Capítulo 4

         Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam?  Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela.

         Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela.

         — Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma boneca caríssima, se compararmos ao que ganhava naquela época, só por ver uma propaganda na TV? Colocou na cabeça que ela iria gostar do presente e não deu outra, juntou dinheiro e foi até a loja. Sua mãe ficou enfurecida e pediu pra que ele devolvesse o brinquedo a loja, no entanto quando viu o quanto sua irmã já tinha se apegado a boneca não tocou mais no assunto.

         — Vó, nunca vi essa boneca com a Clara na minha vida.

— Sua irmã foi com ela pra escola uma vez e quando retornou não estava mais com ela. Provavelmente a perdeu. Isso ocorreu algum tempo após a morte do seu pai. Sua irmã, mesmo quando pequena, sofria muito com o falecimento dele. Chamava sempre por ele, perguntava onde estava quando ia dormir, chorava bastante. Mas um dia, sem mais nem menos, logo após perder a boneca que havia ganhado, entendeu que nunca mais o veria e não tocava mais no assunto do seu querido pai. Hoje acredito que ela seja fechada como é por reflexo do que aconteceu com nossa família. Ela provavelmente nunca se esqueceu de tudo que se passou naquela época.

Minha irmã é diferente de mim. Adora ler. Seu quarto é cheio de livros, principalmente de ficção, Stephen King, William Peter Blatty, Jay Anson e muitos outros que eu não sabia quem era o autor. Tinha muito ciúmes de seus livros. Ninguém tocava neles sem sua permissão. Outros ela escondia. Eu sabia disso, pois certa vez entrei em seu quarto, para pegar algo que não me vem à memória, e vi no fundo de uma gaveta dois livros de capas dura e pretos bem escondidos. Ela entrava naquele mundo e esquecia o que se passava pelo nosso. Uma espécie de fuga da realidade que acredito ter sido decorrente desde pequena, quando ela tentava se distanciar das memorias do passado.

Por diversas vezes tentou me fazer ler alguns dos seus livros, porém eu nunca iniciei um. Não conseguia manter a atenção durante muito tempo no que estava digitado e desistia. Nossa família sempre falou pra ela começar a escrever, que do tanto que ela lia poderia ser uma grande escritora. Ela então começou a escrever, acredito que levou o conselho de todos a sério, e para todo lugar tem sempre um lápis e papel nos bolsos e na mochila. Embora nunca tenha mostrado o que havia nos seus escritos pra ninguém.

         — Sua irmã não é uma pessoa tímida. Ela é uma adolescente retraída. Prefere o silêncio particular do que a barulheira que os jovens atuais fazem. Não se calam nunca. São sempre donos de si, egocêntricos e se acham senhores do seu tempo.  Acredito que ela detesta essas características nos jovens e prefere crescer sem a presença de muitos deles.

         — Me lembro de uma vez que ela veio com um menino aqui em casa, Lucas o nome dele. Sempre vejo ele nos corredores da escola.

         — Coitado desse garoto. — Disse minha avó. — Ficou apaixonado por sua irmã, mas ela só queria saber o que era ter um namorado e em um mês não suportava mais estar do lado do garoto. — Minha avó deu gargalhadas ao falar sobre isso. — Ele ligava e ela dizia que era pra falar que não estava em casa. Ele batia na porta perguntando por ela, mas ela saia pelos fundos. Até que um dia ele desistiu.

         — Coitado. Ele sempre me cumprimenta e tenta puxar assunto comigo na escola. Acredito que ainda queira uma ligação conosco pra não ficar tão longe da Clara, mas ela não quer saber mais nada dele.

         — Eu acho que ele ainda gosta dela e que não vai desistir de manter contato.

         — Sim. Sua irmã um dia vai sair do mundo que ela criou pra se proteger de tudo que vem de fora e se tornar uma grande mulher. Na verdade ela já é. Nunca a vi fazendo maldades com ninguém, ou sendo mal educada com ninguém aqui de casa ou de qualquer outro lugar.

         Clarice estava no ultimo ano do ensino médio e passou no vestibular de uma faculdade federal aqui do nosso estado. Ela está empolgada de uma forma que eu não tinha visto. De certa maneira minha vó sempre está certa. Uma hora minha irmã vai sair do casulo que criou.

         — Esses últimos dias ela anda feliz por causa de uma mensagem que um professor dela enviou, convidando ela a participar da construção de um livro para um concurso de literatura nacional.

         — Nossa, eu não sabia disso.

         — Ela comentou comigo e sua mãe na semana passada. É difícil vê-la tão empolgada.

         — Espero que ela ganhe o concurso. Depois vou tentar conversar com ela sobre do que se trata exatamente.

         — Pedro, não importa o buraco mais fundo que você tente se esconder, o mundo exterior sempre vai tentar te puxar para fora para conhecer um pouco da luz que o constrói. Ninguém fica numa caverna pra sempre. De algum modo nosso consciente quer aprender o que são as sobras que se formam nas paredes dos nossos pensamentos. Ninguém vive só com seus pensamentos, somos uma mistura de tudo e quando entendemos isso tentamos somar algo a essa mistura, muitas vezes sem nem percebermos.

          Ela estava certa. Aliás, minha avó sempre tinha razão.

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