Eu não me sentia muito bem. Uma dor de cabeça estranha estava se formando. E já era o quarto dia que ela chegava, pouco antes de escurecer. Subi pelas escadas ignorando se a velha rabugenta iria espiar pelo olho mágico de sua porta. Entrar pela janela requeria um pouco mais de esforço do que sair e não estava com saco pra isso. Meu pai ainda não havia voltado para casa. Entrei no banho pretendendo demorar o quanto fosse possível deixando a água quente cair em minha cabeça para amenizar a dor. Mal me molhei e meu pai bateu na porta do banheiro.
— Krica, não demore. Preciso conversar com você seriamente.
Ignorando, fiquei embaixo da água até meus dedos ficarem murchos. Vesti meu pijama e fui sentar ao lado do meu pai no sofá de tecido grosso marrom desbotado. A velha tv de tubo sobre a pequena estante exibia um comercial de loja de departamentos. Meu pai apertou um botão no controle remoto e a desligou. O silêncio repentino na sala deixou o ar estranho. Coloquei os pés para cima do sofá, abraçando meus joelhos e com o queixo espremido em cima deles falei:
— E aí? O que a D. Graça falou?
Ele se ajeitou sentando de lado para me olhar.
— Não vou falar disso agora. Depois conto minha conversa com a assistente social. Primeiro quero te contar outra coisa.
— Tá — foi só o que eu disse ainda encolhida na mesma posição.
— Seu tio ligou ontem.
Soltei as pernas virando-me de lado no sofá, ficando de frente para meu pai.
— Tio Fernando? Como... Quando... Por que não me contou? O Be falou contigo também?
— Calma. Ele me ligou da capital para o escritório.
Quase fiquei histérica. Arregalei os olhos e bombardeei meu pai.
— Capital? Ele tá aqui perto? Por que não veio ver a gente? O Be tá com ele? — eu estava entrando em desespero. — Tia Odete tá bem? É por isso que ele veio pra cá? Trouxe ela? Ela tá bem?
Meu pai suspirou. Estava calmo. Talvez tivesse previsto minha reação.
— Sua tia está bem. Ficou no Vale das Sumaúmas. Vieram apenas o Fernando e o Bernardo.
Não dei trégua.
— Eles vêm aqui? Quando? Pai! Por que não disse que eles ligaram?
Meu pai me segurou pelos ombros e seu suspiro agora era de quem estava perdendo a calma.
— Me deixe falar! Não consigo explicar com você me enchendo de perguntas.
Coloquei as mãos em cima das pernas para ajudar a me conter.
— Tá. Fala.
— Parece que o prefeito do Vale encarregou seu tio e seu primo de pegarem alguns materiais na capital. Ele não pôde conversar muito tempo. Ligou apenas para saber como estavam as coisas.
Ele deu de ombros. Fiquei parada olhando pra ele. Onde estava o resto da conversa? Ele me olhou, ergueu as sobrancelhas e então continuou:
— Contei a ele mais ou menos o que estava acontecendo. Então ele sugeriu uma alternativa. Ligaria para o prefeito do Vale e disse que me ligaria a seguir para saber a minha resposta.
Continuei olhando calada. Não estava entendendo nada do que ele estava falando. Fiz uma careta e meu pai viu como eu estava confusa com o que ele dizia.
— Seu tio sugeriu que você fosse morar com eles por um tempo. Pensei muito a respeito depois do que houve hoje na escola e aguardei a conversa com a assistente social para poder decidir o que fazer.
— Não quero sair daqui. Conheço todo mundo. Todos os meus amigos estão aqui. A Sara está aqui. Em qual lugar nesse país eu poderia andar por aí de moto com dezesseis anos de idade? — Eu quase mencionei o fato de ali ser fácil roubar mercadorias, o fato de eu poder sair livremente mesmo de castigo, o fato de fazermos festas que duravam a noite toda no galpão abandonado no meio do nada... Havia muitos fatos não mencionáveis e eram motivo suficiente para eu odiar a ideia de mudar.
— Será bom para você.
— Hã? Então já decidiu? É assim que funciona? Eu faço algumas merdas e você me manda embora?
— Krica, não é assim. Você sabe que quero o melhor pra você. Não consigo tempo para ficar por perto, não tem ninguém que olhe por você. E quando volto do trabalho, estou cansado demais. — Ele abaixou a cabeça. — Sabe que não tenho jeito pra conversas. Ainda mais você sendo menina. Não sei como te educar.
— Estamos conversando agora!
— Não é a mesma coisa. Precisa de um exemplo feminino. Alguém que possa te mostrar como uma mulher deve se portar.
— Eu tenho minhas amigas. E as mães de algumas delas também são minhas amigas.
— Grande exemplo! — meu pai quase gritou. — Sabe muito bem o que a mãe da Sara faz! É esse tipo de amizade que quer continuar tendo? Não irá muito longe assim.
— A Sara é super gente boa e a mãe dela também!
Meu pai sacudiu a cabeça.
— Não tem discussão. Já organizei tudo. Seu tio vem depois de amanhã te buscar. Será bom. Ele disse que todas as pessoas no Vale são educadas e prestativas.
— Eca!
Levantei-me do sofá com um pulo e fui para o meu quarto pisando firme, ignorando o barulho do meu estômago. Eu estava enjoada. Pensar em deixar meus amigos e minha vida não era nada bom. Tranquei a porta e me joguei de costas na cama. Não consegui dormir. Fiquei olhando meu quarto na claridade que vinha das luzes da rua. Era pequeno. Uma cama e uma cômoda espremidas em uma parede, e na parede em frente um armário de três portas. As paredes estavam pintadas com o mesmo amarelo claro de quando eu era criança. E havia um tapete azul de crochê escondido em algum lugar embaixo das roupas espalhadas pelo chão. Depois de algumas horas levantei e verifiquei a casa. Estava escura e silenciosa. A porta do quarto do meu pai estava fechada e não vinha claridade por baixo. Troquei a roupa tentando não fazer barulho. Saí na ponta do pé fechando a porta com todo cuidado. Desci as escadas no escuro e tentei enxergar a saída do prédio. Saí pela garagem empurrando a moto. Um cachorro latiu alto. Olhei para as janelas, mas, para meu alívio, o prédio todo estava apagado. Segui pela estrada em uma velocidade ainda maior que a habitual. Logo estava na frente da casa da Sara batendo na porta.
— Sara, abre aí!
Ouvi algum vizinho gritar uns palavrões. Sara abriu a porta com os cabelos completamente emaranhados. Vestia uma camisola de malha puída com a estampa do Mickey na frente. Seus olhos verdes estavam apertados e tremiam pelo esforço de tentar mantê-los abertos.
— Que foi? São duas horas da manhã, maluca. Aconteceu alguma coisa?
— Ainda não — falei empurrando Sara para dentro, entrando logo atrás e fechando a porta. — Mas vai acontecer.
Sara deu um bocejo, colocou-se atrás de mim e me empurrou para frente da porta de seu quarto.
— Entra aí.
Entrei em seu quarto tomando o cuidado de não tropeçar em um de seus cinco gatos esparramados em almofadas pelo chão. O quarto era coberto de pôsteres de bandas de rock dos anos oitenta. A única decoração do quarto. Além da cama e de um armário em madeira escura, e das almofadas espalhadas, o quarto era totalmente desprovido de objetos decorativos. Da janela sem cortinas, entravam as luzes do centro da cidade, incluindo a luz esverdeada do néon da pizzaria em frente. Sentei na beirada da cama. Eu sabia que podia ficar à vontade a essa hora. A mãe de Sara trabalhava dançando em uma boate e costumava chegar somente quando o dia estava clareando.
— Cacete! Me deixa dormir. Eu to igual um zumbi. Não vou escutar nada do que vai falar. — Sara jogou-se na cama e se encolheu puxando a coberta até cobrir totalmente a cabeça.
— Meu pai vai me mandar embora da cidade.
— Como é que é? — Sara jogou a coberta para o alto de repente. — Merda, Krica, do que você tá falando? — Ela sentou na cama, um olho tentando ficar aberto e o outro completamente fechado. Sua bochecha estava marcada pelas dobras da fronha.
— É isso. Vou embora depois de amanhã. Não, vou embora amanhã. Já é sexta-feira. Já passou de meia noite.
Barão, o gato amarelo, subiu na cama e ficou esfregando a cabeça de um lado para o outro em mim. Peguei-o no colo e acariciei seu pelo macio enquanto sentia o ronronar de seu peito. Sara levantou-se de repente pegando Barão do meu colo e soltando-o no chão. Balançou a cabeça diversas vezes sacudindo seu cabelo de porco espinho.
— Me conta direito. O que foi que a vaca da assistente social falou com seu pai?
— Não sei. Ele não me disse.
— Peraí. Você não sabe por que vai embora? Ele vai te mandar embora e não disse o que a coisinha lá falou?
Meu tio ligou pra ele. Ele contou pro meu tio que eu tava aprontando. Daí meu tio disse que eu poderia ir morar com eles. Daí, porque dei um soco na cara daquela magrela branca azeda, meu pai achou a proposta do meu tio irresistível.
— Saco. — Sara começou a andar pelo quarto. — Sabe o que acho que deveria fazer?
Fiquei olhando pra ela esperando.
— Deveria ir lá e perguntar pra vaca qual foi a conversa que teve com seu pai. — Ela levantou a mão com o dedo indicador em riste. — Duvido que seu pai tomaria uma decisão dessas só porque deu um soco na cara da magrela. Já fez isso outras vezes. Aliás, já fez pior né Krica! Lembra quando brigou com o Eric? Coitado do garoto.
— É, mas dessa meu pai não sabe. Não sabe nem um terço de nada. E acho que é por isso que tá me mandando embora. Ele simplesmente não participa da minha vida. Não tem nada a ver com ela além de me sustentar.
— Mesmo assim, você tem o direito de saber o que a assistente falou com ele. Ou pergunta pra ele, ou pergunta pra ela.
— Vou fazer isso. Melhor eu voltar antes que meu pai veja que não estou no quarto e pense que fugi de casa.
— É uma alternativa.
Eu ri.
É... Era uma alternativa.
Ainda estava escuro quando voltamos para casa. Não precisávamos de mais de uma hora de sono para descansar. Quando a luz amarelada entrou pela janela do meu quarto eu já estava de pé. Tomei um banho frio, vesti meu jeans, uma camisa de malha preta e uma jaqueta de couro também preta. Calcei o coturno e desci para cozinha. Os outros ainda não haviam descido. Tomei meu café da manhã sozinho no silêncio que parecia encher todos os enormes cômodos da mansão. Saí fechando a porta suavemente para não acordar os gêmeos e desci a colina em direção ao leste. Queria ver o sol subindo, cobrindo o Vale da Morte com sua luz. Cruzei a estrada asfaltada e segui pelo gramado até o pequeno e frágil muro que dava uma falsa sensação de segurança aos que vinham ali apreciar a vista. A mil e duzentos metros abaixo, no pé de um precipíc
Entrei em casa sem fazer barulho torcendo para que meu pai não tivesse ido ao meu quarto olhar como eu estava. Aparentemente estava tudo normal. Troquei de roupa colocando o pijama e me enfiei debaixo da coberta. Estava cansada e logo adormeci. Acordei pouco depois ouvindo meu pai bater na porta e chamar meu nome. — Krica, levante-se. Vai se atrasar para escola. Rolei na cama. Ainda estava com sono. — Que se dane. Não vou levantar. Não preciso mais ir naquela porcaria de escola. Cobri a cabeça com a coberta e fiquei parada ouvindo se ele bateria na porta outra vez. Não bateu. Levantei-me por volta de onze horas, ainda meio zonza. Fiz um café com leite e mergulhei um monte de biscoito maisena dentro. Comi a mistura em frente à TV ligada. Depois, fui me arrastando para o quarto, trocar de roupa. Eu iria procurar D. Glória para
Precisei descansar ao chegar na mansão e por alguma razão não conseguia tirar da cabeça a estranha sensação que a presença da garota me causara. À tarde voltamos para porta da escola esperar que os alunos saíssem para tentar pegar mais alguma conversa. Era sexta feira e no fim de semana o único momento em que todos se reuniam era no templo do pastor Jonas. Onde provavelmente não conseguiríamos pegar nenhuma conversa que nos ajudasse. E agora, na escola, também não havia nada em particular que nos desse mais pistas. Fiquei observando Eanes. Ela era a melhor informante de todas. Estava ligada ao mal como nenhum outro habitante do vale jamais estaria. Só não tínhamos certeza se ela sabia disso. Assim que cheguei ao vale, os irmãos Ruschel já sabiam de algumas coisas. Seu pai lhes deixara instruções. A carta fora escrita à
Pela primeira vez em não sei quantos anos, meu pai não foi trabalhar. Ficou o dia todo andando pela casa. Isso estava começando a me dar nos nervos. — Pai? — Eu também começava a ficar ansiosa. Estava com tudo pronto. — Que horas eles vêm? — Seu tio disse que chega por volta das seis horas. Sentei no sofá e liguei a TV. Eram cinco horas. Eu havia passado cedo na casa da Sara para me despedir. Somente ela sabia que eu estava indo embora. Já era bem difícil chorar abraçada à sua melhor amiga. Não queria nem imaginar a procissão que iria se formar se todos os outros soubessem. Finalmente a campainha tocou. Pulei do sofá passando a frente de meu pai que se dirigia para a porta. Ao abri-la, fiquei observando aquelas duas figuras paradas à minha frente. Meu pai chegou por
O sábado passou vagaroso como todo o tempo no Vale. Fiquei no mirante observando o sol iluminando o Vale da Morte. Isadora passou voando baixo, mas não pousou por perto. Pensei na garota da mercearia. Não vi seu rosto, nem mesmo sei em que cidade fui parar. Sabia que não era longe, pois não teria poder suficiente para isso. Quando desapareci do Vale, apenas imaginei um lugar onde pudesse ir com a energia que ainda possuía e onde pudesse comprar alguns mantimentos sem chamar atenção. Eu poderia imaginar esse local novamente. Queria voltar e procurá-la. Sacudi a cabeça. — O que eu estou pensando? Eu sou um viajante. Não posso simplesmente sair atrás de uma garota que nunca vi. Não! Preciso pensar na segurança de todos no vale. Preciso pensar na segurança do mundo. De todos os humanos. Se Jonas escapar irá conseguir uma forma de destruir
Desci para almoçar. Tio Fernando e Be já estavam sentados à mesa e tia Odete entrava na sala de jantar carregando uma travessa com salada. — Sente-se, querida — ela disse puxando uma cadeira para mim, e sentou-se ao lado do tio Fernando. Enchi um prato e reparei que eles me observavam de rabo de olho. O prato deles era um terço do meu. Que se dane. Eu estava com fome. Com muita fome. Então dei um sorrisinho e coloquei mais purê. Tia Odete sorriu de volta e disse: — Depois do almoço vou ajudar a arrumar suas coisas e mais tarde vamos ao culto. Engasguei e quase cuspi o purê na cara do meu primo que estava sentado em frente a mim. Culto? Ela só podia estar brincando. — Tia, eu não vou a culto nenhum. Eu nem vou à igreja apesar de ser católica. Tô fora.&nbs
Após almoçarmos fomos para escola e ficamos encostados na parede próximos à porta como sempre fazíamos. Os micro-ônibus iam chegando e enfileirando-se, trazendo os cento e setenta e nove estudantes. Uma pequena aglomeração formou-se à porta de um dos ônibus. Apurei meus ouvidos. “Bem vinda. Meu nome é Eanes. Se precisar de alguma coisa, pode me procurar.” “Ok. Obrigada.” “Be, vamos entrar logo?” “Como é seu nome? O meu é Bia. Seja bem vinda” “Tá Bia, Obrigada. Meu nome é Krica” “Be, por favor me tira do meio desse povo!” A novata. Pelo que me pareceu estava irritada. Logo Bernardo passou o braço em seu ombro e a conduziu para a porta da escola. Ent&atild
Depois de uma estreia desesperadora na escola, voltamos para casa naquele ridículo ônibus escolar. Eu queria ter ido de moto, mas com o monte de desculpas esfarrapadas que recebi, resolvi ir logo com Be para não causar problemas nos meus primeiros dias. E agora, queria que fosse o último. Além de todo mundo se vestir como se estivesse indo para uma reunião de nerds dos anos sessenta, não havia vida social. Be disse que não havia lanchonete, pizzaria, cinema, ou mesmo internet. Até porque essa última seria inútil, não havia computador e nem TV em nenhuma casa. Depois do pôr do sol, todos ficavam em suas casas. As mulheres cozinhavam ou faziam tricô com a ajuda das filhas. Os homens colocavam óleo nas dobradiças que estavam rangendo, retocavam a pintura de algo ou simplesmente ficavam sentados na sala conversando sobre o sermão do pastor Jonas. Era surreal.