Apesar dos azulejos brancos na parede e azulados no chão, do silêncio (interrompido por uma ou outra tosse, gemido de dor, sussurro, ou choro desesperado) e da extrema sensação de limpeza, o ambiente hospitalar está longe de ser receptivo e aconchegante. E é nesses corredores que encontramos, andando de um lado para o outro, as pessoas que tiveram a sensibilidade de se retirar do quarto de seus parentes ou amigos antes que eles percebessem que quem vem para consolar & confortar, na maioria das vezes deseja mais do que tudo nesse mundo é ser consolado & confortado.
Andando de um lado para o outro no Hospital Municipal de Angabaíba, Larissa pensava que o trauma psicológico causado por ter presenciado de camarote o atropelamento de seu próprio irmão, sozinho, já era um trauma bem grande, mas, em seus quinze (faltam só dois meses para os dezesseis) anos de idade, acabou aprendendo uma das mais duras lições da vida – as coisas ruins são covardes, sempre atacam em bando.
O médico atestou que estava tudo bem com Guilherme; nenhuma fratura, nenhuma escoriação grave. Ficaria na enfermaria em observação apenas para garantir que alguma lesão mais séria viesse a prejudicá-lo, afinal, como dissera o doutor:
- A cabeça sofreu dois impactos fortes e isso nunca deve ser desprezado.
No entanto, o que incomodava Larissa no momento não era o irmão, e sim, o que foi visto de perto, na calçada do outro lado da rua, após o atropelamento de seu irmão:
O homem, que provavelmente, deveria ser um morador de rua, estava meio sentado, com as costas apoiadas na vitrine de uma loja, meio deitado na calçada. A sola de seu pé direito coberta de sangue seco, a perna esquerda acabando em um cotoco logo abaixo do joelho, a tíbia exposta, a fíbula roída. Sangue por todo o lado. O ventre totalmente aberto, o intestino espalhado pela calçada como se tivesse tentado fugir, as costelas expostas, a pele do peitoral virada por cima do braço esquerdo como um livro aberto, o braço direito ausente. Isso já bastava para que Larissa lançasse um jato de café da manhã (feito com todo o carinho pela vovó) pelo asfalto, mas não era tudo. No lugar da cabeça do homem foi costurada a cabeça de um cão, lembrando algo que a menina reconheceu como a divindade egípcia, Anúbis. Pela primeira vez na vida, aplicou, fora da escola, alguma coisa aprendida nas aulas do chatíssimo Professor Chico e não sentiu prazer nenhum pelo momento.
Larissa soube mais tarde, pelas conversas sobre o tema, no hospital, que encontraram um cão sem cabeça, o morador de rua não era Anúbis, afinal. A cabeça do homem, no entanto, continuava desaparecida.
Retirado do jornal Comércio Angabaíbano em 11 de março de 2013:Sem teto é vítima de possível grupo NeonazistaNa última quinta-feira (10) morador de rua, sem documentação, ainda não identificado. Foi assassinado de maneira brutal, covarde e desumana. O corpo foi encontrado pelos irmãos Guilherme e Larissa Borges Faria e pelo empresário Otávio Medeiros, de uma forma um tanto inusitada e dramática. Guilherme, de 11 anos, ao avi
Os vários pisos quebrados e rachados, encardidos, alguns até mesmo com um pouco de mato crescendo por sua descontinuidade, indicavam que o local deveria ser algum prédio a muito não utilizado. As paredes apresentavam um alto grau de umidade, o que ajudava a criar a sensação de abandono. É neste corredor de algum lugar que ninguém normal visitaria durante a noite que corre, de mãos dadas, estava o jovem casal. Ele com seu velho par de um modelo genérico de All Star, vestindo um novo velho blue jeans rasgado, uma camiseta branca e justa. Ela de saltos altos (por que?), também de calça jeans, baby look branca e um leve agasalho por cima. Um desespero, nada genuíno, marcado em seus rostos. - Capitão Aurélio taê? O homem, na soleira da porta da delegacia estava todo vestido de preto. Sapato social, calça de lona, camiseta e boné. A barba por fazer e o palito de dentes na boca deixariam qualquer pessoa com a sensação de estar na presença de algum mau caráter qualquer. Este homem, no entanto, não era um mau caráter qualquer, era um bem especial. Joaquim era o policial civil responsável por manter uma comunicação amistosa entre os policiais civis e os militares, o que podia ser percebido pelo pacote pardo em suas mãos. No interior da delegacia a movimentação era a7
Quando Paulo olhou para a janela e percebeu o que estava anoitecendo, fechou, apressado, a tela de seu notebook, puxou o carregador da tomada e pulou a cama em um salto, aterrissando de joelhos, com a cabeça olhando por debaixo da cama em busca de seu coturno. Encontrou o par e puxou, enquanto se levantava e sentava na cama. Calçou-os com o devido cuidado de amarrá-los por cima da calça cáqui camuflada e seguiu em direção ao armário. Escolheu uma camiseta justa, totalmente vermelha, e cobriu com ela todas as tatuagens de seu corpo. Abriu uma das gavetas da cômoda e, afastando as meias, encontrou seu canivete butterfly, que enfiou na cintura. No banheiro, deu uma ultima ajeitada em seu cabelo loiro, cortado à escovinha. Fez uma última cara de mau antes de se decidir por ir embora. - Não sei até que ponto eu concordo com o feriado do “20 de novembro”, sei lá, uma vez, alguém me falou que não curtia porque só os fracos têm um dia pra si. Tipo, não tem dia pra branco! - Olha, Eliana, aposto que a pessoa que te falou isso era branca! - Era... - É sempre fácil pra quem tá por cima manter seu lugar no topo e parte do processo tá justamente em deslegitimar a luta e os símbolos de quem tá por baixo. Manja?&n9
Eles estavam em um grupo de cinco. Aguardavam escondidos separadamente. Quase não tiveram tempo de se preparar desde que tiveram conhecimento do espancamento de Paulo, mas de alguma forma tinham conseguido. É claro que não foi simplesmente sorte, é que um dos cinco do grupo sabia que Maicon estava envolvido e avisou aos outros o melhor lugar para emboscá-lo. Agora, aguardavam em silêncio a chegada do rapaz. As árvores frondosas tornavam fraca a iluminação da Rua Prudente de Morais. A escuridão somada à criatividade de se esconder do grupo, propiciou uma boa oportunidade. Um deles nem estava totalmente escondido, apenas agachara-se perto de dois grandes sacos plásticos pretos de lixo e mesmo assim, estava pratic
Achamos que somos imunes a muitas coisas, até o dia em que elas acontecem conosco. O assassinato do mendigo em Angabaíba chamou muito a atenção da mídia em toda a região de Campinas, mas não a ponto de alguma outra prefeitura ter tomado alguma precaução para impedir que algo semelhante acontecesse em suas cidades. A segurança pública continuava ruim. Não fique surpreendido em saber que até mesmo em Angabaíba as coisas não mudaram muito com o assassinato. O assunto era o principal tema das conversas por toda a cidade, frases como “onde o mundo vai parar” ou “antigamente essas coisas não aconteciam” eram muito comuns na boca das pessoas, no entanto isso não significa que elas tenham passado a adotar qualquer medida para se precaver de se tornar víti
A mulher à porta estava com o rosto inchado, provavelmente de tanto chorar. Se os cabelos não fossem raspados, rentes à cabeça, provavelmente estariam desgrenhados. A senhora negra não era alta, era obesa, possuía grandes olhos castanhos, normalmente muito belos, mas agora devastados pelo sofrimento, trajava um vestido colorido que deixavam à mostra suas grandes panturrilhas maltratadas pelas varizes. Sua voz geralmente tão deliciosa de ser ouvida, devido o forte sotaque baiano, era puro desespero e terror: - Cibele, por favor, diga que Maicon passou a noite em sua casa! Eu TENHO que estar vivendo um pesadelo! Diga que ele está aí! Dêxe eu entrar!