Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam? Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela.
Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela.
— Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma boneca caríssima, se compararmos ao que ganhava naquela época, só por ver uma propaganda na TV? Colocou na cabeça que ela iria gostar do presente e não deu outra, juntou dinheiro e foi até a loja. Sua mãe ficou enfurecida e pediu pra que ele devolvesse o brinquedo a loja, no entanto quando viu o quanto sua irmã já tinha se apegado a boneca não tocou mais no assunto.
— Vó, nunca vi essa boneca com a Clara na minha vida.
— Sua irmã foi com ela pra escola uma vez e quando retornou não estava mais com ela. Provavelmente a perdeu. Isso ocorreu algum tempo após a morte do seu pai. Sua irmã, mesmo quando pequena, sofria muito com o falecimento dele. Chamava sempre por ele, perguntava onde estava quando ia dormir, chorava bastante. Mas um dia, sem mais nem menos, logo após perder a boneca que havia ganhado, entendeu que nunca mais o veria e não tocava mais no assunto do seu querido pai. Hoje acredito que ela seja fechada como é por reflexo do que aconteceu com nossa família. Ela provavelmente nunca se esqueceu de tudo que se passou naquela época.
Minha irmã é diferente de mim. Adora ler. Seu quarto é cheio de livros, principalmente de ficção, Stephen King, William Peter Blatty, Jay Anson e muitos outros que eu não sabia quem era o autor. Tinha muito ciúmes de seus livros. Ninguém tocava neles sem sua permissão. Outros ela escondia. Eu sabia disso, pois certa vez entrei em seu quarto, para pegar algo que não me vem à memória, e vi no fundo de uma gaveta dois livros de capas dura e pretos bem escondidos. Ela entrava naquele mundo e esquecia o que se passava pelo nosso. Uma espécie de fuga da realidade que acredito ter sido decorrente desde pequena, quando ela tentava se distanciar das memorias do passado.
Por diversas vezes tentou me fazer ler alguns dos seus livros, porém eu nunca iniciei um. Não conseguia manter a atenção durante muito tempo no que estava digitado e desistia. Nossa família sempre falou pra ela começar a escrever, que do tanto que ela lia poderia ser uma grande escritora. Ela então começou a escrever, acredito que levou o conselho de todos a sério, e para todo lugar tem sempre um lápis e papel nos bolsos e na mochila. Embora nunca tenha mostrado o que havia nos seus escritos pra ninguém.
— Sua irmã não é uma pessoa tímida. Ela é uma adolescente retraída. Prefere o silêncio particular do que a barulheira que os jovens atuais fazem. Não se calam nunca. São sempre donos de si, egocêntricos e se acham senhores do seu tempo. Acredito que ela detesta essas características nos jovens e prefere crescer sem a presença de muitos deles.
— Me lembro de uma vez que ela veio com um menino aqui em casa, Lucas o nome dele. Sempre vejo ele nos corredores da escola.
— Coitado desse garoto. — Disse minha avó. — Ficou apaixonado por sua irmã, mas ela só queria saber o que era ter um namorado e em um mês não suportava mais estar do lado do garoto. — Minha avó deu gargalhadas ao falar sobre isso. — Ele ligava e ela dizia que era pra falar que não estava em casa. Ele batia na porta perguntando por ela, mas ela saia pelos fundos. Até que um dia ele desistiu.
— Coitado. Ele sempre me cumprimenta e tenta puxar assunto comigo na escola. Acredito que ainda queira uma ligação conosco pra não ficar tão longe da Clara, mas ela não quer saber mais nada dele.
— Eu acho que ele ainda gosta dela e que não vai desistir de manter contato.
— Sim. Sua irmã um dia vai sair do mundo que ela criou pra se proteger de tudo que vem de fora e se tornar uma grande mulher. Na verdade ela já é. Nunca a vi fazendo maldades com ninguém, ou sendo mal educada com ninguém aqui de casa ou de qualquer outro lugar.
Clarice estava no ultimo ano do ensino médio e passou no vestibular de uma faculdade federal aqui do nosso estado. Ela está empolgada de uma forma que eu não tinha visto. De certa maneira minha vó sempre está certa. Uma hora minha irmã vai sair do casulo que criou.
— Esses últimos dias ela anda feliz por causa de uma mensagem que um professor dela enviou, convidando ela a participar da construção de um livro para um concurso de literatura nacional.
— Nossa, eu não sabia disso.
— Ela comentou comigo e sua mãe na semana passada. É difícil vê-la tão empolgada.
— Espero que ela ganhe o concurso. Depois vou tentar conversar com ela sobre do que se trata exatamente.
— Pedro, não importa o buraco mais fundo que você tente se esconder, o mundo exterior sempre vai tentar te puxar para fora para conhecer um pouco da luz que o constrói. Ninguém fica numa caverna pra sempre. De algum modo nosso consciente quer aprender o que são as sobras que se formam nas paredes dos nossos pensamentos. Ninguém vive só com seus pensamentos, somos uma mistura de tudo e quando entendemos isso tentamos somar algo a essa mistura, muitas vezes sem nem percebermos.
Ela estava certa. Aliás, minha avó sempre tinha razão.
Quando recobrou a consciência percebeu que havia ficado naquele lugar por horas. Tudo estava escuro. Sabia que tinha anoitecido. O ar estava frio e sentia coisas sinistras o observando por todos os lugares. Levantou-se e tentou se orientar pra saber onde exatamente estava. Descobriu que tinha dormido por horas numa rua próxima da sua casa. Nunca tinha feito algo do tipo. — Nossa que estranho. Sempre dormi na minha própria cama. Como pude dormir tanto tempo aqui? — Caminhou até a entrada da ruela e olhou em volta. Onde estava não havia seres vivos. — Onde estão todos? — Todavia percebeu que existiam sombras furtivas lhe observando curiosas, mas que mesmo olhando para ele de onde estavam não se aproximavam para incomoda-lo, apenas o vigiavam. Sentiu um peso sobre si, como uma g
Gosto de lembrar-me da rua onde cresci com a imagem dos meus amigos de infância jogando bola e brincando de pique pega, polícia e ladrão e de tudo o que podíamos inventar no dia. As ruas eram largas, o vento sempre chegava pra trazer um ar mais fresco e levava embora a fadiga do cansaço e o desgaste decorrente do tanto que usamos a energia que a juventude nos deu. Não havia muito movimento de pessoas e carros naquela região, nem havia muita preocupação com a presença de estranhos e tumultos comuns nos bairros adjacentes ao meu. Alguns bairros, vizinhos nosso, possuíam por características o comercio de massas. Onde moro é significativo o número de residências.Eram horas de corre pra cá, corre pra lá. Uma parada pra um lanche e assistir o programa da tarde no canal preferido junto de nosso principal colega e com um copo de achocolatado gelado na mão junto
A FendaUma grande mão magra, escaravelha, marcada pela pele como couro seco que cobria toda sua extensão, terminada por pontiagudas unhas escuras, duras como se a muito existente, mas agudas como fio de navalha, afiadas pelo tempo e pelo plano que a ela foi destinado, apareceu nos céus do Rio de Janeiro. Ninguém a viu e nem de que maneira surgiu no grande azul da atmosfera local, apenas estava lá, naquele determinado local e determinado tempo.Lá embaixo tudo gira como se tem ocorrido por milênios na normalidade terrena. Pessoas vão e voltam enquanto outras nunca mais retornam. Umas vivem, mas outras arrebatam a vida dos outros. Algumas sonham e diversas outras tem pesadelos. Em determinadas corredeiras passam águas, em outras rios de sangue. Umas são sãs, porém, em sua grande maioria, as pessoas encontram-se perdidas em seus próprios devaneios.
Remanso, Bahia, 1972. 17 dias. Como se saísse de dentro das profundezas de um estado de hibernação, desta vez Rita está acordada. Perdida totalmente em relação ao tempo e onde estava exatamente. São muitos dias dentro de um buraco escuro, isolado deste mundo, que não a permitia crescer como os outros, ser normal como todas as crianças. — Mãe! — Grita a menina. Seu medo de estar sozinha sempre estava presente, afinal até que tudo se ponha no lugar o que se apresenta a ela é aquele momento, o momento em que desperta.— Meu Deus minha filha, você acordou finalmente.A mãe correu já com lágrimas nos olhos e abra&
A menina, de pele morena e cabelos encaracolados, saiu pela porta principal de sua casa. Seguia seu irmão, meio desorientada, pois se sentia deslocada depois de tantos dias fora de sintonia. Caminhava arrastando seus pés descalços até a varanda. Sentia o piso queimado avermelhado sob seus pés, daquele feito de concreto e argamassa, finalizado com uma boa mão habilidosa de nivelamento com a colher de um pedreiro. Algo barato, característico das casas de interior. Rita, com seus olhos escuros, pela primeira vez desde que acordou, via a luz do dia por completo. Seu quintal continuava o mesmo. As plantas estavam luminosas e refletiam a luz do sol. Tudo típico da estação mais quente do ano. Não gostava muito da temperatura abrasando sua pele. A fadiga era sempre presente nessa época quando a umidade estava presente em potencial na atmosfera e o suor grudado no corpo torna-se uma característica do t
Salvador, Bahia.— Senhora. Infelizmente as causas dessa síndrome em sua filha são desconhecidas. Há poucos casos no mundo e poucos estudos sobre ele. Sabemos que a maior parte das pessoas que apresentaram os sintomas são homens jovens, porém isso não é uma regra exata.— Seu doutor. — Respondeu Elizabeth aflita. — Eu quero uma cura pra minha filha. Já gasto o que não tenho vindo até a capital do estado e quando chego aqui vocês nunca tem uma resposta certa e uma solução do problema da minha pobre menina. Por favor, ajude ela. Ela está perdendo toda a juventude.Estavam sentadas em duas cadeiras de ferro desconfortáveis de um pequeno consultório que prestava serviços ao sistema de saúde público local. Conversavam com o pediatra de Rita, que a acompanhava desde seu primeiro episódio de longo sono. Ele e
Rita estava na beira de um grande rio cristalino e calmo. De inicio pensou estar às margens do grande São Francisco, que cortava sua cidade, todavia ao olhar em volta, não reconheceu nada. Correu nas areias e pisava as pequenas plantas mortas da restinga arenosa. Não importava o quão mais rápido corria, percebeu que sempre voltava para o local de sua partida. Â sua volta as árvores eram retorcidas e de aparência carbonosa. Como se estivessem secas e queimadas há muito tempo, mesmo ao lado do rio cristalino. Não eram muitas. O terreno era composto de pedras pontiagudas e pequenas, diferente daquelas comuns, de borda arredondada, de beiras de córregos e cursos d’água. Não havia animais naquela vasta paisagem. Mesmo no longínquo horizonte não se via uma única cabeça de gado, ou um único urubu sobrevoando
Tudo esteve tranquilo durante cerca de um ano na vida da menina do sono profundo. O episódio de longas noites não se repetia há algum tempo. As noites estavam sendo aparentemente mais tranquilas. Mas algo era de se notar. A mudança constante de comportamento da menina de cabeços encaracolados tornou-se um fato. Ela a cada dia que passava estava mais retraída e introvertida. Preferia o interior de sua casa ao calor do sol do mundo exterior. — Querida, você já comeu alguma coisa hoje? — Oi mãe. Não estou com fome. Obrigada. — Mas você precisa se alimentar meu bem. — Não quero! Eu já disse pra não me incomodar! Prefiro ficar quieta no meu qua