Capítulo 3

         Estava magro, ao ponto de conseguir ver suas costelas sobressaindo sobre a parte lateral do tronco. Passou os dedos sobre a pele e sentia o relevo que o esqueleto fazia sobre todo seu lado direito e esquerdo. Parecia que estava sem comer há séculos, ou mesmo que era um viciado em drogas, como aqueles que vemos perambulando pelas ruas, embora não estivesse sujo, mas sentia sua pele áspera como se a beira de escamar. Notava uma coceira incômoda entre as juntas. Seus joelhos estavam enrugados, os tornozelos e pés irreconhecíveis. Quando subiu sua visão até a imagem do espelho percebeu que estava com os cabelos compridos, haviam crescido até a altura dos seus ombros. Pedro Ferreira Rodrigues tinha o cabelo liso, fino e ralo, quando ele crescia logo caia para os lados e se dividia ao meio naturalmente. Porém naquele momento o que se apresentava a sua frente parecia como a imagem dos meninos que estavam a meses perdidos numa ilha em “O Senhor das Moscas”, com a diferença de que não estava com a pele queimada pelo sol, mas pálida como de quem não se bronzeia. Pedro não estava perdido em uma ilha, comom os garotos do livro, porém também não se lembrava  de nada nos ultimos dias e de estar em outro lugar perdido por tanto tempo.

         Averiguou o quarto e ainda continuava espantado com seu aspecto físico. Tudo parecia velho e sujo. Tinha a impressão que havia entrado numa maquina do tempo e viajado mil anos no futuro. Tudo estava definhando. Seus pôsteres, das bandas e filmes que gostava, estavam comidos pelas traças. Os livros da escola amontoados no chão, mofados, desbotados e malcheirosos. Sua mesa de estudos estava quebrada e esmigalhada como se comida por cupins durante anos. Todas as paredes estavam manchadas com um esverdeado bolorento e o chão estava imundo. Plantas secas e mortas, como pequenos filetes de grama, haviam crescido em algumas partes do piso. A cerâmica do chão estava toda arranhada e com partes já descoloridas como se algo tivesse sido arrastado diversas vezes por ele, dando para ver o avermelhado do barro interior. O teto estava repleto de teias de aranhas, como um grande lençol suspenso muito falhado.

         Sentia que seu coração estava a todo o momento palpitando e tentava entender o que havia acontecido. Com pavor olhou para a porta, ela estava quase caída, segurada apenas por uma dobradiça, como se um grande tremor a tivesse removido do lugar, ou como se alguém a tivesse forçado ao ponto de quebrar o que a segurava. Por um espaço entre a porta e o umbral, que dela havia se desprendido pela metade, conseguia ver o corredor que dava acesso ao restante dos comodos da casa. Por ele havia algo que sempre teve pavor, a escuridão.

         Tomando coragem, aos poucos foi caminhando para a saída do quarto. Não escutava mais nenhum som externo, até o barulho da chuva havia cessado e no interior da residência um silencio sombrio. A cada passo que dava mais seus pensamentos se conturbavam e tentavam o enganar. Mais medos o possuíam, transformando a duvida em puro temor. Tremendo e com as mãos suadas colocou força na maçaneta para tirar a porta do lugar. De imediato, a porta caiu para o chão quebrando o ultimo trinco que a segurava e a partindo ao meio a madeira achatada, fraca assim como a mesa do computador, totalmente corroída pelos insetos. Não conseguiu interromper a queda. O som ecoou por todo o corredor e ao fundo sentiu um vento frio, chegado a Pedro com incrível calma, mas tomado por perversidade e maldade junto a um fedor tenebroso. Naquele momento soube que algo ruim estava ali, uma presença.

         Adentrou o corredor, com toda coragem que ainda tinha, primeiro tateando as paredes, pois a escuridão estava absoluta. Sabia que precisava entender o que estava acontecendo. Necessitava encontrar alguém que lhe desse algum tipo de resposta. Apertou o próprio avanço em direção a entrada da cozinha, o cheio era de abandono e de algo podre que estava seco com o tempo. Por fim avistou um pequeno filete de luz, correu para averiguar o que era e logo que observou a total realidade entendeu que não estava mais no mundo em que conhecia.

         Tudo era de aspecto imundo, empoeirado e velho. A parede da cozinha da casa estava pela metade derrubada. Pensou logo que um grande impacto a havia levado ao chão, porém ao dirigir seus a imagem de toda a rua, agora aberta com a possibilidade de visão total, viu que estava se deparando com um cenário semelhante aqueles de filmes das cidades europeias pós-bombardeios da segunda guerra. Quase tudo eram escombros. Quase nada estava de pé. Uma imensidão de entulhos, pedras sobre pedras e a ilusão de que algo, um dia, existiu ali.

         Naquele mesmo momento sentiu como se alguém estivesse lhe vigiando. Uma presença como uma mão fria tentando lhe tocar. Um alerta instintivo imediatamente indicou que devia correr e não virar para trás, mas não se permitiu ceder ao medo naquele momento. Virou furtivamente para trás pra saber o que estava olhando-o. Descobriu que ainda estava sozinho. A sua frente apresentava-se apenas a cozinha de sua casa. A mesa ainda estava de pé com suas pernas de ferro enferrujadas, que ainda a sustentavam, com duas xícaras velhas e empoeiradas sobre ela, como se estivessem esperando para serem cheias, todavia nunca foram e provavelmente nunca mais seriam completas como ao a se ingerir. Pareceu-lhe que quem estava para se servir de algo, e deixou as xicaras como estavam sobre a mesa, foram pegas de surpresa pelo que causou tudo aquilo e não tiveram tempo de tomar um ultimo gole do que quer que seja que iriam se servir.

         Espantado imediatamente se tocou que a sua família não estava ali. Seu desespero bateu a porta e gritou com todas as forças por sua mãe, sua avó e sua irmã. Correu novamente para dentro procurando aflito por elas. O sofá estava em frangalhos, a TV em migalhas espalhadas pelo chão. Virou à direita, no corredor, e não havia ninguém no quarto da sua irmã. Tudo também estava como todas as outras coisas. Caiu de joelhos apoiado com as mãos no chão, chorando desesperadamente. Não eram somente lágrimas. Seu atordoamento o fez babar, puxar os próprios cabelos e colocou sua cabeça entre as pernas. Foi então que sentiu aquela mão fria lhe puxando novamente.

         Dessa vez não olhou para trás, apenas correu para fora de casa sem direção. Cobrindo o rosto com as mãos, não queria ver nada daquilo. Correndo o mais rápido que pode caiu duas vezes no asfalto duro, sentiu que havia machucado seus dois joelhos e as palmas das mãos. As feridas estavam fumegando como se encostado em brasas, mas não parou para olhar nada daquilo que deixava para trás em sua debandada. Fugindo daquele ser, que não imaginava o que era, se entregou ao desconhecido. Adentrou rua acima e após vários metros de corrida escondeu-se numa pequena ruela que conseguiu enxergar entre os dedos, mesmo com os olhos inundados pela umidade do seu choro, em meio a sua partida. Ao penetrar na rua estreita novamente caiu, batendo seu rosto forte no chão. Logo lhe veio a tontura e somado ao medo de abrir novamente os olhos, tomado completamente de pavor, desmaiou.

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