Pela primeira vez em não sei quantos anos, meu pai não foi trabalhar. Ficou o dia todo andando pela casa. Isso estava começando a me dar nos nervos.
— Pai? — Eu também começava a ficar ansiosa. Estava com tudo pronto. — Que horas eles vêm?
— Seu tio disse que chega por volta das seis horas.
Sentei no sofá e liguei a TV. Eram cinco horas. Eu havia passado cedo na casa da Sara para me despedir. Somente ela sabia que eu estava indo embora. Já era bem difícil chorar abraçada à sua melhor amiga. Não queria nem imaginar a procissão que iria se formar se todos os outros soubessem.
Finalmente a campainha tocou. Pulei do sofá passando a frente de meu pai que se dirigia para a porta. Ao abri-la, fiquei observando aquelas duas figuras paradas à minha frente. Meu pai chegou por trás de mim e com a voz calorosa convidou os dois para entrar. Meu pai e meu tio se abraçaram demoradamente. Enquanto isso, Be e eu nos olhávamos como dois desconhecidos esperando para serem apresentados. Fui em sua direção.
— Oi Be. — Dei-lhe um beijo no rosto. Os dois meio sem jeito.
— Oi Maria Cristina. Quanto tempo, não é mesmo?
Ele não me chamou de Krica. Não era meu primo. Aquele era um ser alienígena enfiado em uma calça de pregas, cinza clara, com o vinco perfeitamente marcado, usando uma camisa branca de botões e mangas compridas perfeitamente passada e um lustroso sapato marrom de couro. O cabelo rebelde e desfiado não estava ali. No lugar dele havia um topete loiro, liso, brilhante e puxado para trás, sem nenhum fio fora de lugar. Os olhos azuis herdados de minha tia não tinham mais o mesmo brilho e o sorriso malicioso de quem só pensava em aprontar também sumira. Nós nos parecíamos fisicamente, ele carregava a mesma fisionomia falsamente arrogante dos Siqueira. Mas agora, vestido daquela forma, mostrava alguém arrogante de verdade. Meu tio veio me cumprimentar. Tinha a mesma aparência certinha de Be. Nada das calças jeans largadas e surradas que usava. Por um momento pensei em correr dali. Depois pensei melhor e deduzi que estavam vestidos assim porque não estavam passeando. Estavam a trabalho para o prefeito de Vale das Sumaúmas.
Meu pai apontou o sofá convidando-os a ficar à vontade.
— Na verdade, não temos muito tempo. Precisamos chegar ao vale amanhã, ainda de dia. Olhei para meu tio surpresa.
— Amanhã? Onde fica o vale?
Tio Fernando deu um sorrisinho forçado.
— Não é tão longe querida. Mas estamos em um pequeno caminhão carregado e isso atrasa um pouco nossa chegada.
— Ah. — Abri a boca só para dizer isso. Estava um pouco confusa. Havia formalidade demais neles e no jeito como falavam. Nem pareciam meus parentes queridos com quem, há apenas um ano, eu passava a maior parte do tempo.
Eles me ajudaram a colocar as caixas no caminhão. Eu estava levando minhas roupas, minha coleção de livros e algumas coisas que fui tirando do quarto e jogando em algumas caixas, como o capacete que nunca usei. Quando saí da garagem empurrando minha moto, eles olharam para mim com cara de espanto.
— Não vou sem ela. — Parei e fiquei encarando os três, de cara fechada.
— Krica, deixe a moto aqui. — Meu pai disse tentando impor alguma seriedade no que falava.
— Não. — Meu tio veio andando em direção a mim abanando as mãos. — Está tudo bem. Ela pode levar a moto.
Meu pai olhou incrédulo para ele. Vi quando meu tio deu uma piscadela, foi para o lado de meu pai e cochichou algo. Ele achava que eu era boba. Sabia que estava fazendo isso porque depois iria me convencer a trazer a moto de volta. Assim como fez com o Be. Mas estava enganado. Eu não iria ficar sem ela. Então deixei que me achasse boba. Levaram um tempinho reorganizando a carga para a moto caber no caminhão e quando foram suspendê-la, meu pai, com um mal jeito, a tombou de lado quase carregando Bê e tio Fernando junto. Alguém surgiu de repente para ajudar. Um rapaz. Quando a confusão terminou e conseguiram se reorganizar, vi que era Henrique.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei com um pouco de raiva.
— Soube que está indo embora.
— você sempre sabe demais da minha vida.
— Eu presto atenção em você, Krica. Eu gosto de você e sabe disso. Não queria que fosse embora.
Tio Fernando se aproximou.
— Precisamos ir, Maria Cristina.
Henrique olhou para meu tio com um olhar estranho, parecia dizer para que não se aproximasse, pegou-me pelo cotovelo e me afastou de todos.
— Me solta! — Puxei o braço, desvencilhando-me.
— Krica, pode considerar não ir? — Ele disse baixinho como um pedido preocupado.
— Não tenho alternativa. Ou vou com eles, ou vou para Monsenhor Josué.
— Até parece que você faz tudo o que mandam. Eu tiro você daqui se quiser.
— Henrique, ache outra para infernizar.
— Você se parece tanto com sua mãe. — Ele pegou uma mecha do meu cabelo entre os dedos e ficou observando, pensativo.
— Eu me pareço com meu pai.
— Não estou falando que se parece fisicamente.
— E de onde você tirou isso? Você fala umas coisas nada a ver. Nem conhecia minha mãe — falei enquanto tirava sua mão do meu cabelo e seguia em direção ao meu pai para me despedir.
Meu pai me abraçou meio de lado e deu um beijo em minha testa.
— Tchau, pai. Se cuida.
— Tchau Krica. Comporte-se.
Olhei para trás e constatei que Henrique não estava mais lá.
Havia uma cama estreita na cabine do caminhão por trás dos bancos. Sentei com as pernas cruzadas em cima e fiquei observando a estrada escura a nossa frente. Estava um silêncio estranho. Havia muita coisa que gostaria de saber. Muitas perguntas se formavam em minha mente, mas eu não dizia nada. Imaginei que estava acontecendo o mesmo com eles. A distância separou também nossa intimidade. Tio Fernando e Be iriam revezar na direção. Resolvi que dormir seria melhor. A mim pareceu que apaguei por apenas alguns minutos, mas ao abrir os olhos a fraca claridade do amanhecer começava a tomar conta do céu. Olhei através do para brisa e a única coisa que vi foi uma longa estrada à frente ladeada por nada mais do que terra seca. Nenhuma casa, nenhum ser humano, nada.
— Onde nós estamos? Isso aqui parece o fim do mundo. Não tem nada!
Bê olhou para trás. E não gostei do que vi. No lugar do meu Bê sorridente e descontraído estava um rosto sério.
— Esse é o Vale da Morte. Um pequeno deserto por onde precisamos passar para chegar ao Vale das Sumaúmas.
— Deserto? Então não tem nada mesmo nessa porcaria? — Ah caramba! Não ia passar o resto da viagem olhando pro nada. Nem ouvi o que Bê respondeu depois. Encolhi-me na cama de novo e voltei a dormir.
Acordei com uma claridade forte em meus olhos. Pela posição do sol concluí que passava um pouco do meio dia. Estávamos seguindo por uma estradinha de terra cercada de muitas árvores, estreita e que subia em curvas fechadas.
— Ainda não chegamos?
— Estamos acabando de subir a serra para o Vale das Sumaúmas. — Meu primo olhou para trás com um sorriso. Fiquei feliz que finalmente vi em seu rosto um traço do meu Be.
— O que é sumaúma? — perguntei curiosa por nunca ter escutado essa palavra antes deles terem se mudado.
Ele apontou para frente e assim que o caminhão fez a curva minha boca se abriu. Uma árvore gigantesca estava plantada bem no meio da estrada. Seu tronco era muito largo e havia um túnel por onde a estrada seguia.
— Caramba!
— Isso é uma sumaúma. — Meu primo disse enquanto passávamos por dentro do buraco do tronco e eu acompanhava girando a cabeça e com a boca ainda aberta.
A árvore devia ter o tamanho de um prédio de uns vinte andares. E para abraçar o tronco seriam necessárias pelo menos umas trinta pessoas em roda. As enormes raízes se projetavam do solo acompanhando o tronco, formando quinas que pareciam muito com os suportes da minha árvore de Natal.
— As raízes são chamadas de sapopembas e dizem que os frutos dão uma espécie de fibra que era comercializada pelo dono da região há mais de duzentos anos. Eu nunca vi. Dizem que parou de dar frutos após a chegada de uma família que tomou a casa. Mas isso não é história para agora — tio Fernando explicou.
Continuamos pela estradinha e depois de uns dez minutos comecei a ver algumas sumaúmas em meio às raquíticas árvores que compunham a floresta. Aos poucos as sumaúmas iam aparecendo mais próximas uma das outras e as árvores menores iam rareando. Uma faixa de grama começou a aparecer nas margens da estrada alargando-se e afastando a estrada da floresta. Começaram a aparecer também casinhas que pareciam casas de boneca em maior escala. Pintadas com cores pastel e branco, varandas com balanço, flores coloridas nos pequenos jardins. Pequenos arbustos em fila separavam uma casa da outra. Ainda não havia conseguido fechar a boca. Era tudo lindo demais. Mas era tudo tão... Eca!
— Vou deixar vocês em casa e depois levarei o caminhão para o pastor Jonas.
Meu tio parou o caminhão em frente a uma das casinhas. Era azul clara, com dois andares. Um caminho de pedras regulares levava à entrada da varanda rodeada pela cerca branca. Tia Odete apareceu na porta. Mais um alienígena.
— Maria Cristina! Que bom que veio.
Ela seguiu pelo caminho de pedra em nossa direção. O cabelo loiro amarrado em um coque, um vestido comprido de corte reto e com estampa de flores miúdas. Passou um braço por meu ombro virando-se em direção a casa e me deu um beijo na bochecha. A casa era simples por dentro, mas impecavelmente limpa e organizada. Eu suspirei. Não ia me adaptar àquilo. Ela me levou para o andar de cima.
— Assim que soube que viria pedi ajuda para transformar o escritório de seu tio em um quarto para você.
Quando tia Odete abriu a porta do quarto eu quase vomitei. As paredes eram de um rosa suave com florezinhas estampadas em um tom de rosa pouca coisa mais escuro. Uma colcha rosa de rendinhas brancas cobria a cama com alguns bichos de pelúcia meticulosamente arrumados sobre ela. Um armário de duas portas, uma escrivaninha e uma cômoda cheia de mais bichos de pelúcia completava os móveis do quarto. Uma cortina branca e fina pendia do teto ao chão. Olhei desesperada para aquele quarto.
— Sei que é pequeno, mas fizemos o melhor que pudemos para acomodá-la bem.
Acho que minha tia viu meu rosto retorcido em uma careta.
— Não, tia. Tá perfeito — menti com sacrifício. — Meu quarto era metade disso, lembra?
— Vou deixar você à vontade. Talvez queira tomar um banho antes de almoçar. — Ela levou uma mão à minha bochecha e com a outra acariciou meu cabelo. — E amanhã poderá ir à escola.
Ah, que inferno. Isso estava ficando pior do que eu pensava. Como assim escola? Eu havia acabado de chegar.
— Escola?
— Não se preocupe, querida. Hoje você apenas vai descansar. Bernardo trabalha na secretaria e será um ótimo guia.
Nesse momento Bernardo e tio Fernando entraram com minhas caixas e depois saíram. Apenas balancei a cabeça concordando. Tia Odete também saiu do quarto. Fechei a porta e fiquei parada olhando em volta.
— Merda! O quê é que eu to fazendo aqui na casa da Barbie?
O sábado passou vagaroso como todo o tempo no Vale. Fiquei no mirante observando o sol iluminando o Vale da Morte. Isadora passou voando baixo, mas não pousou por perto. Pensei na garota da mercearia. Não vi seu rosto, nem mesmo sei em que cidade fui parar. Sabia que não era longe, pois não teria poder suficiente para isso. Quando desapareci do Vale, apenas imaginei um lugar onde pudesse ir com a energia que ainda possuía e onde pudesse comprar alguns mantimentos sem chamar atenção. Eu poderia imaginar esse local novamente. Queria voltar e procurá-la. Sacudi a cabeça. — O que eu estou pensando? Eu sou um viajante. Não posso simplesmente sair atrás de uma garota que nunca vi. Não! Preciso pensar na segurança de todos no vale. Preciso pensar na segurança do mundo. De todos os humanos. Se Jonas escapar irá conseguir uma forma de destruir
Desci para almoçar. Tio Fernando e Be já estavam sentados à mesa e tia Odete entrava na sala de jantar carregando uma travessa com salada. — Sente-se, querida — ela disse puxando uma cadeira para mim, e sentou-se ao lado do tio Fernando. Enchi um prato e reparei que eles me observavam de rabo de olho. O prato deles era um terço do meu. Que se dane. Eu estava com fome. Com muita fome. Então dei um sorrisinho e coloquei mais purê. Tia Odete sorriu de volta e disse: — Depois do almoço vou ajudar a arrumar suas coisas e mais tarde vamos ao culto. Engasguei e quase cuspi o purê na cara do meu primo que estava sentado em frente a mim. Culto? Ela só podia estar brincando. — Tia, eu não vou a culto nenhum. Eu nem vou à igreja apesar de ser católica. Tô fora.&nbs
Após almoçarmos fomos para escola e ficamos encostados na parede próximos à porta como sempre fazíamos. Os micro-ônibus iam chegando e enfileirando-se, trazendo os cento e setenta e nove estudantes. Uma pequena aglomeração formou-se à porta de um dos ônibus. Apurei meus ouvidos. “Bem vinda. Meu nome é Eanes. Se precisar de alguma coisa, pode me procurar.” “Ok. Obrigada.” “Be, vamos entrar logo?” “Como é seu nome? O meu é Bia. Seja bem vinda” “Tá Bia, Obrigada. Meu nome é Krica” “Be, por favor me tira do meio desse povo!” A novata. Pelo que me pareceu estava irritada. Logo Bernardo passou o braço em seu ombro e a conduziu para a porta da escola. Ent&atild
Depois de uma estreia desesperadora na escola, voltamos para casa naquele ridículo ônibus escolar. Eu queria ter ido de moto, mas com o monte de desculpas esfarrapadas que recebi, resolvi ir logo com Be para não causar problemas nos meus primeiros dias. E agora, queria que fosse o último. Além de todo mundo se vestir como se estivesse indo para uma reunião de nerds dos anos sessenta, não havia vida social. Be disse que não havia lanchonete, pizzaria, cinema, ou mesmo internet. Até porque essa última seria inútil, não havia computador e nem TV em nenhuma casa. Depois do pôr do sol, todos ficavam em suas casas. As mulheres cozinhavam ou faziam tricô com a ajuda das filhas. Os homens colocavam óleo nas dobradiças que estavam rangendo, retocavam a pintura de algo ou simplesmente ficavam sentados na sala conversando sobre o sermão do pastor Jonas. Era surreal.
Sentei-me no muro com as pernas penduradas para o precipício sentindo a calma de uma nova manhã no Vale da Morte. Ouvi um ronco vindo de longe. Virei-me para a estrada e esperei. Uma moto amarela passou correndo. Eu ri. A mesma moto que infernizou os habitantes do Vale há um ano. O pastor Jonas realmente iria ter trabalho com essa aí. Ouvi o motor diminuir a rotação e então acelerar. Ela estava voltando. Começou a diminuir quando chegou perto. Fez a curva e saiu da estrada passando pela grama em direção a mim. Pulei do muro e fui deter a garota antes que fizesse alguma besteira. Ela parou. — Ei! Cuidado com o gramado. Fica sempre úmido e pode derrapar. Não vai querer ir direto naquela direção. — Apontei para o Vale da Morte. — Não me importo. To mesmo querendo umas alternativas pro suicídio.&nbs
Ouvi uma voz bem próxima. Dei um resmungo e virei de lado. Eu havia dormido muito pouco. — Maria Cristina. Acorde, querida. O café está na mesa esperando por você. Maria Cristina, venha, eu ajudo você a se levantar. Tia Odete segurou meu braço tentando me levantar da cama. Não saí do lugar. Então me lembrei do barulho na madrugada e resmungando com a boca colada no travesseiro perguntei à tia Odete. — O que era aquele barulho infernal essa noite? — São aqueles rapazes. Gostam de nos perturbar. São pessoas do mal. Nunca se aproxime deles, Maria Cristina. Eles são realmente do mal. Virei-me de barriga pra cima, os olhos bem abertos. — O que eles fizeram pra vocês dizerem que são do mal? — Ah, é uma
Depois de almoçarmos descemos a colina. Vi a moto amarela passando na estrada. — Parece que a rebelde vai matar aula hoje. — Iana comentou rindo. Estávamos seguindo para o mirante do Vale da Morte. Ouvi o ronco da moto voltando a toda velocidade e vi algo que fez meu coração gelar. Uma moto amarela saindo da curva, indo direto para a grama úmida, derrapando, caindo de lado, batendo no muro e arremessando um corpo para o precipício. Desapareci no mesmo instante que ela sumiu de vista por sobre o muro. Reapareci no ar a uns quatrocentos metros abaixo e segurei o corpo que caía. Flutuei devagar tomando cuidado com ela. Estava desacordada. Havia sangue escorrendo de sua cabeça. Enquanto subíamos, ela abriu ligeiramente os olhos e voltou a desmaiar. Iana e Ansur estavam parados próximo ao muro. Pousei lentamente ao
“Droga. De novo com dor de cabeça.” Pensei sem abrir os olhos. Rolei na cama virando-me de lado e me encolhendo. “Tive um sonho estranho. Eu corria com minha moto tentando achar a saída da cidade. Mas andava em círculos. De repente não consegui fazer uma curva e fui jogada por cima daquele muro no precipício. Depois eu apenas vi um par de olhos azuis brilhantes. Mas não eram olhos normais. Não havia nem a parte branca, nem a pupila. Eram totalmente azuis como bolas de vidro fluorescentes. Sonho maluco.” Abri os olhos e fiquei totalmente confusa. Não sabia onde estava nem porque estava ali. Olhei em volta tentando me situar. Não era nenhuma casa de Barbie. O cômodo era enorme. Era noite e a luz de um abajur dava uma fraca claridade ao quarto. Eu estava deitada numa cama gigante com um dossel de veludo azul. As cortinas também em veludo azul estavam abertas. Havia um aparad