Essa noite pareceu longa para Pedro de uma forma que não conseguia explicar. O sono o pegou e lhe arrastou para um precipício muito fundo, íngreme e perpendicular, tornando cada vez maior sua queda, causando o continuo aprofundamento, diretamente ao mais fundo do seu próprio interior. Dormiu por tantas horas que pareciam infinitas. Não que isso seja incomum para ele, mas dessa vez foi diferente. É de se admirar que ainda esteja cansado, mesmo após todas as horas que permaneceu apagado. Um cansaço que seu corpo não permitia que conseguisse abrir os olhos para o nascer de um novo dia. O mundo tem tantos problemas difíceis de serem encarados que muitos fazem a escolha, por diversas vezes, de que é melhor fechar os olhos e não abri-los mais. Não há cortina mais expressa do que a membranas que tapam nossas janelas. Não há luz que penetre quando estamos dispostos a encarar a escuridão que existe dentro de nós. Uma sombra tão profunda, silenciosa e difícil de ser vencida.
Acordou assim, com o corpo ainda adormecido, dolorido e como se tivesse atrofiado cada musculo e junta de suas pernas e braços. O pescoço duro, com pontadas que indicavam a constante permanência em uma única posição por um longo período. Parecia combalido e abatido mesmo após uma noite que lhe pareceu eterna de sono. Não conseguia saber exatamente que horas tinha se entregando ao cansaço na noite anterior, embora tivesse certeza que não tinha sido há pouco tempo. Na realidade parece que dormira por um longo intervalo de dias, mas isso podia ser apenas uma sensação estranha que estava sentindo. Porém, assim mesmo, sentia-se exausto.
Estava confuso e desorientado. Não conseguia fazer outra coisa além de sentar em sua cama. Parecia estar prestes a dormir novamente, mas não deixou-se permitir a isso. Encontrava-se completamente suado, entretanto não sentia calor, pelo contrário, percebeu que o tempo lá fora aparentava estar nublado e chuvoso. Ouviu o som da chuva forte, os estalos dos grandes pingos nas lonas e telhas de amianto e alumínio comuns na estrutura das casas da vizinhança. Junto com os ventos assobiantes, que batiam na parede e na janela do seu quarto, pressentiu que as ruas estavam vazias, como é de costume em tempestades. Não havia o barulho de pessoas conversando na calçada, nem das donas de casa escutando a rádio enquanto faziam seus afazeres. Não escutou o som de crianças brincando na rua ou de carros que queriam passar enquanto duas garrafas impedem a passagem ao fazerem o papel de trave em um gol. Ainda que, como de costume, na maioria das vezes sua rua seja silenciosa. Era estranho não ouvir o que costumeiramente ouviria do lado de fora. Aquilo trouxe o sentimento de estranheza, sendo que entendia que todos sempre fogem daquilo que é tumultuoso, principalmente em um dia de chuva.
Vestia apenas um short curto de flanela que sempre usava para dormir e não usava camiseta. — Mas por que estou tão suado? — O quarto estava totalmente escuro, não conseguia quase nem ver a palma da sua própria mão. Os sentidos aos poucos estavam voltando como costumeiramente ocorria toda manhã. O olfato foi crescendo aos poucos até chegar em seu potencial e a cada segundo que se recolocava no lugar sentia o odor enfadonho de umidade, caracteristicamente de um lugar abafado e bolorento. Será esse é mesmo o quarto dele? Os músculos que antes sentia como atrofiados ganhavam um poder maior com a circulação local de sangue. As pupilas dilatavam-se em busca de claridade para entender o que estava a sua volta. Ainda assim, tudo encontrava-se estranhamente desconhecido.
Arrastou-se dificultosamente até a beira da cama. Colocou os pés no chão e percebeu o quanto o chão estava frio e sujo. Ao tocar o piso notou como se sentia fraco e desorientado. Tateou suas pernas e sentiu uma dor tomar conta dos músculos das coxas e panturrilhas. Um formigamento começara como se estivessem retornando de uma longa falta de fluxo sanguíneo naquela área. Tinha a sensação de dormência. — Há quanto tempo estou deitado? — Se esforçou e escorou-se na beira da cama, se equilibrou e caminhou dificultosamente até onde podia acender a luz. Apertou o botão, mas a lâmpada não acendeu, parecia estar queimada. Caminhou mais um pouco e jogou a manta que bloqueava toda a luz que vinha de fora pela janela. De súbito o clarão da luz externa o cegou. A suas pupilas ainda não dilatadas por completo agora o faziam necessário colocar os braços em sua defesa para proteger meus olhos. Segundos se passaram até que pudesse enxergar a rua com aquela claridade forte e opaca de um dia nublado. Todavia no momento quando tudo se fez claro à sua frente, e as janelas dos seus olhos se abriram, não pode acreditar no que via. Imediatamente caiu para trás sem entender o que estava acontecendo. — Onde eu estou? — Que mundo era aquele que acabara de ver e estava agora escondido novamente pela grossa manta que se estendia na extensão da janela à sua frente?
Sentado, girou seu corpo até encostar suas costas contra a parede. Imediatamente se esforçou uma vez mais para se levantar, mas não teve coragem de olhar novamente pela janela. Estava tentando entender as imagens que vinham de fora e refletiu que o céu não estava acinzentado como é costume de um dia tempestuoso, mas encontrava-se avermelhado, como se a chuva não fosse natural, como se uma nuvem não fosse formada pelo vapor de agua, porém de poeira espessa, um vermelho amarelado em suas bordas, típico da luz do final de tarde e inicio de noite. Assimilou que todo firmamento estava sangrando e cansado. Assim se estendendo por todo o longínquo horizonte. O mundo parecia estar morto.
Rastejando, se dirigiu para uma parte do seu quarto distante da janela, entretanto desviava seu olhar para o que vinha de fora. Virado para o outro lado e de olhos fechados ia lentamente se esgueirando, cautelosamente, para a outra direção da janeila e bateu com a cabeça na quina inferior de um espelho grande vertical, com base de madeira maciça, que possuía em pé próximo a parede oposta à fenestra. Apoiou-se no espelho, para poder se levantar, e aos poucos ganhou forças e ergueu seu corpo. Então abriu os olhos. Estava de frente ao espelho e dessa vez o impacto do que via foi maior do que quando abriu a janela, não conseguia acreditar. Ele estava acabado.
Minha mãe é a pessoa mais forte que já conheci. Ela sozinha tomou conta de mim, minha irmã e minha avó. Sempre trabalhou duro na casa de outras pessoas. Certa vez fui acompanha-la em um trabalho e quis ajuda-la em seu serviço, isso não foi muito fácil. A prática a levou a um nível de competência no que fazia que me espantava. Como uma mulher que pouco dormia, mal conseguia comer bem com o dinheiro que tinha, e pouco descansava, pois ainda chegava em casa e tinha que cuidar dos seus, fazia aquele trabalho duro e desgastante tão bem feito? Acredito que isso seja coisa de mãe. Mães nascem com um espírito diferente dos demais seres. Sua energia é distinta biologicamente ou seu espirito é evoluído e programado para cuidar, não sei explicar bem. Acredito que a natureza deu a aquela que gera um amor diferente dos outros, que trás a tona o
Estava magro, ao ponto de conseguir ver suas costelas sobressaindo sobre a parte lateral do tronco. Passou os dedos sobre a pele e sentia o relevo que o esqueleto fazia sobre todo seu lado direito e esquerdo. Parecia que estava sem comer há séculos, ou mesmo que era um viciado em drogas, como aqueles que vemos perambulando pelas ruas, embora não estivesse sujo, mas sentia sua pele áspera como se a beira de escamar. Notava uma coceira incômoda entre as juntas. Seus joelhos estavam enrugados, os tornozelos e pés irreconhecíveis. Quando subiu sua visão até a imagem do espelho percebeu que estava com os cabelos compridos, haviam crescido até a altura dos seus ombros. Pedro Ferreira Rodrigues tinha o cabelo liso, fino e ralo, quando ele crescia logo caia para os lados e se dividia ao meio naturalmente. Porém naquele momento o que se apresentava a sua
Não vou dizer que meu relacionamento com minha irmã era dos melhores. Afinal, somos irmãos. Conhecem irmãos que não brigam? Ela é dois anos mais velha do que eu. Sempre mais calada e na dela. Não gostava quando eu estava por perto e junto dos meus amigos, mas nunca mexeu comigo. Apenas gostava de mim do jeito dela. Diz minha avó que Clarice foi quem mais sofreu com a morte do meu pai após minha mãe. Mesmo quando era uma criança bem pequena ela era muito apegada a ele, e ele a ela. Faziam tudo juntos. Mesmo não possuindo muitas condições ele adorava trazer pequenos presentes pra ela. — Seu pai adorava a Clara. Era encantado pela pequena dele, como ele mesmo a chamava. Acredita que uma vez ele comprou uma
Quando recobrou a consciência percebeu que havia ficado naquele lugar por horas. Tudo estava escuro. Sabia que tinha anoitecido. O ar estava frio e sentia coisas sinistras o observando por todos os lugares. Levantou-se e tentou se orientar pra saber onde exatamente estava. Descobriu que tinha dormido por horas numa rua próxima da sua casa. Nunca tinha feito algo do tipo. — Nossa que estranho. Sempre dormi na minha própria cama. Como pude dormir tanto tempo aqui? — Caminhou até a entrada da ruela e olhou em volta. Onde estava não havia seres vivos. — Onde estão todos? — Todavia percebeu que existiam sombras furtivas lhe observando curiosas, mas que mesmo olhando para ele de onde estavam não se aproximavam para incomoda-lo, apenas o vigiavam. Sentiu um peso sobre si, como uma g
Gosto de lembrar-me da rua onde cresci com a imagem dos meus amigos de infância jogando bola e brincando de pique pega, polícia e ladrão e de tudo o que podíamos inventar no dia. As ruas eram largas, o vento sempre chegava pra trazer um ar mais fresco e levava embora a fadiga do cansaço e o desgaste decorrente do tanto que usamos a energia que a juventude nos deu. Não havia muito movimento de pessoas e carros naquela região, nem havia muita preocupação com a presença de estranhos e tumultos comuns nos bairros adjacentes ao meu. Alguns bairros, vizinhos nosso, possuíam por características o comercio de massas. Onde moro é significativo o número de residências.Eram horas de corre pra cá, corre pra lá. Uma parada pra um lanche e assistir o programa da tarde no canal preferido junto de nosso principal colega e com um copo de achocolatado gelado na mão junto
A FendaUma grande mão magra, escaravelha, marcada pela pele como couro seco que cobria toda sua extensão, terminada por pontiagudas unhas escuras, duras como se a muito existente, mas agudas como fio de navalha, afiadas pelo tempo e pelo plano que a ela foi destinado, apareceu nos céus do Rio de Janeiro. Ninguém a viu e nem de que maneira surgiu no grande azul da atmosfera local, apenas estava lá, naquele determinado local e determinado tempo.Lá embaixo tudo gira como se tem ocorrido por milênios na normalidade terrena. Pessoas vão e voltam enquanto outras nunca mais retornam. Umas vivem, mas outras arrebatam a vida dos outros. Algumas sonham e diversas outras tem pesadelos. Em determinadas corredeiras passam águas, em outras rios de sangue. Umas são sãs, porém, em sua grande maioria, as pessoas encontram-se perdidas em seus próprios devaneios.
Remanso, Bahia, 1972. 17 dias. Como se saísse de dentro das profundezas de um estado de hibernação, desta vez Rita está acordada. Perdida totalmente em relação ao tempo e onde estava exatamente. São muitos dias dentro de um buraco escuro, isolado deste mundo, que não a permitia crescer como os outros, ser normal como todas as crianças. — Mãe! — Grita a menina. Seu medo de estar sozinha sempre estava presente, afinal até que tudo se ponha no lugar o que se apresenta a ela é aquele momento, o momento em que desperta.— Meu Deus minha filha, você acordou finalmente.A mãe correu já com lágrimas nos olhos e abra&
A menina, de pele morena e cabelos encaracolados, saiu pela porta principal de sua casa. Seguia seu irmão, meio desorientada, pois se sentia deslocada depois de tantos dias fora de sintonia. Caminhava arrastando seus pés descalços até a varanda. Sentia o piso queimado avermelhado sob seus pés, daquele feito de concreto e argamassa, finalizado com uma boa mão habilidosa de nivelamento com a colher de um pedreiro. Algo barato, característico das casas de interior. Rita, com seus olhos escuros, pela primeira vez desde que acordou, via a luz do dia por completo. Seu quintal continuava o mesmo. As plantas estavam luminosas e refletiam a luz do sol. Tudo típico da estação mais quente do ano. Não gostava muito da temperatura abrasando sua pele. A fadiga era sempre presente nessa época quando a umidade estava presente em potencial na atmosfera e o suor grudado no corpo torna-se uma característica do t