Entrei em casa sem fazer barulho torcendo para que meu pai não tivesse ido ao meu quarto olhar como eu estava. Aparentemente estava tudo normal. Troquei de roupa colocando o pijama e me enfiei debaixo da coberta. Estava cansada e logo adormeci. Acordei pouco depois ouvindo meu pai bater na porta e chamar meu nome.
— Krica, levante-se. Vai se atrasar para escola.
Rolei na cama. Ainda estava com sono.
— Que se dane. Não vou levantar. Não preciso mais ir naquela porcaria de escola.
Cobri a cabeça com a coberta e fiquei parada ouvindo se ele bateria na porta outra vez. Não bateu. Levantei-me por volta de onze horas, ainda meio zonza. Fiz um café com leite e mergulhei um monte de biscoito maisena dentro. Comi a mistura em frente à TV ligada. Depois, fui me arrastando para o quarto, trocar de roupa. Eu iria procurar D. Glória para perguntar o que havia falado com meu pai. Estava no banheiro escovando meus dentes e senti a dor de cabeça começar. Precisei me segurar na pia apertando com força, pois logo a dor se tornou insuportável. Estava explodindo meu cérebro. Cambaleei para o quarto e deitei na cama me encolhendo o máximo que podia, segurando a cabeça com as mãos. Eu suava frio e podia apostar que estava gelada. Sentia-me gelada por dentro. Se a dor não parasse, precisaria arranjar um jeito de chegar ao celular em cima da cômoda e ligar para o meu pai. Pensei em pegar algum remédio, mas não conseguia me mover. Doía demais. A dor começou a ceder depois de alguns minutos de agonia. E simplesmente foi embora como se eu não tivesse sentido nada. Foi muito estranho, mas deixei pra lá. Se a dor voltasse contaria ao meu pai. Peguei a chave da moto e desci para garagem. Corri pela estrada que levava ao centro da cidade torcendo para que a dor de cabeça não voltasse ou provavelmente eu bateria de cara com uma árvore. D. Glória mandou-me entrar em sua minúscula sala brega. Tinha um tapete verde cobrindo quase todo o chão, uma mesa de fórmica cinza com pernas quadradas de ferro, uma cadeira de plástico vermelho e uma cadeira puída de rodinhas atrás da mesa. Ela passou por mim — era tão brega quanto a sala — e sentou-se na cadeira por trás da mesa. Sentei-me na cadeira vermelha, de frente para ela.
— Então, mocinha, seu pai conversou com você. Está tudo certo?
— Não.
Ela levantou levemente o canto dos lábios tentando dar um sorriso, forçando ser simpática.
— Como assim?
— Não sei o que vocês conversaram ontem. Por isso vim saber. — Eu a olhei com a cara fechada, os braços cruzados na frente do peito, recostada na cadeira. Aliás, esparramada na cadeira seria uma descrição melhor.
— Seu pai não lhe contou? — Agora ela parecia confusa e a simpatia forçada sumiu de seu rosto. — Encontramos uma alternativa muito promissora para o seu futuro. Não acredito que seu pai não tenha conversado a respeito disso com você.
— Ele conversou comigo o que ele decidiu ser melhor pra mim. Não vocês. — Apontei o dedo para ela.
— Entendo. Então está tudo certo. Depois de fazer uma breve pesquisa sobre a família do irmão de seu pai, constatei que são pessoas totalmente capazes de lhe dar uma boa educação. Seu primo, enquanto morava nesta cidade, era um rapaz estudioso e trabalhador.
Segurei o riso. A pesquisa dela estava um pouco falha. Ele não estudava, colava nas provas e trabalhava apenas para conseguir o dinheiro para comprar a moto e não por ser um rapaz responsável. Mas eu queria saber o que levou meu pai a decidir que eu deveria ir embora. Talvez, sabendo o motivo, poderia convencê-lo do contrário.
— Não sei o que vocês conversaram. Ele não falou. Queria saber o que disse a ele.
Ela se ajeitou na cadeira.
— Bem, mocinha, agradeça então ao seu pai por ter me apresentado essa oportunidade para seu futuro. Porque, se dependesse de mim e do sistema, não iria para um lugar agradável como a casa de seus tios.
Olhei pra ela com cara de tédio. Percebendo meu sarcasmo, continuou.
— Já ouviu falar na casa de recuperação para menores Monsenhor Josué?
— Já — respondi secamente. Eu não conhecia pessoalmente esse centro de recuperação de menores, mas sua fama de ser o inferno era grande. Ficava na cidade vizinha e dois amigos meus estavam lá.
— Bem, então acho que deve ir para casa agora, arrumar suas coisas, agradecer aos pais da menina por não prestarem queixa e agradecer a seu pai.
Saí de lá com um peso no coração. Só me senti assim após a morte da minha mãe. Agora esse sentimento voltara. Meu pai estava me dando uma alternativa melhor do que qualquer outra que eu pudesse imaginar. Não queria sair da cidade. Mas de um jeito ou de outro eu era obrigada a ir. Então, que fosse pela melhor opção.
Não tive vontade de voltar para casa. Fiquei rodando pela cidade e ao passar em frente à praça Duda gritou meu nome.
— Kica, volta!
Dei a volta e parei a moto perto dela.
— Fala, Duda.
— Matou aula hoje. Te mandei um monte de mensagem. Foi pro galpão?
— Não. Fiquei dormindo. O que teve hoje no galpão?
— Uns caras convidaram a gente pra ir lá. Disseram que havia chegado coisa nova. Eu não fui. — Ela deu de ombros. — Pensei que você tivesse ido. Queria ter ido junto.
— Duda, sabe que esse negócio de drogas não é comigo. Não tô nem aí se esses babacas fumam, cheiram ou comem droga.
— Sei disso. Mas sei lá, achei que talvez tivesse mudado de ideia.
Sacudi a cabeça. Tudo bem, eu roubava, entrava em brigas, não era nenhuma santa. Mas nunca usei drogas. Ficar chapada não era uma opção pra mim.
— Quer dar uma volta por aí? — perguntei. Não tinha mais o que fazer mesmo.
— Tudo bem.
Ela subiu na moto e ficamos rodando pela cidade. Depois a deixei de volta na praça e fui até a mercearia do seu Samuel. Eu estava devendo alguns Tridents para Sara. Ao entrar na mercearia senti um perfume delicioso. Totalmente errado para o lugar que normalmente tinha cheiro de ração velha para cachorro. Olhei em direção ao caixa e Seu Samuel atendia um rapaz que estava de costas para mim. Um arrepio subiu pelo corpo. Me sacudi tentando me livrar da impressão estranha que me invadiu. Garotos são babacas, pensei e tratei logo de me esgueirar entre as prateleiras antes que Seu Samuel me visse. Coloquei alguns chicletes e balas no bolso da jaqueta e saí pela porta torcendo para que nenhum dos dois tenha notado minha presença. Subi na moto que havia deixado do outro lado da rua e segui para casa lembrando-me do perfume do cara que nem sequer vi o rosto. Cheguei em casa antes do meu pai. Tomei meu banho e fui para meu quarto separar tudo o que gostaria de levar. Só teria que arranjar um jeito de levar minha moto. Sem ela eu não iria. E já que iria, não ficaria triste por isso. Eu poderia retomar minha amizade com Be e poderíamos nos divertir juntos por lá. Faria novos amigos. Sempre fui boa nisso. Afinal, uma cidade não é tão diferente assim da outra. Eu já havia me despedido mentalmente de minhas amigas e de minha cidade.
Precisei descansar ao chegar na mansão e por alguma razão não conseguia tirar da cabeça a estranha sensação que a presença da garota me causara. À tarde voltamos para porta da escola esperar que os alunos saíssem para tentar pegar mais alguma conversa. Era sexta feira e no fim de semana o único momento em que todos se reuniam era no templo do pastor Jonas. Onde provavelmente não conseguiríamos pegar nenhuma conversa que nos ajudasse. E agora, na escola, também não havia nada em particular que nos desse mais pistas. Fiquei observando Eanes. Ela era a melhor informante de todas. Estava ligada ao mal como nenhum outro habitante do vale jamais estaria. Só não tínhamos certeza se ela sabia disso. Assim que cheguei ao vale, os irmãos Ruschel já sabiam de algumas coisas. Seu pai lhes deixara instruções. A carta fora escrita à
Pela primeira vez em não sei quantos anos, meu pai não foi trabalhar. Ficou o dia todo andando pela casa. Isso estava começando a me dar nos nervos. — Pai? — Eu também começava a ficar ansiosa. Estava com tudo pronto. — Que horas eles vêm? — Seu tio disse que chega por volta das seis horas. Sentei no sofá e liguei a TV. Eram cinco horas. Eu havia passado cedo na casa da Sara para me despedir. Somente ela sabia que eu estava indo embora. Já era bem difícil chorar abraçada à sua melhor amiga. Não queria nem imaginar a procissão que iria se formar se todos os outros soubessem. Finalmente a campainha tocou. Pulei do sofá passando a frente de meu pai que se dirigia para a porta. Ao abri-la, fiquei observando aquelas duas figuras paradas à minha frente. Meu pai chegou por
O sábado passou vagaroso como todo o tempo no Vale. Fiquei no mirante observando o sol iluminando o Vale da Morte. Isadora passou voando baixo, mas não pousou por perto. Pensei na garota da mercearia. Não vi seu rosto, nem mesmo sei em que cidade fui parar. Sabia que não era longe, pois não teria poder suficiente para isso. Quando desapareci do Vale, apenas imaginei um lugar onde pudesse ir com a energia que ainda possuía e onde pudesse comprar alguns mantimentos sem chamar atenção. Eu poderia imaginar esse local novamente. Queria voltar e procurá-la. Sacudi a cabeça. — O que eu estou pensando? Eu sou um viajante. Não posso simplesmente sair atrás de uma garota que nunca vi. Não! Preciso pensar na segurança de todos no vale. Preciso pensar na segurança do mundo. De todos os humanos. Se Jonas escapar irá conseguir uma forma de destruir
Desci para almoçar. Tio Fernando e Be já estavam sentados à mesa e tia Odete entrava na sala de jantar carregando uma travessa com salada. — Sente-se, querida — ela disse puxando uma cadeira para mim, e sentou-se ao lado do tio Fernando. Enchi um prato e reparei que eles me observavam de rabo de olho. O prato deles era um terço do meu. Que se dane. Eu estava com fome. Com muita fome. Então dei um sorrisinho e coloquei mais purê. Tia Odete sorriu de volta e disse: — Depois do almoço vou ajudar a arrumar suas coisas e mais tarde vamos ao culto. Engasguei e quase cuspi o purê na cara do meu primo que estava sentado em frente a mim. Culto? Ela só podia estar brincando. — Tia, eu não vou a culto nenhum. Eu nem vou à igreja apesar de ser católica. Tô fora.&nbs
Após almoçarmos fomos para escola e ficamos encostados na parede próximos à porta como sempre fazíamos. Os micro-ônibus iam chegando e enfileirando-se, trazendo os cento e setenta e nove estudantes. Uma pequena aglomeração formou-se à porta de um dos ônibus. Apurei meus ouvidos. “Bem vinda. Meu nome é Eanes. Se precisar de alguma coisa, pode me procurar.” “Ok. Obrigada.” “Be, vamos entrar logo?” “Como é seu nome? O meu é Bia. Seja bem vinda” “Tá Bia, Obrigada. Meu nome é Krica” “Be, por favor me tira do meio desse povo!” A novata. Pelo que me pareceu estava irritada. Logo Bernardo passou o braço em seu ombro e a conduziu para a porta da escola. Ent&atild
Depois de uma estreia desesperadora na escola, voltamos para casa naquele ridículo ônibus escolar. Eu queria ter ido de moto, mas com o monte de desculpas esfarrapadas que recebi, resolvi ir logo com Be para não causar problemas nos meus primeiros dias. E agora, queria que fosse o último. Além de todo mundo se vestir como se estivesse indo para uma reunião de nerds dos anos sessenta, não havia vida social. Be disse que não havia lanchonete, pizzaria, cinema, ou mesmo internet. Até porque essa última seria inútil, não havia computador e nem TV em nenhuma casa. Depois do pôr do sol, todos ficavam em suas casas. As mulheres cozinhavam ou faziam tricô com a ajuda das filhas. Os homens colocavam óleo nas dobradiças que estavam rangendo, retocavam a pintura de algo ou simplesmente ficavam sentados na sala conversando sobre o sermão do pastor Jonas. Era surreal.
Sentei-me no muro com as pernas penduradas para o precipício sentindo a calma de uma nova manhã no Vale da Morte. Ouvi um ronco vindo de longe. Virei-me para a estrada e esperei. Uma moto amarela passou correndo. Eu ri. A mesma moto que infernizou os habitantes do Vale há um ano. O pastor Jonas realmente iria ter trabalho com essa aí. Ouvi o motor diminuir a rotação e então acelerar. Ela estava voltando. Começou a diminuir quando chegou perto. Fez a curva e saiu da estrada passando pela grama em direção a mim. Pulei do muro e fui deter a garota antes que fizesse alguma besteira. Ela parou. — Ei! Cuidado com o gramado. Fica sempre úmido e pode derrapar. Não vai querer ir direto naquela direção. — Apontei para o Vale da Morte. — Não me importo. To mesmo querendo umas alternativas pro suicídio.&nbs
Ouvi uma voz bem próxima. Dei um resmungo e virei de lado. Eu havia dormido muito pouco. — Maria Cristina. Acorde, querida. O café está na mesa esperando por você. Maria Cristina, venha, eu ajudo você a se levantar. Tia Odete segurou meu braço tentando me levantar da cama. Não saí do lugar. Então me lembrei do barulho na madrugada e resmungando com a boca colada no travesseiro perguntei à tia Odete. — O que era aquele barulho infernal essa noite? — São aqueles rapazes. Gostam de nos perturbar. São pessoas do mal. Nunca se aproxime deles, Maria Cristina. Eles são realmente do mal. Virei-me de barriga pra cima, os olhos bem abertos. — O que eles fizeram pra vocês dizerem que são do mal? — Ah, é uma