2º Capitulo

Eu estava cega de raiva, irada por ter sido enganada, me sentindo traída e ao mesmo tempo confusa. Tudo que eu queria era sair dali, fugir para bem longe. Meu vô veio ao meu encontro para me segurar,  mas eu desviei dele e sai correndo pela porta dos fundos, cruzei o portão de madeira e corri pela calçada como uma doida. Nas ruas, as pessoas andavam para o trabalho e me olhavam assustadas,  enquanto eu tentava desviar delas sem muito sucesso;  devo ter trombado em uns três. Meus olhos estavam embaçados e minha garganta seca. Limpei o rosto com as mãos e segui correndo. Olhei para trás tentando ver se alguém vinha trás de mim, mas meu avô ficara para trás.

Dobrei a esquina, entrando no terreno baldio da casa cinza, a casa abandonada que eu e meus colegas costumávamos morrer de medo de cruzar na frente quando eu era criança; mas eu não era mais criança e, para ser sincera, aquele me parecia um ótimo lugar para chorar em paz. Tinha neve sobre os meus pés e logo ali perto uma árvore seca, com galhos retorcidos, balançava ao vento fazendo um rangido estranho. Aproximei-me dela e cai de joelhos no chão, perto do lago congelado; o gelo refletia meu rosto vermelho e ofegante, eu estava tão exausta que tudo que eu queria era poder descansar e fechar meus olhos sabendo que quando os abrisse novamente tudo que eu tinha ouvido teria sido um pesadelo.

Nessa hora, ouvi alguém chamar.

- Menina! O que faz perto do lago? Afaste-se, não é permitido pescar aí...

Olhei para trás e vi o guarda se aproximando de mim. Respirei fundo, estava em uma enrascada, pensei em gritar de volta dizendo que eu não queria pescar, que estava em um momento ruim, mas acho que ele não entenderia.

Neste momento olhei novamente para o meu rosto refletido no espelho de gelo na minha frente e percebi que minhas lágrimas tinham derretido o gelo, confusa toquei o lago e entendi que não estava errada, como passe de mágica o gelo se desfez por completo e minha mão foi puxada para dentro da água, mergulhei nas águas sem querer, alguma coisa parecia me puxar cada vez mais para baixo, tentei lutar com todas as minhas forças para me livrar daquilo que me prendia, até que finalmente consegui me desvencilhar e escapar para a superfície, nadei emergindo nas águas do lago já não mais congelado, e foi aí que constatei que aquele não era o mesmo lago em que eu havia caído e que algo estava muito confuso ali.

Diante de meus olhos, um bosque escuro e cheio de árvores se fazia presente. Balancei a cabeça. De onde aquilo tinha saído? Não tinha bosques no meio da cidade de Naantaly. Olhei em volta, mas não vi a cidade; não havia casas, carros, ruas, nada... Apenas o lago, de onde eu supostamente tinha saído algumas árvores e o nada...

Pisei em alguma coisa que se mexeu embaixo do meu pé e reclamou.

- Vê se olha por onde anda sua gigantona!

Olhei para baixo e me assustei ao perceber que era uma flor. Uma flor tinha falado comigo; me apavorei  e sai correndo dali, sem rumo. Para onde eu devia ir? Onde eu estava? Que lugar era aquele? Será que eu estava sonhando? Mas era tudo tão real! Onde estavam meu avô e minha avó?  Onde estava a minha casa?

Parei e respirei fundo, fechando os olhos. Assim que eu voltasse a abri-los, tudo voltaria ao normal, eu estaria deitada na minha cama, o dia não teria amanhecido ainda e, é claro, eu ainda seria neta dos meus avós... Não, nem tudo era como eu gostaria que fosse. Assim que abri os olhos, o mesmo lugar estranho voltou a assombrar minha visão,  deixando-me apavorada.

Tirei o casaco encharcado que pesava sobre meu corpo e o joguei no chão. Estava muito frio ali e eu precisava me proteger do vento até que encontrasse um jeito de voltar para casa, se é que eu voltaria. Eu já começava a pensar que havia morrido afogada no lago e que estava no Paraíso, esperando meu julgamento. Encontrei ali perto uma pequena caverna; não tinha muita claridade, apenas a penumbra clareava um pouco o chão,  o suficiente para que eu pudesse andar. Mas, pelo menos, não tinha vento ali e o lugar estava mais quente. Senti meu corpo ficar mais confortável à medida que ia para o fundo da caverna, até que meus olhos visualizaram algo que me deixou paralisada!  Devo ter piscado pelo menos umas dez vezes,  sem acreditar no que eu via.

Sobre uma pequena rocha,  a uns 30 cm do chão, havia um rapaz que parecia ter sido esculpido ali,  se não fosse tão humano. Suas pernas estavam presas pelas raízes grossas de alguma árvore; as raízes brotavam das pedras, como se elas fossem uma terra fértil; suas roupas estavam sujas e rasgadas, porém, logo se via que eram boas roupas. A camisa de linho, que outrora havia sido branca, estava imunda, mas tinha corte acentuado e boa fazenda. E disso eu entendia, já que minha vó era costureira. O mais impressionante até ali não eram as raízes ou o rapaz, mas um punhal cravado em seu peito de onde as raízes pareciam brotar. Seu rosto estava virado para o lado e caído... Estaria morto? - perguntei-me; mas, se estivesse, como podia não ter apodrecido ali? Como podia não estar com mau odor? Mas, se não estava morto como podia estar vivo com um punhal cravado em seu coração?

Subi na pedra, ficando um pouco alta do chão, e me aproximei dele. Apesar de sujo, ele não cheirava mal, o cheiro era algo amadeirado, que se misturava ao cheiro da caverna;  os cabelos, um pouco longos demais,  cobriam-lhe a face escondendo seu rosto; passei a mão por seus braços;  um deles estava livre e o outro estava sobre o punhal, como se ele tivesse tentado remover a faca. 

Minhas mãos passearam pelos seus ombros e chegaram a seus cabelos que estavam tão sujos que mal meus dedos podiam penetrar  entre eles. Acredito que eram de um tom de castanho, mas era impossível saber a verdade sem antes lavá-los. Tomei um pouco mais de coragem e toquei seu rosto, desenhando o queixo e passando o polegar pelos lábios, que pareciam um pouco ressecados; porém, ele estava quente, eu podia sentir sua respiração... Vivo, ele estava vivo! Balancei a cabeça desacreditando e comecei a empurrar o cabelo dele para o lado na esperança de ver como seu rosto  era de verdade.  Lembrei que meu celular estava no bolso da calça;  tirei-o do bolso torcendo para que ainda funcionasse. Assim que a luz ligou,  lembrei-me  de agradecer ao meu avô por ter comprado um telefone à prova d’água. Era óbvio que ali não tinha sinal algum de telefone, mas, com a claridade da tela eu podia ver melhor o rosto do rapaz. Levantei a mão para aproximar o aparelho, e quando o fiz levei um grande susto:

Seus olhos com enormes pupilas dilatadas se abriram e encontraram os meus, a íris de um tom verde esmeralda tão claro me fez perder a respiração. Soltei um grito alto, dei um passo para trás me esquecendo de onde estava, e fui ao chão, caindo com tudo, de costas. O telefone caiu de minha mão e se apagou na mesma hora;  meu coração estava tão disparado quanto um acelerador de carro de corrida. E eu não sabia se era a minha respiração que fazia todo aquele barulho ou se era a dele. Eu tinha medo até mesmo de me mexer, pois eu não tinha certeza se eu havia despertado a fúria de algum monstro das cavernas, apesar de que, para monstro, ele não servia, porque mesmo sujo e desleixado sua beleza era extasiante.

- Tiina? - Ouvi a voz aveludada cortar o silêncio e imaginei que fosse a dele.

- Tiina, é você?

Tentei controlar minha respiração e levantei meu corpo com os braços.

- Não, na verdade meu nome é Anna. E você, quem é? - tomei coragem em perguntar, mas ele ignorou minha pergunta.

- Anna? Então... Não é ela... – Sua voz soou triste quando ele disse a última frase, mostrando o quanto estava decepcionado por não encontrar a tal Tiina.

Levantei-me e voltei a encará-lo em meio à penumbra da caverna.

- Quem é você? – perguntei novamente, torcendo para não ser ignorada dessa vez.

- Sou Kaarl, e você, Anna, não é? – disse ele sorrindo, como se esnobasse meu nome. – Quem é e o que faz na minha caverna?

- Sua caverna? De onde eu venho às pessoas tem casas, engraçado. – Foi minha vez de esnobá-lo, mas ele fechou o rosto demonstrando não ter gostado da minha piada. – Na verdade, não sei como vim parar aqui, estou perdida. – Respondi por fim me sentindo vencida, quem sabe de alguma forma ele pudesse me ajudar.

- Disse que está perdida?

- Eu caí, ou fui puxada, para dentro de um lago congelado e quando acordei estava aqui nesse lugar estranho.

- Lago? Congelado?

- Dá para parar de repetir o que eu falo e me dizer onde estou?

Ele sorriu.

- Já vi que é nervosinha tanto quanto ela.

- Ela quem?

- Tiina, são realmente idênticas. Até o gênio parece ser o mesmo...

- Afinal, quem é essa tal de Tiina de quem você tanto fala? Onde ela está? E como pode estar falando comigo? Está com um punhal cravado no peito, não deveria nem ter forças para abrir a boca, ou pior, deveria estar morto.

- Foi você...

- O quê?

- Foi você que me deu forças. Normalmente, eu não falo, tenho me mantido vivo com a ajuda de um fiel súdito que me traz comida e água; ele cuida de meus ferimentos há pelo menos uns 60 anos, desde o dia que ela me prendeu aqui.

Anna balançou a cabeça.

- Ela? Está falando da tal Tiina, não é? Mas, como pode ser verdade?  60 anos? Você não aparenta ter mais que 20 anos.

- Realmente você não pertence à Taika, seria tolice tentar lhe explicar.

- Está me chamando de burra? – Eu cruzei os braços incrédula, quem aquele cara pensava que era talvez eu devesse sair dali e ir procurar por ajuda, como um homem preso a uma rocha poderia me ajudar de qualquer forma?

Decidi dar as costas a ele e voltar a enfrentar o vento frio em busca de ajuda.

- Espera!  Aonde vai?

- Buscar ajuda, oras afinal logo se vê que você está impossibilitado de me ajudar.

Ele soltou um riso sem humor, em tom de zombaria e depois voltou a me encarar.

- Certo, será que pode me alcançar à jarra de água? Estou com sede.

- Claro.

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