Estava magro, ao ponto de conseguir ver suas costelas sobressaindo sobre a parte lateral do tronco. Passou os dedos sobre a pele e sentia o relevo que o esqueleto fazia sobre todo seu lado direito e esquerdo. Parecia que estava sem comer há séculos, ou mesmo que era um viciado em drogas, como aqueles que vemos perambulando pelas ruas, embora não estivesse sujo, mas sentia sua pele áspera como se a beira de escamar. Notava uma coceira incômoda entre as juntas. Seus joelhos estavam enrugados, os tornozelos e pés irreconhecíveis. Quando subiu sua visão até a imagem do espelho percebeu que estava com os cabelos compridos, haviam crescido até a altura dos seus ombros. Pedro Ferreira Rodrigues tinha o cabelo liso, fino e ralo, quando ele crescia logo caia para os lados e se dividia ao meio naturalmente. Porém naquele momento o que se apresentava a sua frente parecia como a imagem dos meninos que estavam a meses perdidos numa ilha em “O Senhor das Moscas”, com a diferença de que não estava com a pele queimada pelo sol, mas pálida como de quem não se bronzeia. Pedro não estava perdido em uma ilha, comom os garotos do livro, porém também não se lembrava de nada nos ultimos dias e de estar em outro lugar perdido por tanto tempo.
Averiguou o quarto e ainda continuava espantado com seu aspecto físico. Tudo parecia velho e sujo. Tinha a impressão que havia entrado numa maquina do tempo e viajado mil anos no futuro. Tudo estava definhando. Seus pôsteres, das bandas e filmes que gostava, estavam comidos pelas traças. Os livros da escola amontoados no chão, mofados, desbotados e malcheirosos. Sua mesa de estudos estava quebrada e esmigalhada como se comida por cupins durante anos. Todas as paredes estavam manchadas com um esverdeado bolorento e o chão estava imundo. Plantas secas e mortas, como pequenos filetes de grama, haviam crescido em algumas partes do piso. A cerâmica do chão estava toda arranhada e com partes já descoloridas como se algo tivesse sido arrastado diversas vezes por ele, dando para ver o avermelhado do barro interior. O teto estava repleto de teias de aranhas, como um grande lençol suspenso muito falhado.
Sentia que seu coração estava a todo o momento palpitando e tentava entender o que havia acontecido. Com pavor olhou para a porta, ela estava quase caída, segurada apenas por uma dobradiça, como se um grande tremor a tivesse removido do lugar, ou como se alguém a tivesse forçado ao ponto de quebrar o que a segurava. Por um espaço entre a porta e o umbral, que dela havia se desprendido pela metade, conseguia ver o corredor que dava acesso ao restante dos comodos da casa. Por ele havia algo que sempre teve pavor, a escuridão.
Tomando coragem, aos poucos foi caminhando para a saída do quarto. Não escutava mais nenhum som externo, até o barulho da chuva havia cessado e no interior da residência um silencio sombrio. A cada passo que dava mais seus pensamentos se conturbavam e tentavam o enganar. Mais medos o possuíam, transformando a duvida em puro temor. Tremendo e com as mãos suadas colocou força na maçaneta para tirar a porta do lugar. De imediato, a porta caiu para o chão quebrando o ultimo trinco que a segurava e a partindo ao meio a madeira achatada, fraca assim como a mesa do computador, totalmente corroída pelos insetos. Não conseguiu interromper a queda. O som ecoou por todo o corredor e ao fundo sentiu um vento frio, chegado a Pedro com incrível calma, mas tomado por perversidade e maldade junto a um fedor tenebroso. Naquele momento soube que algo ruim estava ali, uma presença.
Adentrou o corredor, com toda coragem que ainda tinha, primeiro tateando as paredes, pois a escuridão estava absoluta. Sabia que precisava entender o que estava acontecendo. Necessitava encontrar alguém que lhe desse algum tipo de resposta. Apertou o próprio avanço em direção a entrada da cozinha, o cheio era de abandono e de algo podre que estava seco com o tempo. Por fim avistou um pequeno filete de luz, correu para averiguar o que era e logo que observou a total realidade entendeu que não estava mais no mundo em que conhecia.
Tudo era de aspecto imundo, empoeirado e velho. A parede da cozinha da casa estava pela metade derrubada. Pensou logo que um grande impacto a havia levado ao chão, porém ao dirigir seus a imagem de toda a rua, agora aberta com a possibilidade de visão total, viu que estava se deparando com um cenário semelhante aqueles de filmes das cidades europeias pós-bombardeios da segunda guerra. Quase tudo eram escombros. Quase nada estava de pé. Uma imensidão de entulhos, pedras sobre pedras e a ilusão de que algo, um dia, existiu ali.
Naquele mesmo momento sentiu como se alguém estivesse lhe vigiando. Uma presença como uma mão fria tentando lhe tocar. Um alerta instintivo imediatamente indicou que devia correr e não virar para trás, mas não se permitiu ceder ao medo naquele momento. Virou furtivamente para trás pra saber o que estava olhando-o. Descobriu que ainda estava sozinho. A sua frente apresentava-se apenas a cozinha de sua casa. A mesa ainda estava de pé com suas pernas de ferro enferrujadas, que ainda a sustentavam, com duas xícaras velhas e empoeiradas sobre ela, como se estivessem esperando para serem cheias, todavia nunca foram e provavelmente nunca mais seriam completas como ao a se ingerir. Pareceu-lhe que quem estava para se servir de algo, e deixou as xicaras como estavam sobre a mesa, foram pegas de surpresa pelo que causou tudo aquilo e não tiveram tempo de tomar um ultimo gole do que quer que seja que iriam se servir.
Espantado imediatamente se tocou que a sua família não estava ali. Seu desespero bateu a porta e gritou com todas as forças por sua mãe, sua avó e sua irmã. Correu novamente para dentro procurando aflito por elas. O sofá estava em frangalhos, a TV em migalhas espalhadas pelo chão. Virou à direita, no corredor, e não havia ninguém no quarto da sua irmã. Tudo também estava como todas as outras coisas. Caiu de joelhos apoiado com as mãos no chão, chorando desesperadamente. Não eram somente lágrimas. Seu atordoamento o fez babar, puxar os próprios cabelos e colocou sua cabeça entre as pernas. Foi então que sentiu aquela mão fria lhe puxando novamente.
Dessa vez não olhou para trás, apenas correu para fora de casa sem direção. Cobrindo o rosto com as mãos, não queria ver nada daquilo. Correndo o mais rápido que pode caiu duas vezes no asfalto duro, sentiu que havia machucado seus dois joelhos e as palmas das mãos. As feridas estavam fumegando como se encostado em brasas, mas não parou para olhar nada daquilo que deixava para trás em sua debandada. Fugindo daquele ser, que não imaginava o que era, se entregou ao desconhecido. Adentrou rua acima e após vários metros de corrida escondeu-se numa pequena ruela que conseguiu enxergar entre os dedos, mesmo com os olhos inundados pela umidade do seu choro, em meio a sua partida. Ao penetrar na rua estreita novamente caiu, batendo seu rosto forte no chão. Logo lhe veio a tontura e somado ao medo de abrir novamente os olhos, tomado completamente de pavor, desmaiou.
Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam? Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela. Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela. — Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma
Quando recobrou a consciência percebeu que havia ficado naquele lugar por horas. Tudo estava escuro. Sabia que tinha anoitecido. O ar estava frio e sentia coisas sinistras o observando por todos os lugares. Levantou-se e tentou se orientar pra saber onde exatamente estava. Descobriu que tinha dormido por horas numa rua próxima da sua casa. Nunca tinha feito algo do tipo. — Nossa que estranho. Sempre dormi na minha própria cama. Como pude dormir tanto tempo aqui? — Caminhou até a entrada da ruela e olhou em volta. Onde estava não havia seres vivos. — Onde estão todos? — Todavia percebeu que existiam sombras furtivas lhe observando curiosas, mas que mesmo olhando para ele de onde estavam não se aproximavam para incomoda-lo, apenas o vigiavam. Sentiu um peso sobre si, como uma g
Gosto de lembrar-me da rua onde cresci com a imagem dos meus amigos de infância jogando bola e brincando de pique pega, polícia e ladrão e de tudo o que podíamos inventar no dia. As ruas eram largas, o vento sempre chegava pra trazer um ar mais fresco e levava embora a fadiga do cansaço e o desgaste decorrente do tanto que usamos a energia que a juventude nos deu. Não havia muito movimento de pessoas e carros naquela região, nem havia muita preocupação com a presença de estranhos e tumultos comuns nos bairros adjacentes ao meu. Alguns bairros, vizinhos nosso, possuíam por características o comercio de massas. Onde moro é significativo o número de residências.Eram horas de corre pra cá, corre pra lá. Uma parada pra um lanche e assistir o programa da tarde no canal preferido junto de nosso principal colega e com um copo de achocolatado gelado na mão junto
A FendaUma grande mão magra, escaravelha, marcada pela pele como couro seco que cobria toda sua extensão, terminada por pontiagudas unhas escuras, duras como se a muito existente, mas agudas como fio de navalha, afiadas pelo tempo e pelo plano que a ela foi destinado, apareceu nos céus do Rio de Janeiro. Ninguém a viu e nem de que maneira surgiu no grande azul da atmosfera local, apenas estava lá, naquele determinado local e determinado tempo.Lá embaixo tudo gira como se tem ocorrido por milênios na normalidade terrena. Pessoas vão e voltam enquanto outras nunca mais retornam. Umas vivem, mas outras arrebatam a vida dos outros. Algumas sonham e diversas outras tem pesadelos. Em determinadas corredeiras passam águas, em outras rios de sangue. Umas são sãs, porém, em sua grande maioria, as pessoas encontram-se perdidas em seus próprios devaneios.
Remanso, Bahia, 1972. 17 dias. Como se saísse de dentro das profundezas de um estado de hibernação, desta vez Rita está acordada. Perdida totalmente em relação ao tempo e onde estava exatamente. São muitos dias dentro de um buraco escuro, isolado deste mundo, que não a permitia crescer como os outros, ser normal como todas as crianças. — Mãe! — Grita a menina. Seu medo de estar sozinha sempre estava presente, afinal até que tudo se ponha no lugar o que se apresenta a ela é aquele momento, o momento em que desperta.— Meu Deus minha filha, você acordou finalmente.A mãe correu já com lágrimas nos olhos e abra&
A menina, de pele morena e cabelos encaracolados, saiu pela porta principal de sua casa. Seguia seu irmão, meio desorientada, pois se sentia deslocada depois de tantos dias fora de sintonia. Caminhava arrastando seus pés descalços até a varanda. Sentia o piso queimado avermelhado sob seus pés, daquele feito de concreto e argamassa, finalizado com uma boa mão habilidosa de nivelamento com a colher de um pedreiro. Algo barato, característico das casas de interior. Rita, com seus olhos escuros, pela primeira vez desde que acordou, via a luz do dia por completo. Seu quintal continuava o mesmo. As plantas estavam luminosas e refletiam a luz do sol. Tudo típico da estação mais quente do ano. Não gostava muito da temperatura abrasando sua pele. A fadiga era sempre presente nessa época quando a umidade estava presente em potencial na atmosfera e o suor grudado no corpo torna-se uma característica do t
Salvador, Bahia.— Senhora. Infelizmente as causas dessa síndrome em sua filha são desconhecidas. Há poucos casos no mundo e poucos estudos sobre ele. Sabemos que a maior parte das pessoas que apresentaram os sintomas são homens jovens, porém isso não é uma regra exata.— Seu doutor. — Respondeu Elizabeth aflita. — Eu quero uma cura pra minha filha. Já gasto o que não tenho vindo até a capital do estado e quando chego aqui vocês nunca tem uma resposta certa e uma solução do problema da minha pobre menina. Por favor, ajude ela. Ela está perdendo toda a juventude.Estavam sentadas em duas cadeiras de ferro desconfortáveis de um pequeno consultório que prestava serviços ao sistema de saúde público local. Conversavam com o pediatra de Rita, que a acompanhava desde seu primeiro episódio de longo sono. Ele e
Rita estava na beira de um grande rio cristalino e calmo. De inicio pensou estar às margens do grande São Francisco, que cortava sua cidade, todavia ao olhar em volta, não reconheceu nada. Correu nas areias e pisava as pequenas plantas mortas da restinga arenosa. Não importava o quão mais rápido corria, percebeu que sempre voltava para o local de sua partida. Â sua volta as árvores eram retorcidas e de aparência carbonosa. Como se estivessem secas e queimadas há muito tempo, mesmo ao lado do rio cristalino. Não eram muitas. O terreno era composto de pedras pontiagudas e pequenas, diferente daquelas comuns, de borda arredondada, de beiras de córregos e cursos d’água. Não havia animais naquela vasta paisagem. Mesmo no longínquo horizonte não se via uma única cabeça de gado, ou um único urubu sobrevoando