Eu estava no telhado de um prédio amarelo ocre de três andares ao lado de Ansur e a senti chegar. Sentou-se ao meu lado e eu a abracei. Um vazio opressor tomava meu peito sempre que ela estava longe. Eu era completamente dependente da sensação de tê-la junto a mim.
Ouvi um ronco conhecido vindo de longe e aproximando-se rápido. Olhei para a estrada e vi a moto amarela passando velozmente, indo em direção ao centro da cidade. Eu ri.
— Como pode alguém que sabe levitar, aparecer onde quer na hora que quer, ficar tão apaixonada por uma moto quanto eu? — Krica disse sorrindo.
— Elas sabem que não podem ficar gastando energia para ir à cidade.
Eanes e Iana finalmente se entenderam. Não eram melhores amigas ainda, mas era um começo. Eu não podia dizer o mesmo em relação a
Eu estava sentada no banco ao lado da porta do diretor aguardando. Minha velha mochila jogada diante dos meus pés era uma afronta à perfeição do corredor imaculado. O piso, apesar de ser de vinil pisoteado através dos anos, brilhava refletindo as luzes das lâmpadas fluorescentes. O cheiro do desinfetante usado na limpeza me fazia lembrar um hospital. Eu não combinava com essa escola. Mas as minhas opções haviam acabado após ter sido expulsa de praticamente todas as escolas da cidade. Porém, para minha desculpa, não havia tantas escolas assim em Belo Dourado. Morava em uma cidade pequena. Pequena o bastante para conhecer a maior parte dos habitantes. Foi na cidade de Belo Dourado que nasci, cresci e vi minha mãe morrer atropelada por nosso vizinho bêbado. Eu acabara de fazer quatorze anos. Não suportei acompanhar o carro fúnebre que seguia em marcha lenta, levand
Era o fim da tarde de uma quinta feira. Olhei para trás e vi o céu tingindo-se de um laranja escuro. Eu adorava essa hora. O sol havia acabado de sumir atrás de nós. O crepúsculo jogando a longa sombra da mansão e das árvores que a circundavam pelo vasto gramado. Fechei os olhos, inspirei e absorvi o cheiro da brisa fria que começava junto com a escuridão, trazendo os aromas da floresta. Nosso ritual precisava da noite. Ainda não sabíamos o porquê. Havia muitas coisas que não sabíamos e minha maior responsabilidade era manter o vale seguro. Mesmo que significasse ficar tateando às cegas a procura de respostas. Nasci para defender e proteger os humanos de forças que nem eles mesmos conhecem. Levando sua vida na total ignorância, nem imaginam os perigos pelos quais passam e são salvos por mim ou por outros como eu. Não h&aa
Eu não me sentia muito bem. Uma dor de cabeça estranha estava se formando. E já era o quarto dia que ela chegava, pouco antes de escurecer. Subi pelas escadas ignorando se a velha rabugenta iria espiar pelo olho mágico de sua porta. Entrar pela janela requeria um pouco mais de esforço do que sair e não estava com saco pra isso. Meu pai ainda não havia voltado para casa. Entrei no banho pretendendo demorar o quanto fosse possível deixando a água quente cair em minha cabeça para amenizar a dor. Mal me molhei e meu pai bateu na porta do banheiro. — Krica, não demore. Preciso conversar com você seriamente. Ignorando, fiquei embaixo da água até meus dedos ficarem murchos. Vesti meu pijama e fui sentar ao lado do meu pai no sofá de tecido grosso marrom desbotado. A velha tv de tubo sobre a pequena estante exibia um comercial de
Ainda estava escuro quando voltamos para casa. Não precisávamos de mais de uma hora de sono para descansar. Quando a luz amarelada entrou pela janela do meu quarto eu já estava de pé. Tomei um banho frio, vesti meu jeans, uma camisa de malha preta e uma jaqueta de couro também preta. Calcei o coturno e desci para cozinha. Os outros ainda não haviam descido. Tomei meu café da manhã sozinho no silêncio que parecia encher todos os enormes cômodos da mansão. Saí fechando a porta suavemente para não acordar os gêmeos e desci a colina em direção ao leste. Queria ver o sol subindo, cobrindo o Vale da Morte com sua luz. Cruzei a estrada asfaltada e segui pelo gramado até o pequeno e frágil muro que dava uma falsa sensação de segurança aos que vinham ali apreciar a vista. A mil e duzentos metros abaixo, no pé de um precipíc
Entrei em casa sem fazer barulho torcendo para que meu pai não tivesse ido ao meu quarto olhar como eu estava. Aparentemente estava tudo normal. Troquei de roupa colocando o pijama e me enfiei debaixo da coberta. Estava cansada e logo adormeci. Acordei pouco depois ouvindo meu pai bater na porta e chamar meu nome. — Krica, levante-se. Vai se atrasar para escola. Rolei na cama. Ainda estava com sono. — Que se dane. Não vou levantar. Não preciso mais ir naquela porcaria de escola. Cobri a cabeça com a coberta e fiquei parada ouvindo se ele bateria na porta outra vez. Não bateu. Levantei-me por volta de onze horas, ainda meio zonza. Fiz um café com leite e mergulhei um monte de biscoito maisena dentro. Comi a mistura em frente à TV ligada. Depois, fui me arrastando para o quarto, trocar de roupa. Eu iria procurar D. Glória para
Precisei descansar ao chegar na mansão e por alguma razão não conseguia tirar da cabeça a estranha sensação que a presença da garota me causara. À tarde voltamos para porta da escola esperar que os alunos saíssem para tentar pegar mais alguma conversa. Era sexta feira e no fim de semana o único momento em que todos se reuniam era no templo do pastor Jonas. Onde provavelmente não conseguiríamos pegar nenhuma conversa que nos ajudasse. E agora, na escola, também não havia nada em particular que nos desse mais pistas. Fiquei observando Eanes. Ela era a melhor informante de todas. Estava ligada ao mal como nenhum outro habitante do vale jamais estaria. Só não tínhamos certeza se ela sabia disso. Assim que cheguei ao vale, os irmãos Ruschel já sabiam de algumas coisas. Seu pai lhes deixara instruções. A carta fora escrita à
Pela primeira vez em não sei quantos anos, meu pai não foi trabalhar. Ficou o dia todo andando pela casa. Isso estava começando a me dar nos nervos. — Pai? — Eu também começava a ficar ansiosa. Estava com tudo pronto. — Que horas eles vêm? — Seu tio disse que chega por volta das seis horas. Sentei no sofá e liguei a TV. Eram cinco horas. Eu havia passado cedo na casa da Sara para me despedir. Somente ela sabia que eu estava indo embora. Já era bem difícil chorar abraçada à sua melhor amiga. Não queria nem imaginar a procissão que iria se formar se todos os outros soubessem. Finalmente a campainha tocou. Pulei do sofá passando a frente de meu pai que se dirigia para a porta. Ao abri-la, fiquei observando aquelas duas figuras paradas à minha frente. Meu pai chegou por
O sábado passou vagaroso como todo o tempo no Vale. Fiquei no mirante observando o sol iluminando o Vale da Morte. Isadora passou voando baixo, mas não pousou por perto. Pensei na garota da mercearia. Não vi seu rosto, nem mesmo sei em que cidade fui parar. Sabia que não era longe, pois não teria poder suficiente para isso. Quando desapareci do Vale, apenas imaginei um lugar onde pudesse ir com a energia que ainda possuía e onde pudesse comprar alguns mantimentos sem chamar atenção. Eu poderia imaginar esse local novamente. Queria voltar e procurá-la. Sacudi a cabeça. — O que eu estou pensando? Eu sou um viajante. Não posso simplesmente sair atrás de uma garota que nunca vi. Não! Preciso pensar na segurança de todos no vale. Preciso pensar na segurança do mundo. De todos os humanos. Se Jonas escapar irá conseguir uma forma de destruir