PERDA E QUESTIONAMENTO.

Nunca mais se falou sobre a estrela que brilhou no aniversário de Ané. Os anos passaram-se tranquilamente sem alardes. O pai de Sarati envelhecia, porém, ainda dava conta da colheita e da criação. Já Manú, bem velhinha, treze anos após o episódio, faleceu trabalhando em suas ervas. Um ataque cardíaco a levou de forma súbita. Foi Sarati quem a encontrou pela manhã, e algo deixou a menina, além de triste, muito intrigada. Ao lado do corpo da avó, que morrera deitada, uma luz circulava ao redor. A mãe, que pressentira.

— Mamãe, a senhora está vendo uma luz, ao redor do corpo de vovô.

— Não Sarati. Vá para casa, chame seu pai e seu irmão. Temos que fazer o ritual, por favor.

— Mamãe, mas está muito forte, não é possível que não vê.

— Sarati, minha mãe acaba de falecer. Respeite, por favor. — Falou Ali, com um tom de voz mais alto, irritada. Foi a forma que ela encontrou de mais uma vez, esconder algo tão importante para a filha.

Foi um momento triste para a casa, mas superável. Na família de Sarati, sempre se ensinou que a morte era apenas uma transição, uma passagem. Manú foi enterrada nos fundos de sua propriedade, e Ali, no momento antes de fechar a tumba, colocou uma pulseira no braço da mãe. Ninguém nunca vira aquele artefato, mas aquela cena permaneceu fixa na memória de Sarati, pois a jovem, mais uma vez, viu uma luz emanar do corpo físico da avó e da pulseira. Ali, percebeu o olhar da filha e antes mesmo de deixar que ela tentasse fazer qualquer pergunta, a interrompeu, dessa vez com calma e carinho.

— Antes que pergunte qualquer coisa, Sarati, era um objeto de grande importância para sua avó, foi presente de seu avô. O significado eu já não sei. Nesta vida, nem tudo nos é permitido saber.

— Fiquei impressionada com a beleza e com a luz que saiu dela. Só isso, mamãe.

— É realmente bela. Seu avô tinha muito bom gosto e amava dar presentes para sua avó.

— Vamos terminar o ritual. — Pediu Ané.

A menina que tinha visto a estrela foi sendo criada na ignorância a respeito do seu legado. Uma atitude impensada de seus pais que, no futuro, ainda lhe trouxe consequências muito piores e dolorosas em sua vida.

A morte de Manú deixou mais triste à vida da família e dos moradores da cidade em que ela distribuía seus remédios. Ela foi uma mulher espetacular e deixou um legado de caridade para com os poucos vizinhos que residiam na região. Por isso, em uma noite de jantar em família, os familiares foram surpreendidos por uma proposta de Ali, que ninguém esperava.

— Tenho uma proposta para nós.

Ané olhou de lado e levantou uma única sobrancelha.

— E o que seria?

— Vamos a Laidé para a festa da lua, pelo menos, um fim de semana.

— E nossa casa, mamãe? — Perguntou Jacob. — As crias e a plantação?

— Tenho certeza de que podemos encontrar alguém, entre nossos amigos, que não se importará de cuidar de tudo nesses poucos dias. O que acha, Ané?

— Acho que precisamos descansar da rotina e tirar essa tristeza do coração, pois, mesmo sabendo que sua mãe está bem, ela nos faz falta. A última vez que fomos a essa festa, foi quando Sarati tinha sete anos, um ano antes de… — Ané parou a frase no meio. Só percebeu que falaria algo que não podia, já quase na metade. Voltou ao assunto bem rápido. — Vamos à festa da lua.

— Você não falou nada, Sarati, não quer ir? — Perguntou o irmão. — Eu fiquei empolgado. Como disse o papai, você tinha sete e eu, nem me lembro.

— Sim, quero muito. Não me lembro quando fui e nem porque paramos de ir.

— E isso importa, filha? — Perguntou Ané. — Vamos esse ano e nos divertiremos.

Ali conhecia a filha como ninguém e sabia que naquele coração se passava algo. Porém, só lhe seria revelado no momento adequado.

A festa da lua acontecia todos os anos na cidade de Laidé. As famílias das propriedades vizinhas e de outros pequenos povoados se encontravam lá para vender seus produtos e festejar uma de suas luas, que sempre chegava mais perto da superfície, ficando maior e mais clara, nessa época do ano. Simbolizava a fartura, pelo menos para a sobrevivência.

Sarati só não sabia que a celebração, com aquele objetivo e durante aquela época do ano, foi criada há pouco mais de 25 anos, em substituição à verdadeira festa que antigamente se fazia para a estrela que se iluminava muito mais, naquela época. Eles foram apenas duas vezes: a primeira, quando Sarati era um bebê de colo, e a segunda, quando estava com sete anos, fato que ela só se lembrou, naquele jantar em família. Exatamente um ano antes da visão da estrela. Era uma viagem de quatro dias, e, para dormir, ficavam acampados no caminho para descansar. Para desfrutar da festa em Laidé, bom mesmo, eram dois a três dias de estadia. A festa enchia o pequeno povoado de famílias. Existia apenas uma rua, de areia, com dez casas de cada lado. Na verdade, eram choupanas improvisadas, construídas com pedras das rochas que cercavam o vale. Os comerciantes, fiscalizados pelos soldados, apresentavam seus produtos nessa rua e ali os vendiam. Os soldados, inclusive, recolhiam a porcentagem do Comandante Maior.

Após receberem a boa notícia, os membros da família tomaram rumos diferentes. Ané foi deitar-se, Ali foi arrumar a cozinha, e Jacob quis verificar os animais e ver se estavam bem. Sarati foi se banhar, para tirar a poeira do corpo. Deitou-se esgotada em sua cama. Mesmo sendo uma moça de 21 anos, ainda recebia a visita da mãe, todas as noites, para conversarem e receber o beijo de boa noite. Naquela noite, em especial, Ali estava linda. Tinha momentos que a mãe parecia iluminada, era como se irradiasse luz de seu corpo, mas Sarati não comentava, deixava essa experiência guardada no coração. Depois da visão da luz, anos antes, sentiu uma apreensão em casa, mãe e pai preocupados, por isso, guardava dentro de si, qualquer comentário. A mãe era seu ideal de vida e a jovem apenas sorria para recebê-la com carinho.

— Não está lendo os manuscritos hoje, filha? — Perguntou Ali, sentando-se na cama.

— Não, já os li tantas vezes que sei repeti-los quantas vezes quiser. Estava somente pensando um pouco em nossa viagem. Quem sabe, lá podemos comprar outros manuscritos.

— Sarati, você sabe que livros, manuscritos, são proibidos em nosso mundo. Esses só existem porque sua avó os guardou a sete chaves. Agora que ficaremos fora alguns dias, temos que escondê-los de novo.

— A senhora sabe por que são proibidos?

— Não, minha filha. Acho que o Comandante Maior não gosta que saibamos de coisas sobre o nosso planeta e a vida do nosso povo.

— Muito estranho, a senhora não acha? Ele já é dono de tudo isso mesmo, nos comanda e nos vigia, inclusive manda seus soldados para nos amedrontar. Qual o medo dele de livros tão bonitos, que contam apenas lendas?

— O que eu acho é que amanhã começamos a arrumar tudo para a viagem. Em dois dias, partimos para Laidê. Para você e Jacob será uma nova cidade, vocês eram crianças quando fomos pela última vez. — falou Ali, mudando visivelmente de assunto.

— Sim, mamãe, eu sei. Pensei em vovó agora. Olhe aquela estrela — Sarati, falou apontando para o céu iluminado. — É como se ela nos escutasse sorrindo e direcionando-nos e por um breve instante, admirando-a, sentir a presença de Manú. Uma vez, ela me disse que chegou a gostar mais das estrelas do que eu, apesar de nunca parar para vê-las.

— Foi esse sentimento que sentiu aquela hora que anunciei nossa ida para a festa da lua?

— A senhora percebeu?

— Sim, claro. Você deu um sorriso iluminado, sem perceber.

— Acho que sim, mas, ao mesmo tempo, sinto muitas sensações e pessoas que vamos conhecer ou reencontrar. Não sei explicar.

— Como assim, filha.

— Não sei se é sonho ou minha fértil imaginação. Vejo um rapaz, montado em um cavalo. É lindo e parece me esperar há muito tempo.

— Durma bem. Nossa viagem será maravilhosa.

— Posso falar uma percepção que sempre tenho.

— Hum?

— A senhora sempre foge de alguns assuntos. Falei de um simples sonho com um rapaz e a senhora mandou eu ir dormir.

— Isso não é uma percepção, é apenas uma impressão e está errada. Temos muito o que fazer amanhã.

— Boa noite, mamãe. Durma bem.

Sarati virou-se de lado, pensando no que, tanto, a mãe escondia. Continuou vendo o céu cheio de estrelas e conversando com Manú em pensamentos.

— Vovó, sinto você em uma dessas pequenas estrelas. Conte-me em sonho, o que mamãe tanto esconde de mim.

Com o silêncio, logo Sarati dormiu e novamente sonhou com o belo rapaz. Dessa vez, ele estava de costas. Em nenhum dos sonhos, Sarati conseguia ver o rosto. O barulho, de movimentação na cozinha, logo cedo, a acordou, e a tirou da decepção de não ver o rosto do jovem, mais uma vez. A movimentação do pai e do irmão, que levantaram cedo para preparar a carroça, faziam a arruaça suficiente para levantar uma cidade, além do cheiro de pão assado que saía do forno. Jacob falava com o pai, que era necessário fazer ajustes nas rodas e nos assentos internos e o pai retrucava rindo, que aquela carroça ainda tinha muita estrada para rodar. Ao final, Jacob venceu, eles precisariam de conforto para enfrentar tão longa viagem.

— Bom dia, mamãe. Acordei tarde ou papai e Jacob que madrugaram.

— Acordou no seu horário de sempre, filha. Dormiu bem?

— Sim.

— Tome café. Temos que ir à edícula, arrumar algumas coisas para levar para a festa.

Sarati e a mãe foram à casa de Manú esconder os manuscritos, buscar algumas panelas de barro, remédios e mantas para a viagem. Abriram o baú de roupas para tirar botas para os pés, véus e túnicas para quarar. Apesar de não terem um sol escaldante e de o céu ser de um cinza-claro, o mormaço fazia seu papel, secando e tirando o cheiro de poeira que se acumulava. Ali dobrava as roupas sobre a mesa de pedra quando Sarati percebeu lágrimas em seus olhos, o que era raro, e ouviu baixinho uma frase que lhe pareceu sem sentido: “Você não viveu para ver tudo voltar, não é, mamãe”.

— Saudades da vovó, mamãe?

— Sim, deveríamos ter ido a Laidé antes que ela partisse. Ela amava aquela festa. Trazia recordações de sua vida, de sua cidade natal, das funções que exercia.

— Mas vovó não nasceu aqui?

Sarati ficou com a impressão de que a mãe havia voltado de um transe e estava bem chocada com o que disse sem perceber.

— Sim, sim. Estou falando coisas sem nexo. Sua avó nasceu aqui e sempre foi feliz aqui.

— Vou ser obrigada a repetir, não é a primeira vez que tenho a sensação de que vocês me escondem algum segredo. Desde a visão da estrela, tenho essa sensação. Falei isso ontem para a senhora.

— Não fale jamais da estrela que viu. Nunca esqueça o apuro que passamos com aqueles soldados. Eles estavam atrás da criança que supostamente viu aquele brilho. Lembra-se, ou não, Sarati?

— Lembro-me bem do sufoco que passamos, mas por quê? O que aquela simples estrela pode fazer?

— Não pergunte o porquê, apenas obedeça.

Como sempre, Ali, com um desespero interno, mudou de assunto de forma repentina.

— Sonhei com sua avó um dia antes do jantar, em que propus a ida à festa. No sonho, ela pedia claramente para irmos.

Sarati não comentou nada. Ela sempre ficava intrigada e um pouco brava quando percebia que a mãe e o pai tentavam esconder algo. Em sua alma, sabia que eles estavam protegendo-a, mas ela era adulta e jamais contaria algo a ninguém. Essa era uma revolta interna que escondia dentro de si, era tratada como criança. Jacob entrou e a tirou de seus devaneios.

— Mamãe vim buscar o baú. Está pronto.

— Está, sim, filho. Pode pegar. Sarati, aqui já acabamos, vamos arrumar só a roupa da viagem de amanhã.

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