Minha mãe é a pessoa mais forte que já conheci. Ela sozinha tomou conta de mim, minha irmã e minha avó. Sempre trabalhou duro na casa de outras pessoas. Certa vez fui acompanha-la em um trabalho e quis ajuda-la em seu serviço, isso não foi muito fácil. A prática a levou a um nível de competência no que fazia que me espantava. Como uma mulher que pouco dormia, mal conseguia comer bem com o dinheiro que tinha, e pouco descansava, pois ainda chegava em casa e tinha que cuidar dos seus, fazia aquele trabalho duro e desgastante tão bem feito? Acredito que isso seja coisa de mãe. Mães nascem com um espírito diferente dos demais seres. Sua energia é distinta biologicamente ou seu espirito é evoluído e programado para cuidar, não sei explicar bem. Acredito que a natureza deu a aquela que gera um amor diferente dos outros, que trás a tona o interesse instintivo de proteger e conservar. É dessa forma que enxergo minha mãe, embora eu não consiga responder por que mesmo com esse espirito muitas mães não possuem esse intuito de cuidar.
Eu não conheci meu pai. Minha mãe conta que ele morreu quando eu era ainda um bebe de colo. Pouco ela fala sobre ele. Quando ele morreu o impacto de perder seu companheiro, e ter a responsabilidade de cuidar de uma família sozinha, transformou minha mãe. Certa vez conversando com minha avó soube como exatamente meu pai faleceu. Moramos em uma cidade muito violenta e isso se projeta a todos os bairros arredores do município. Durante a década que eu nasci a coisa era ainda mais feia do que os dias atuais. Uma cidade marginalizada e abandonada pelos que a governam criminosamente mal. Cada esquina guarda uma possível surpresa daquilo que é nocivo e que pode afetar traumaticamente e transformar a vida de qualquer pessoa em questão de segundos.
Conta minha avó que meu pai estava voltando do trabalho, como sempre em sua bicicleta. Diz ela que esse era um costume dele, o trabalho era próximo de casa. Ele trabalhava uma empresa de energia como técnico em elétrico, mas na verdade era um faz tudo dentro da empresa e que mesmo tendo esse trabalho fazia diversos outros serviços pra completar a renda de nossa família. No dia especifico de sua morte ele havia recebido seu pagamento, só que alguém sabia que ele estava com o dinheiro quando voltava pra casa e vigiava seus passos.
— Sua mãe sofreu muito, meu amor, quando tudo isso aconteceu. Ela ficou mais calada do que o de costume com o passar do tempo. Não gosta de conversar sobre esse assunto e de outros que acometeram certos traumas na vida dela. Peço que você também não toque nessa história de maneira alguma com ela.
— Não vou falar dessas coisas com ela vó, pode confiar em mim.
Fez silêncio, pensando na melhor forma de começar a contar os fatos daquela tragédia ao seu neto. Então começou a falar:
— Me lembro de estar na minha casa quase indo dormir quando recebi a notícia. Minha vizinha Iracema havia corrido até minha porta e me chamado, dizendo que urgentemente eu deveria ir à casa de Rita. Na hora meu coração apertou. Nunca ninguém ia lá em casa pela madrugada, ainda mais pedindo pra eu correr até a casa da minha filha. Imediatamente fiquei preocupada. Coloquei a primeira roupa decente que encontrei e corri ao encontro de vocês.
— Quem era essa vizinha?
— Ela não mora mais aqui no bairro. Foi embora pra terra natal dela em Fortaleza.
Parou de falar durante uns segundos. Acredito ter pensado na sua antiga amiga.
— Sabe quando você sente que algo não está bem naquele determinado dia? Aquela feita foi silenciosa desde quando acordei. Dias ruins são assim. Algo no nosso interior nos anuncia algumas coisas como se nos preparando para algo que virá a acontecer.
Fez silêncio novamente como se estivesse lembrando de tudo que acontecera naquele fatídico dia. Então continuou:
— Quando cheguei à casa da sua mãe ela estava inconsolável, perdida em seus pensamentos. Falava coisa com coisa. Desmaiou pelo menos umas duas vezes. Corri logo que cheguei pra abraça-la. Sua mãe já passou por tantas coisas e dificuldades na vida dela, principalmente quando era muito jovem, e hoje vejo minha filha ainda de pé e me orgulho da mulher que se tornou.
— Ela nunca conta as coisas da infância dela.
— Um dia te contarei das coisas mais importantes. De momento vou te contar a história do seu pai.
Pegou sua toalhinha, secou a testa, estava muito calor aquele dia, virou o ventilador pro seu rosto e recomeçou:
— Seu pai era um homem calmo. Gostava de trabalhar, mesmo o trabalho sendo pesado. Não existia naquela época a possibilidade de ficar escolhendo emprego, mas aparentemente estava feliz pela profissão e os bicos que tinha. As coisas estavam difíceis. A economia era muito desequilibrada. Parecia que trabalhávamos para comprar certa coisa e quando íamos ao mercado o preço já tinha mudado de um dia para o outro. Você já deve ter estudado isso na escola. Porém um pai de família precisa trabalhar pra sustentar sua família e o seu nunca fugiu disso. Sempre foi um homem responsável.
Eu prestava atenção em todos os detalhes da conversa. Há muito tempo quis saber o que havia acontecido. As coisas do passado, de quando não somos nascidos e que só podem ser conhecidas através de alguém que viveu naquele tempo, e quando o relato não é passado à frente o fato simplesmente parece deixar de existir.
— Como eu havia dito, em um determinado dia ele recebeu o pagamento da quinzena que tinha trabalhado, e algum conhecido, provavelmente, tinha o vigiado e perseguido seu pai até um beco perto de casa, eles sabiam que passaria por ali. O emboscaram e roubaram seu pagamento. Ele reagiu, não imagino ele fazendo isso, era um rapaz muito pacífico, mas não quis dar o fruto do esforço de quinze dias ou algo estranho o surpreendeu para entrar em luta corporal com quem fez o roubo. Quem o matou deu uma facada no pescoço e ele sangrou até morrer. Quem faria isso com um pai de família? Não houve tempo pra socorrê-lo. É triste pensar que um homem bom foi morto dessa maneira.
Abaixei minha cabeça. Hoje penso que não queria ter escutado essa história daquela maneira, mas insisti tanto que minha avó cedeu e me contou com alguns detalhes tudo que aconteceu.
— Você já tem idade pra entender certas coisas dessa vida Pedro. O mundo é mau, o ser humano é mau. Basta você vencer a maldade que também há dentro de si pra que ele se torne um pouco melhor. — Dizia ela.
E continuou:
— Coitada da minha filha. Não pude consola-la. Como poderia? O companheiro de dezesseis anos de uma hora pra outra nunca mais iria conversar com ela e nem deitar na cama para descansar ao seu lado.
Senti em seus olhos o pesar e a tristesa que aquela história também a trazia.
— Foi nessa época que a senhora veio morar conosco?
— Sim. Tudo ficou muito difícil depois que isso aconteceu. Sua mãe já havia perdido alguém muito importante para ela e para mim no passado. Foi um grande trauma quando perdemos essa pessoa, mas isso já havia ocorrido há muito tempo, as feridas já haviam cicatrizado. Todavia o que ocorreu com seu pai reabriu essa ferida pra ela. Eu a ajudava muito, vim morar com vocês, pois também me sentia sozinha, porém minha saúde começou a ficar ruim. Minha pressão não se controlava de jeito nenhum e por mais que eu tomasse meus remédios não dava pra evitar o que veio depois. Meu derrame acabou trazendo mais trabalho pra ela. O que era pra ser uma ajuda pra sua mãe se tornou uma ajuda pra mim. Hoje não consigo nem andar direito mais.
— Não diga isso vó. Minha mãe te ama, consigo ver nos olhos dela. Você é um apoio nessa casa.
— Eu sei que ela me ama, mas é complicado, principalmente quando nos tornamos apenas um fardo na vida de alguém.
— Não fale assim. — Coloquei minha mão sobre a dela. — A senhora nunca foi um fardo pra ninguém aqui em casa. Pelo contrário, sempre gostei da sua companhia e de conversar sobre as coisas que se lembra do passado de nossa família. Igual àquela vez que me contou como eu engoli uma moeda de um centavo. Sempre dou risadas quando me recordo dessa história. — Minha avó sorriu.
A presença da minha vó em meus dias e como ela era amorosa em nossas conversas me trouxe um sentimento de respeito a todas as pessoas que tinham mais idade. Sempre olhei com admiração pra quem era mais velho e experiente. Sempre tinham várias histórias de suas vidas prontas para serem contadas.
— Vó. Vou fazer um chá pra senhora. Sei que gosta de camomila bem forte.
— Sim meu filho. Agradeço.
Eu gostaria muito de ter conhecido meu pai. Tudo poderia ter sido diferente, ter ganhado mais presentes, ter minha mãe mais vezes dentro de casa. Poderia ter visto minha irmã mais feliz e menos introvertida. Sei que tudo poderia ter sido diferente, entretanto também sei que somos escravos do tempo e que a morte é rei nesse reino.
Enquanto fui preparar o chá para minha avó reparei que ela sorria e colocava sua cabeça no encosto do sofá já dormindo.
— Que a senhora tenha bons sonhos e esqueça um pouco do tumulto desse mundo vovó.
Estava magro, ao ponto de conseguir ver suas costelas sobressaindo sobre a parte lateral do tronco. Passou os dedos sobre a pele e sentia o relevo que o esqueleto fazia sobre todo seu lado direito e esquerdo. Parecia que estava sem comer há séculos, ou mesmo que era um viciado em drogas, como aqueles que vemos perambulando pelas ruas, embora não estivesse sujo, mas sentia sua pele áspera como se a beira de escamar. Notava uma coceira incômoda entre as juntas. Seus joelhos estavam enrugados, os tornozelos e pés irreconhecíveis. Quando subiu sua visão até a imagem do espelho percebeu que estava com os cabelos compridos, haviam crescido até a altura dos seus ombros. Pedro Ferreira Rodrigues tinha o cabelo liso, fino e ralo, quando ele crescia logo caia para os lados e se dividia ao meio naturalmente. Porém naquele momento o que se apresentava a sua
Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam? Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela. Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela. — Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma
Quando recobrou a consciência percebeu que havia ficado naquele lugar por horas. Tudo estava escuro. Sabia que tinha anoitecido. O ar estava frio e sentia coisas sinistras o observando por todos os lugares. Levantou-se e tentou se orientar pra saber onde exatamente estava. Descobriu que tinha dormido por horas numa rua próxima da sua casa. Nunca tinha feito algo do tipo. — Nossa que estranho. Sempre dormi na minha própria cama. Como pude dormir tanto tempo aqui? — Caminhou até a entrada da ruela e olhou em volta. Onde estava não havia seres vivos. — Onde estão todos? — Todavia percebeu que existiam sombras furtivas lhe observando curiosas, mas que mesmo olhando para ele de onde estavam não se aproximavam para incomoda-lo, apenas o vigiavam. Sentiu um peso sobre si, como uma g
Gosto de lembrar-me da rua onde cresci com a imagem dos meus amigos de infância jogando bola e brincando de pique pega, polícia e ladrão e de tudo o que podíamos inventar no dia. As ruas eram largas, o vento sempre chegava pra trazer um ar mais fresco e levava embora a fadiga do cansaço e o desgaste decorrente do tanto que usamos a energia que a juventude nos deu. Não havia muito movimento de pessoas e carros naquela região, nem havia muita preocupação com a presença de estranhos e tumultos comuns nos bairros adjacentes ao meu. Alguns bairros, vizinhos nosso, possuíam por características o comercio de massas. Onde moro é significativo o número de residências.Eram horas de corre pra cá, corre pra lá. Uma parada pra um lanche e assistir o programa da tarde no canal preferido junto de nosso principal colega e com um copo de achocolatado gelado na mão junto
A FendaUma grande mão magra, escaravelha, marcada pela pele como couro seco que cobria toda sua extensão, terminada por pontiagudas unhas escuras, duras como se a muito existente, mas agudas como fio de navalha, afiadas pelo tempo e pelo plano que a ela foi destinado, apareceu nos céus do Rio de Janeiro. Ninguém a viu e nem de que maneira surgiu no grande azul da atmosfera local, apenas estava lá, naquele determinado local e determinado tempo.Lá embaixo tudo gira como se tem ocorrido por milênios na normalidade terrena. Pessoas vão e voltam enquanto outras nunca mais retornam. Umas vivem, mas outras arrebatam a vida dos outros. Algumas sonham e diversas outras tem pesadelos. Em determinadas corredeiras passam águas, em outras rios de sangue. Umas são sãs, porém, em sua grande maioria, as pessoas encontram-se perdidas em seus próprios devaneios.
Remanso, Bahia, 1972. 17 dias. Como se saísse de dentro das profundezas de um estado de hibernação, desta vez Rita está acordada. Perdida totalmente em relação ao tempo e onde estava exatamente. São muitos dias dentro de um buraco escuro, isolado deste mundo, que não a permitia crescer como os outros, ser normal como todas as crianças. — Mãe! — Grita a menina. Seu medo de estar sozinha sempre estava presente, afinal até que tudo se ponha no lugar o que se apresenta a ela é aquele momento, o momento em que desperta.— Meu Deus minha filha, você acordou finalmente.A mãe correu já com lágrimas nos olhos e abra&
A menina, de pele morena e cabelos encaracolados, saiu pela porta principal de sua casa. Seguia seu irmão, meio desorientada, pois se sentia deslocada depois de tantos dias fora de sintonia. Caminhava arrastando seus pés descalços até a varanda. Sentia o piso queimado avermelhado sob seus pés, daquele feito de concreto e argamassa, finalizado com uma boa mão habilidosa de nivelamento com a colher de um pedreiro. Algo barato, característico das casas de interior. Rita, com seus olhos escuros, pela primeira vez desde que acordou, via a luz do dia por completo. Seu quintal continuava o mesmo. As plantas estavam luminosas e refletiam a luz do sol. Tudo típico da estação mais quente do ano. Não gostava muito da temperatura abrasando sua pele. A fadiga era sempre presente nessa época quando a umidade estava presente em potencial na atmosfera e o suor grudado no corpo torna-se uma característica do t
Salvador, Bahia.— Senhora. Infelizmente as causas dessa síndrome em sua filha são desconhecidas. Há poucos casos no mundo e poucos estudos sobre ele. Sabemos que a maior parte das pessoas que apresentaram os sintomas são homens jovens, porém isso não é uma regra exata.— Seu doutor. — Respondeu Elizabeth aflita. — Eu quero uma cura pra minha filha. Já gasto o que não tenho vindo até a capital do estado e quando chego aqui vocês nunca tem uma resposta certa e uma solução do problema da minha pobre menina. Por favor, ajude ela. Ela está perdendo toda a juventude.Estavam sentadas em duas cadeiras de ferro desconfortáveis de um pequeno consultório que prestava serviços ao sistema de saúde público local. Conversavam com o pediatra de Rita, que a acompanhava desde seu primeiro episódio de longo sono. Ele e