Precisei descansar ao chegar na mansão e por alguma razão não conseguia tirar da cabeça a estranha sensação que a presença da garota me causara. À tarde voltamos para porta da escola esperar que os alunos saíssem para tentar pegar mais alguma conversa. Era sexta feira e no fim de semana o único momento em que todos se reuniam era no templo do pastor Jonas. Onde provavelmente não conseguiríamos pegar nenhuma conversa que nos ajudasse. E agora, na escola, também não havia nada em particular que nos desse mais pistas. Fiquei observando Eanes. Ela era a melhor informante de todas. Estava ligada ao mal como nenhum outro habitante do vale jamais estaria. Só não tínhamos certeza se ela sabia disso. Assim que cheguei ao vale, os irmãos Ruschel já sabiam de algumas coisas. Seu pai lhes deixara instruções. A carta fora escrita às pressas enquanto se preparava para derrotar o maior inimigo que um viajante e, principalmente, que os ignorantes humanos poderiam ter. Um viajante corrompido. O falso pastor Jonas. Não poderíamos simplesmente atacar Jonas. Apesar de seu poder ser limitado, o nosso também era. Seríamos facilmente derrotados, assim como o Sr. Ruschel foi. Precisávamos de uma magia muito maior. Por isso o Sr. Ruschel invocou três viajantes. O primeiro era seu filho Ansur. Ele havia acabado de nascer quando seu pai instalou-se no Vale para destruir Jonas. O segundo, por azar do meu destino, fui eu. E estávamos esperando o terceiro. Não sabíamos qual o padrão fora usado por ele para a escolha. Ansur nunca saiu do vale, então tinha a mesma cultura que uma criança. Eu mesmo ensinei a ele e a Iana várias coisas que aprendi enquanto vaguei pelo mundo, e não era muito. E eu não tinha nada a ver com ninguém ali. Nenhuma razão aparente para eu ter sido chamado.
Eanes estava entrando no ônibus escolar com uma amiga. Consegui escutar parte da conversa.
“Meu pai disse que ela será a quingentésima habitante do vale.”
“Palavra difícil”
“Quer dizer que teremos exatamente quinhentos habitantes no vale...”
Ela ainda falava da nova moradora do Vale das Sumaúmas. Não havia nada em particular que despertasse interesse. Nada que pudesse indicar que essa garota fosse especial de alguma forma.
— Vamos subir a colina. Daqui a pouco o sol irá se pôr — falei olhando para Ansur e Iana que pareciam distraídos.
Caminhamos em direção à mansão com a mesma claridade alaranjada de sempre.
Pela primeira vez em não sei quantos anos, meu pai não foi trabalhar. Ficou o dia todo andando pela casa. Isso estava começando a me dar nos nervos. — Pai? — Eu também começava a ficar ansiosa. Estava com tudo pronto. — Que horas eles vêm? — Seu tio disse que chega por volta das seis horas. Sentei no sofá e liguei a TV. Eram cinco horas. Eu havia passado cedo na casa da Sara para me despedir. Somente ela sabia que eu estava indo embora. Já era bem difícil chorar abraçada à sua melhor amiga. Não queria nem imaginar a procissão que iria se formar se todos os outros soubessem. Finalmente a campainha tocou. Pulei do sofá passando a frente de meu pai que se dirigia para a porta. Ao abri-la, fiquei observando aquelas duas figuras paradas à minha frente. Meu pai chegou por
O sábado passou vagaroso como todo o tempo no Vale. Fiquei no mirante observando o sol iluminando o Vale da Morte. Isadora passou voando baixo, mas não pousou por perto. Pensei na garota da mercearia. Não vi seu rosto, nem mesmo sei em que cidade fui parar. Sabia que não era longe, pois não teria poder suficiente para isso. Quando desapareci do Vale, apenas imaginei um lugar onde pudesse ir com a energia que ainda possuía e onde pudesse comprar alguns mantimentos sem chamar atenção. Eu poderia imaginar esse local novamente. Queria voltar e procurá-la. Sacudi a cabeça. — O que eu estou pensando? Eu sou um viajante. Não posso simplesmente sair atrás de uma garota que nunca vi. Não! Preciso pensar na segurança de todos no vale. Preciso pensar na segurança do mundo. De todos os humanos. Se Jonas escapar irá conseguir uma forma de destruir
Desci para almoçar. Tio Fernando e Be já estavam sentados à mesa e tia Odete entrava na sala de jantar carregando uma travessa com salada. — Sente-se, querida — ela disse puxando uma cadeira para mim, e sentou-se ao lado do tio Fernando. Enchi um prato e reparei que eles me observavam de rabo de olho. O prato deles era um terço do meu. Que se dane. Eu estava com fome. Com muita fome. Então dei um sorrisinho e coloquei mais purê. Tia Odete sorriu de volta e disse: — Depois do almoço vou ajudar a arrumar suas coisas e mais tarde vamos ao culto. Engasguei e quase cuspi o purê na cara do meu primo que estava sentado em frente a mim. Culto? Ela só podia estar brincando. — Tia, eu não vou a culto nenhum. Eu nem vou à igreja apesar de ser católica. Tô fora.&nbs
Após almoçarmos fomos para escola e ficamos encostados na parede próximos à porta como sempre fazíamos. Os micro-ônibus iam chegando e enfileirando-se, trazendo os cento e setenta e nove estudantes. Uma pequena aglomeração formou-se à porta de um dos ônibus. Apurei meus ouvidos. “Bem vinda. Meu nome é Eanes. Se precisar de alguma coisa, pode me procurar.” “Ok. Obrigada.” “Be, vamos entrar logo?” “Como é seu nome? O meu é Bia. Seja bem vinda” “Tá Bia, Obrigada. Meu nome é Krica” “Be, por favor me tira do meio desse povo!” A novata. Pelo que me pareceu estava irritada. Logo Bernardo passou o braço em seu ombro e a conduziu para a porta da escola. Ent&atild
Depois de uma estreia desesperadora na escola, voltamos para casa naquele ridículo ônibus escolar. Eu queria ter ido de moto, mas com o monte de desculpas esfarrapadas que recebi, resolvi ir logo com Be para não causar problemas nos meus primeiros dias. E agora, queria que fosse o último. Além de todo mundo se vestir como se estivesse indo para uma reunião de nerds dos anos sessenta, não havia vida social. Be disse que não havia lanchonete, pizzaria, cinema, ou mesmo internet. Até porque essa última seria inútil, não havia computador e nem TV em nenhuma casa. Depois do pôr do sol, todos ficavam em suas casas. As mulheres cozinhavam ou faziam tricô com a ajuda das filhas. Os homens colocavam óleo nas dobradiças que estavam rangendo, retocavam a pintura de algo ou simplesmente ficavam sentados na sala conversando sobre o sermão do pastor Jonas. Era surreal.
Sentei-me no muro com as pernas penduradas para o precipício sentindo a calma de uma nova manhã no Vale da Morte. Ouvi um ronco vindo de longe. Virei-me para a estrada e esperei. Uma moto amarela passou correndo. Eu ri. A mesma moto que infernizou os habitantes do Vale há um ano. O pastor Jonas realmente iria ter trabalho com essa aí. Ouvi o motor diminuir a rotação e então acelerar. Ela estava voltando. Começou a diminuir quando chegou perto. Fez a curva e saiu da estrada passando pela grama em direção a mim. Pulei do muro e fui deter a garota antes que fizesse alguma besteira. Ela parou. — Ei! Cuidado com o gramado. Fica sempre úmido e pode derrapar. Não vai querer ir direto naquela direção. — Apontei para o Vale da Morte. — Não me importo. To mesmo querendo umas alternativas pro suicídio.&nbs
Ouvi uma voz bem próxima. Dei um resmungo e virei de lado. Eu havia dormido muito pouco. — Maria Cristina. Acorde, querida. O café está na mesa esperando por você. Maria Cristina, venha, eu ajudo você a se levantar. Tia Odete segurou meu braço tentando me levantar da cama. Não saí do lugar. Então me lembrei do barulho na madrugada e resmungando com a boca colada no travesseiro perguntei à tia Odete. — O que era aquele barulho infernal essa noite? — São aqueles rapazes. Gostam de nos perturbar. São pessoas do mal. Nunca se aproxime deles, Maria Cristina. Eles são realmente do mal. Virei-me de barriga pra cima, os olhos bem abertos. — O que eles fizeram pra vocês dizerem que são do mal? — Ah, é uma
Depois de almoçarmos descemos a colina. Vi a moto amarela passando na estrada. — Parece que a rebelde vai matar aula hoje. — Iana comentou rindo. Estávamos seguindo para o mirante do Vale da Morte. Ouvi o ronco da moto voltando a toda velocidade e vi algo que fez meu coração gelar. Uma moto amarela saindo da curva, indo direto para a grama úmida, derrapando, caindo de lado, batendo no muro e arremessando um corpo para o precipício. Desapareci no mesmo instante que ela sumiu de vista por sobre o muro. Reapareci no ar a uns quatrocentos metros abaixo e segurei o corpo que caía. Flutuei devagar tomando cuidado com ela. Estava desacordada. Havia sangue escorrendo de sua cabeça. Enquanto subíamos, ela abriu ligeiramente os olhos e voltou a desmaiar. Iana e Ansur estavam parados próximo ao muro. Pousei lentamente ao