarrá-los por cima da calça cáqui camuflada e seguiu em direção ao armário. Escolheu uma camiseta justa, totalmente vermelha, e cobriu com ela todas as tatuagens de seu corpo. Abriu uma das gavetas da cômoda e, afastando as meias, encontrou seu canivete butterfly, que enfiou na cintura. No banheiro, deu uma ultima ajeitada em seu cabelo loiro, cortado à escovinha. Fez uma última cara de mau antes de se decidir por ir embora. - Não sei até que ponto eu concordo com o feriado do “20 de novembro”, sei lá, uma vez, alguém me falou que não curtia porque só os fracos têm um dia pra si. Tipo, não tem dia pra branco! - Olha, Eliana, aposto que a pessoa que te falou isso era branca! - Era... - É sempre fácil pra quem tá por cima manter seu lugar no topo e parte do processo tá justamente em deslegitimar a luta e os símbolos de quem tá por baixo. Manja?&n9
Eles estavam em um grupo de cinco. Aguardavam escondidos separadamente. Quase não tiveram tempo de se preparar desde que tiveram conhecimento do espancamento de Paulo, mas de alguma forma tinham conseguido. É claro que não foi simplesmente sorte, é que um dos cinco do grupo sabia que Maicon estava envolvido e avisou aos outros o melhor lugar para emboscá-lo. Agora, aguardavam em silêncio a chegada do rapaz. As árvores frondosas tornavam fraca a iluminação da Rua Prudente de Morais. A escuridão somada à criatividade de se esconder do grupo, propiciou uma boa oportunidade. Um deles nem estava totalmente escondido, apenas agachara-se perto de dois grandes sacos plásticos pretos de lixo e mesmo assim, estava pratic