Uma pessoa vinha caminhando a passos largos numa estrada em companhia de seu cachorro de cor preta. O animal a vigiava e mantinha seus ouvidos atentos em tudo que se mexia ao redor. A mulher sabia dos sinais que ele podia lhe passar, ela também estava ligada a tudo quanto o cão pudesse lhe dizer. O perigo sempre foi iminente naquele mundo. A razão havia se perdido a muito e os poucos que ainda tinham não agiam de acordo com os padrões que a sociedade havia sido um dia, as correntes foram quebradas, todavia, os que se libertaram não eram tão inocentes assim.
Ela sabia que estava próxima de seu destino. Estava a dias caminhando e se localizava por um pequeno mapa velho que pegou em uma escola abandonada nas redondezas de um lugar antigo chamado Sulacap. Havia poucos deles ainda existentes nesse mundo. Tudo havia se informatizado, antes da queda, e com a destruição da sociedade da informação todos os dados foram perdidos com o tempo. Os zeros e uns sumiram e o que ficou foram apenas as coisas físicas. Foi uma grande sorte tê-lo encontrado, pois era uma carta exata de todos os bairros da cidade que caminhava em anos já sem conta. Ela também trazia consigo um fichário, de capa preta, que possuía divisórias de metal, ainda limpo. Tudo estava guardado em sua mochila junto com outras provisões, assim como alimento e água.
Sobre seu casaco longo e improvisado, costurado com a sobra de outros tecidos, dando a impressão de um sobretudo, pouco usado na maior parte de seu país em tempos atrás, estavam algumas facas. Ela adoraria uma arma de fogo, mas era muito difícil encontra-las nos días atuais, ainda mais sabendo que era quase impossível achar munição que pudesse durar um longo período de tempo, portanto, era inútil ter uma, embora em uma luta, contra seres ou pessoas maiores que ela, eram mais rápidas e afastavam qualquer ameaça sem precisar se aproximar. Levava também uma garrafa com algum tipo de líquido inflamável e fósforos.
Há tempos vinha planejando esse dia. Precisava acertar o local e cumprir sua tarefa. Sabia que as coisas não retornariam ao normal, mas tudo teria um fim ali, após feita sua missão. Tudo estava acabado, pouco das décadas passadas havia sobrado, porem colocando um fim, no que gerou naquilo tudo, existiria uma chance dos humanos vivos se reerguerem e construir uma nova sociedade, porém, infelizmente, reformada sobre escombros.
Parou de repente. Havia chegado ao seu destino finalmente. A sua frente avistou o portão branco de ferro com mais de dois metros e meio de altura. Estava trancado com cadeados enferrujados que bloqueavam uma possibilidade de entrada fácil. Preferiu pular o muro, mas era muito alto, seu cachorro não poderia ficar do lado de fora sozinho. Pegou em seu bolso esquerdo, da calça, uma pequena dinamite, lembrava como os garotos da rua explodiam latas de refrigerante com aquilo no natal, encaixou entre a corrente e o cadeado, acendeu com o fosforo e se afastou para não receber nenhum estilhaço de metal nos olhos. A chama do pavio era vermelha e o canudo do explosivo esverdeado. Após sete segundos um grande estouro. O cadeado tinha se rompido. Precisava ser rápida, sabia que o barulho poderia atrair qualquer coisa que estivesse rondando aquela área.
Abriu rapidamente o portão e entrou no prédio. Pegou o fichário de capa preta e procurou qual era a sala exata que precisava encontrar. Com a ponta dos dedos foi deslizando para baixo até encontrar o nome que precisava e viu anotado ao lado dele: - QUARTO 402. Procurou a entrada do prédio principal e correu para o que parecia uma recepção. Ao adentrar percebeu que tudo ainda estava em seu devido lugar. Os computadores ainda intactos, a recepção com um balcão de madeira estava cheio de documentos espalhados sobre a mesa, assim como um compartimento que possuía todas as chaves preso à parede. Correu até esse compartimento, procurou pela chave do quarto em questão, mas ela não estava ali. Desistiu da procura e buscou a escadaria por onde poderia subir ao quarto andar. Haviam elevadores que poderiam leva-la rapidamente ao andares superiores, mas aquilo de nada valia, eram coisas do passado.
Correu pelas escadas da maneira mais veloz que conseguia. Seu cachorro percorria o trajeto logo a sua frente. A mulher queria terminar tudo aquilo logo, chegando ao andar desejado. Assim que terminou a escadaria abriu um portão vermelho, sem bloqueio, estava escuro o corredor, pegou em sua mochila uma lanterna no fundo. Ligou-a e viu a sua frente uma placa de dizia: quarto 401 - 410 À DIREITA, QUARTO 411 - 420 À ESQUERDA. Caminhou até a penúltima sala à direita. O caminho parecia longo e sentia que algo a tentava impedir de prosseguir. Não sentia medo, mesmo com a presença tentando traze-la ao desconfortável. Percebia seu coração acelerar de maneira desordenada. Estava ansiosa, há muito planejou estar ali, por muito tempo caminhava ao seu destino. Prometeu para si mesma e a todos, que a ensinaram sobre o novo mundo, e aprenderam com ela também,que conseguiria colocar fim a tudo aquilo e que todos teriam uma nova chance de sonhar com um novo futuro.
Chegou de frente ao quarto 402 e ficou paralisada durante um tempo. Um frio congelante envolvia aquele lugar. O cachorro rangia os dentes, também sabia que ali estava uma anormalidade, mas não latia, olhava para sua dona esperando uma ação. Enquanto ele estava sentado, sua guia se arrepiava dos pés a cabeça, estava sem qualquer reação. O cão como por instinto deu-lhe uma leve mordida na mão, trazendo de volta o próprio domínio da mulher. Ela, assim que recobrou a lucidez, logo puxou a garrafa com o líquido inflamável. Tentou abrir a porta, mas estava barrada com outro cadeado. Não tinha mais dinamites em seu arsenal. Decidiu rasgar um pedaço de sua calça e empapar com parte do liquido contido na garrafa. Descobriu que havia uma portinhola pequena na parte de baixo da porta do quarto desejado. Decidiu não olhar para nada que havia lá dentro. Enrolou o pano sobre a garrafa, acendeu um fosforo e o fogo começou a ganhar força no tecido que cobria o recipiente de vidro, que continha o material inflamável.
— Tudo acaba aqui. - Disse a mulher
Como se dentro de sua cabeça uma imagem ganhou forma e uma voz extremamente velha e cansada soprou sobre seus ouvidos.
— Por favor, não faça isso, eu consigo consertar tudo.
Mas ela não deu importância. Tinha certeza que haveria uma tentativa de convencimento por parte daquele ser. Mas foi preparada para aquele momento e tampou qualquer possibilidade de entrada daquela voz em sua consciência. A mulher abriu a portinhola e jogou a garrafa envolta do pano pegando fogo para dentro do quarto 402. Virou as costas e andou em direção à escada tentando não dar atenção às vozes delirantes que saiam do escuro enquanto pegava fogo. As labaredas já lambiam os umbrais do portão enquanto a fumaça preta dava a noticia que tudo lá dentro ardia em chamas.
Essa noite pareceu longa para Pedro de uma forma que não conseguia explicar. O sono o pegou e lhe arrastou para um precipício muito fundo, íngreme e perpendicular, tornando cada vez maior sua queda, causando o continuo aprofundamento, diretamente ao mais fundo do seu próprio interior. Dormiu por tantas horas que pareciam infinitas. Não que isso seja incomum para ele, mas dessa vez foi diferente. É de se admirar que ainda esteja cansado, mesmo após todas as horas que permaneceu apagado. Um cansaço que seu corpo não permitia que conseguisse abrir os olhos para o nascer de um novo dia. O mundo tem tantos problemas difíceis de serem encarados que muitos fazem a escolha, por diversas vezes, de que é melhor fechar os olhos e não abri-los mais. Não há cortina mais expressa do que a membranas que tapam nossas janelas. Não há luz que penetre quando estamos dispostos a e
Minha mãe é a pessoa mais forte que já conheci. Ela sozinha tomou conta de mim, minha irmã e minha avó. Sempre trabalhou duro na casa de outras pessoas. Certa vez fui acompanha-la em um trabalho e quis ajuda-la em seu serviço, isso não foi muito fácil. A prática a levou a um nível de competência no que fazia que me espantava. Como uma mulher que pouco dormia, mal conseguia comer bem com o dinheiro que tinha, e pouco descansava, pois ainda chegava em casa e tinha que cuidar dos seus, fazia aquele trabalho duro e desgastante tão bem feito? Acredito que isso seja coisa de mãe. Mães nascem com um espírito diferente dos demais seres. Sua energia é distinta biologicamente ou seu espirito é evoluído e programado para cuidar, não sei explicar bem. Acredito que a natureza deu a aquela que gera um amor diferente dos outros, que trás a tona o
Estava magro, ao ponto de conseguir ver suas costelas sobressaindo sobre a parte lateral do tronco. Passou os dedos sobre a pele e sentia o relevo que o esqueleto fazia sobre todo seu lado direito e esquerdo. Parecia que estava sem comer há séculos, ou mesmo que era um viciado em drogas, como aqueles que vemos perambulando pelas ruas, embora não estivesse sujo, mas sentia sua pele áspera como se a beira de escamar. Notava uma coceira incômoda entre as juntas. Seus joelhos estavam enrugados, os tornozelos e pés irreconhecíveis. Quando subiu sua visão até a imagem do espelho percebeu que estava com os cabelos compridos, haviam crescido até a altura dos seus ombros. Pedro Ferreira Rodrigues tinha o cabelo liso, fino e ralo, quando ele crescia logo caia para os lados e se dividia ao meio naturalmente. Porém naquele momento o que se apresentava a sua
Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam? Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela. Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela. — Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma
Quando recobrou a consciência percebeu que havia ficado naquele lugar por horas. Tudo estava escuro. Sabia que tinha anoitecido. O ar estava frio e sentia coisas sinistras o observando por todos os lugares. Levantou-se e tentou se orientar pra saber onde exatamente estava. Descobriu que tinha dormido por horas numa rua próxima da sua casa. Nunca tinha feito algo do tipo. — Nossa que estranho. Sempre dormi na minha própria cama. Como pude dormir tanto tempo aqui? — Caminhou até a entrada da ruela e olhou em volta. Onde estava não havia seres vivos. — Onde estão todos? — Todavia percebeu que existiam sombras furtivas lhe observando curiosas, mas que mesmo olhando para ele de onde estavam não se aproximavam para incomoda-lo, apenas o vigiavam. Sentiu um peso sobre si, como uma g
Gosto de lembrar-me da rua onde cresci com a imagem dos meus amigos de infância jogando bola e brincando de pique pega, polícia e ladrão e de tudo o que podíamos inventar no dia. As ruas eram largas, o vento sempre chegava pra trazer um ar mais fresco e levava embora a fadiga do cansaço e o desgaste decorrente do tanto que usamos a energia que a juventude nos deu. Não havia muito movimento de pessoas e carros naquela região, nem havia muita preocupação com a presença de estranhos e tumultos comuns nos bairros adjacentes ao meu. Alguns bairros, vizinhos nosso, possuíam por características o comercio de massas. Onde moro é significativo o número de residências.Eram horas de corre pra cá, corre pra lá. Uma parada pra um lanche e assistir o programa da tarde no canal preferido junto de nosso principal colega e com um copo de achocolatado gelado na mão junto
A FendaUma grande mão magra, escaravelha, marcada pela pele como couro seco que cobria toda sua extensão, terminada por pontiagudas unhas escuras, duras como se a muito existente, mas agudas como fio de navalha, afiadas pelo tempo e pelo plano que a ela foi destinado, apareceu nos céus do Rio de Janeiro. Ninguém a viu e nem de que maneira surgiu no grande azul da atmosfera local, apenas estava lá, naquele determinado local e determinado tempo.Lá embaixo tudo gira como se tem ocorrido por milênios na normalidade terrena. Pessoas vão e voltam enquanto outras nunca mais retornam. Umas vivem, mas outras arrebatam a vida dos outros. Algumas sonham e diversas outras tem pesadelos. Em determinadas corredeiras passam águas, em outras rios de sangue. Umas são sãs, porém, em sua grande maioria, as pessoas encontram-se perdidas em seus próprios devaneios.
Remanso, Bahia, 1972. 17 dias. Como se saísse de dentro das profundezas de um estado de hibernação, desta vez Rita está acordada. Perdida totalmente em relação ao tempo e onde estava exatamente. São muitos dias dentro de um buraco escuro, isolado deste mundo, que não a permitia crescer como os outros, ser normal como todas as crianças. — Mãe! — Grita a menina. Seu medo de estar sozinha sempre estava presente, afinal até que tudo se ponha no lugar o que se apresenta a ela é aquele momento, o momento em que desperta.— Meu Deus minha filha, você acordou finalmente.A mãe correu já com lágrimas nos olhos e abra&