Eu estava cega de raiva, irada por ter sido enganada, me sentindo traída e ao mesmo tempo confusa. Tudo que eu queria era sair dali, fugir para bem longe. Meu vô veio ao meu encontro para me segurar, mas eu desviei dele e sai correndo pela porta dos fundos, cruzei o portão de madeira e corri pela calçada como uma doida. Nas ruas, as pessoas andavam para o trabalho e me olhavam assustadas, enquanto eu tentava desviar delas sem muito sucesso; devo ter trombado em uns três. Meus olhos estavam embaçados e minha garganta seca. Limpei o rosto com as mãos e segui correndo. Olhei para trás tentando ver se alguém vinha trás de mim, mas meu avô ficara para trás.
Dobrei a esquina, entrando no terreno baldio da casa cinza, a casa abandonada que eu e meus colegas costumávamos morrer de medo de cruzar na frente quando eu era criança; mas eu não era mais criança e, para ser sincera, aquele me parecia um ótimo lugar para chorar em paz. Tinha neve sobre os meus pés e logo ali perto uma árvore seca, com galhos retorcidos, balançava ao vento fazendo um rangido estranho. Aproximei-me dela e cai de joelhos no chão, perto do lago congelado; o gelo refletia meu rosto vermelho e ofegante, eu estava tão exausta que tudo que eu queria era poder descansar e fechar meus olhos sabendo que quando os abrisse novamente tudo que eu tinha ouvido teria sido um pesadelo.
Nessa hora, ouvi alguém chamar.
- Menina! O que faz perto do lago? Afaste-se, não é permitido pescar aí...
Olhei para trás e vi o guarda se aproximando de mim. Respirei fundo, estava em uma enrascada, pensei em gritar de volta dizendo que eu não queria pescar, que estava em um momento ruim, mas acho que ele não entenderia.
Neste momento olhei novamente para o meu rosto refletido no espelho de gelo na minha frente e percebi que minhas lágrimas tinham derretido o gelo, confusa toquei o lago e entendi que não estava errada, como passe de mágica o gelo se desfez por completo e minha mão foi puxada para dentro da água, mergulhei nas águas sem querer, alguma coisa parecia me puxar cada vez mais para baixo, tentei lutar com todas as minhas forças para me livrar daquilo que me prendia, até que finalmente consegui me desvencilhar e escapar para a superfície, nadei emergindo nas águas do lago já não mais congelado, e foi aí que constatei que aquele não era o mesmo lago em que eu havia caído e que algo estava muito confuso ali.
Diante de meus olhos, um bosque escuro e cheio de árvores se fazia presente. Balancei a cabeça. De onde aquilo tinha saído? Não tinha bosques no meio da cidade de Naantaly. Olhei em volta, mas não vi a cidade; não havia casas, carros, ruas, nada... Apenas o lago, de onde eu supostamente tinha saído algumas árvores e o nada...
Pisei em alguma coisa que se mexeu embaixo do meu pé e reclamou.
- Vê se olha por onde anda sua gigantona!
Olhei para baixo e me assustei ao perceber que era uma flor. Uma flor tinha falado comigo; me apavorei e sai correndo dali, sem rumo. Para onde eu devia ir? Onde eu estava? Que lugar era aquele? Será que eu estava sonhando? Mas era tudo tão real! Onde estavam meu avô e minha avó? Onde estava a minha casa?
Parei e respirei fundo, fechando os olhos. Assim que eu voltasse a abri-los, tudo voltaria ao normal, eu estaria deitada na minha cama, o dia não teria amanhecido ainda e, é claro, eu ainda seria neta dos meus avós... Não, nem tudo era como eu gostaria que fosse. Assim que abri os olhos, o mesmo lugar estranho voltou a assombrar minha visão, deixando-me apavorada.
Tirei o casaco encharcado que pesava sobre meu corpo e o joguei no chão. Estava muito frio ali e eu precisava me proteger do vento até que encontrasse um jeito de voltar para casa, se é que eu voltaria. Eu já começava a pensar que havia morrido afogada no lago e que estava no Paraíso, esperando meu julgamento. Encontrei ali perto uma pequena caverna; não tinha muita claridade, apenas a penumbra clareava um pouco o chão, o suficiente para que eu pudesse andar. Mas, pelo menos, não tinha vento ali e o lugar estava mais quente. Senti meu corpo ficar mais confortável à medida que ia para o fundo da caverna, até que meus olhos visualizaram algo que me deixou paralisada! Devo ter piscado pelo menos umas dez vezes, sem acreditar no que eu via.
Sobre uma pequena rocha, a uns 30 cm do chão, havia um rapaz que parecia ter sido esculpido ali, se não fosse tão humano. Suas pernas estavam presas pelas raízes grossas de alguma árvore; as raízes brotavam das pedras, como se elas fossem uma terra fértil; suas roupas estavam sujas e rasgadas, porém, logo se via que eram boas roupas. A camisa de linho, que outrora havia sido branca, estava imunda, mas tinha corte acentuado e boa fazenda. E disso eu entendia, já que minha vó era costureira. O mais impressionante até ali não eram as raízes ou o rapaz, mas um punhal cravado em seu peito de onde as raízes pareciam brotar. Seu rosto estava virado para o lado e caído... Estaria morto? - perguntei-me; mas, se estivesse, como podia não ter apodrecido ali? Como podia não estar com mau odor? Mas, se não estava morto como podia estar vivo com um punhal cravado em seu coração?
Subi na pedra, ficando um pouco alta do chão, e me aproximei dele. Apesar de sujo, ele não cheirava mal, o cheiro era algo amadeirado, que se misturava ao cheiro da caverna; os cabelos, um pouco longos demais, cobriam-lhe a face escondendo seu rosto; passei a mão por seus braços; um deles estava livre e o outro estava sobre o punhal, como se ele tivesse tentado remover a faca.
Minhas mãos passearam pelos seus ombros e chegaram a seus cabelos que estavam tão sujos que mal meus dedos podiam penetrar entre eles. Acredito que eram de um tom de castanho, mas era impossível saber a verdade sem antes lavá-los. Tomei um pouco mais de coragem e toquei seu rosto, desenhando o queixo e passando o polegar pelos lábios, que pareciam um pouco ressecados; porém, ele estava quente, eu podia sentir sua respiração... Vivo, ele estava vivo! Balancei a cabeça desacreditando e comecei a empurrar o cabelo dele para o lado na esperança de ver como seu rosto era de verdade. Lembrei que meu celular estava no bolso da calça; tirei-o do bolso torcendo para que ainda funcionasse. Assim que a luz ligou, lembrei-me de agradecer ao meu avô por ter comprado um telefone à prova d’água. Era óbvio que ali não tinha sinal algum de telefone, mas, com a claridade da tela eu podia ver melhor o rosto do rapaz. Levantei a mão para aproximar o aparelho, e quando o fiz levei um grande susto:
Seus olhos com enormes pupilas dilatadas se abriram e encontraram os meus, a íris de um tom verde esmeralda tão claro me fez perder a respiração. Soltei um grito alto, dei um passo para trás me esquecendo de onde estava, e fui ao chão, caindo com tudo, de costas. O telefone caiu de minha mão e se apagou na mesma hora; meu coração estava tão disparado quanto um acelerador de carro de corrida. E eu não sabia se era a minha respiração que fazia todo aquele barulho ou se era a dele. Eu tinha medo até mesmo de me mexer, pois eu não tinha certeza se eu havia despertado a fúria de algum monstro das cavernas, apesar de que, para monstro, ele não servia, porque mesmo sujo e desleixado sua beleza era extasiante.
- Tiina? - Ouvi a voz aveludada cortar o silêncio e imaginei que fosse a dele.
- Tiina, é você?
Tentei controlar minha respiração e levantei meu corpo com os braços.
- Não, na verdade meu nome é Anna. E você, quem é? - tomei coragem em perguntar, mas ele ignorou minha pergunta.
- Anna? Então... Não é ela... – Sua voz soou triste quando ele disse a última frase, mostrando o quanto estava decepcionado por não encontrar a tal Tiina.
Levantei-me e voltei a encará-lo em meio à penumbra da caverna.
- Quem é você? – perguntei novamente, torcendo para não ser ignorada dessa vez.
- Sou Kaarl, e você, Anna, não é? – disse ele sorrindo, como se esnobasse meu nome. – Quem é e o que faz na minha caverna?
- Sua caverna? De onde eu venho às pessoas tem casas, engraçado. – Foi minha vez de esnobá-lo, mas ele fechou o rosto demonstrando não ter gostado da minha piada. – Na verdade, não sei como vim parar aqui, estou perdida. – Respondi por fim me sentindo vencida, quem sabe de alguma forma ele pudesse me ajudar.
- Disse que está perdida?
- Eu caí, ou fui puxada, para dentro de um lago congelado e quando acordei estava aqui nesse lugar estranho.
- Lago? Congelado?
- Dá para parar de repetir o que eu falo e me dizer onde estou?
Ele sorriu.
- Já vi que é nervosinha tanto quanto ela.
- Ela quem?
- Tiina, são realmente idênticas. Até o gênio parece ser o mesmo...
- Afinal, quem é essa tal de Tiina de quem você tanto fala? Onde ela está? E como pode estar falando comigo? Está com um punhal cravado no peito, não deveria nem ter forças para abrir a boca, ou pior, deveria estar morto.
- Foi você...
- O quê?
- Foi você que me deu forças. Normalmente, eu não falo, tenho me mantido vivo com a ajuda de um fiel súdito que me traz comida e água; ele cuida de meus ferimentos há pelo menos uns 60 anos, desde o dia que ela me prendeu aqui.
Anna balançou a cabeça.
- Ela? Está falando da tal Tiina, não é? Mas, como pode ser verdade? 60 anos? Você não aparenta ter mais que 20 anos.
- Realmente você não pertence à Taika, seria tolice tentar lhe explicar.
- Está me chamando de burra? – Eu cruzei os braços incrédula, quem aquele cara pensava que era talvez eu devesse sair dali e ir procurar por ajuda, como um homem preso a uma rocha poderia me ajudar de qualquer forma?
Decidi dar as costas a ele e voltar a enfrentar o vento frio em busca de ajuda.
- Espera! Aonde vai?
- Buscar ajuda, oras afinal logo se vê que você está impossibilitado de me ajudar.
Ele soltou um riso sem humor, em tom de zombaria e depois voltou a me encarar.
- Certo, será que pode me alcançar à jarra de água? Estou com sede.
- Claro.
Peguei a jarra de água em minhas mãos. Logo ela começou a vibrar em uma intensidade grande demais para que eu pudesse segurá-la e sua água passou a se mexer dentro dela, saltando para fora. Soltei a jarra me assustando e ela caiu no chão e quebrou, fazendo cacos por todos os lados da caverna. - Sinto muito, eu não sei como pude deixar cair, eu... - Tudo bem, eu não estava com sede. Na verdade, apenas pedi que me alcançasse à água porque queria fazer um teste com você. - Teste? - Um teste de magia. Apenas aqueles que têm a magia no sangue conseguem dar vida aos elementos, e você tem. Isso faz de você uma bruxa. - Ok, eu não estou ficando louca, eu não estou... - Você é uma delas... Pronto pensei, tudo que ele tinha de lindo ele tinha de louco. - Uma delas? Do que está falando? - É uma Rasmus, não é? Parei para observá-lo. Ele sabia meu sobrenome, ele me conhecia, sabia quem eu era, isso fazia dele um pouc
Quando eu finalmente acordei, o sol se escondia atrás das montanhas rochosas fazendo o pôr do sol mais lindo que eu já tinha visto, sem prédios imensos para estragar a vista, apenas uma imensidão de arvores bem copadas e um campo livre. Foi então que me dei conta de que eu estava em um quarto muito alto do chão. Olhei pela janela vendo quão pequenas as pessoas pareciam do lado de baixo. O que era aquilo? Uma torre? As paredes eram sólidas e um lustre grande brilhava sobre a minha cabeça. O quarto imenso tinha ares de grandeza, muito diferente ao que eu estava acostumada. Um senhor de meia idade adentrou no quarto com algo sobre seu braço. - Senhorita, está acordada! - Sim, onde estou? - Meu senhor a encontrou; estava desmaiada. Preocupado com sua segurança, a trouxe para o castelo. Estamos todos organizando uma festa para o príncipe, o retorno dele nos deixou imensamente felizes. - Príncipe? Eu estou em um castelo então? - Sim, senhorita, aliá
- Eu quero a minha casa, só quero voltar para casa, será que é tão difícil entender isso? Logo, dois pares de asa se acenderam novamente, e com eles mais dois e mais dois e outros; e tudo voltou a ficar claro. Levantei a cabeça e observei a miniatura de fada que dançava na minha frente. Uma, mais gordinha, preveniu aquela que estava mais próxima. - Não se aproxime tanto! Ela pode te atacar! A fada pequena se afastou um pouco... Olhei para ela e enxuguei as lágrimas. - Não vou machucá-las, eu juro. Ela me observou: seus olhos eram tão pequenos que eu mal podia vê-los. - Não vai nos machucar! Quando disse isso, todas as outras, que ainda estavam se escondendo, apareceram e a luz ficou ainda mais forte. - Quem é você e por que está chorando, menina? Olhei para ela e enxuguei os olhos. - Estou perdida, vim mais cedo para esse lugar, não sei como, e não sei como voltar para casa. Quero minha avó...
- O cavalo de um príncipe não deveria ser branco, como nos filmes da Disney? - Não sei o que é esse negócio de filme ou de Disney, mas quanto ao cavalo, eu gosto muito desse. É um animal fiel e benevolente, ele me esperou durante os 60 anos que estive preso, por anos não permitiu que ninguém montasse nele, agora que voltei ele me recebeu como da primeira vez. - Mas isso é impossível! Um cavalo não vive mais do que 30 anos! Como poderia ser o seu cavalo? - Entenda uma coisa Anna, em Taika, tudo é possível, aqui animais não são apenas simples animais há magia. Lá vinha aquela história de magia de novo, será que em dado momento ele voltaria a dizer que eu era uma bruxa? Por que se ele voltasse eu provavelmente saltaria do cavalo e não olharia mais na cara dele. Apoiei minha cabeça no ombro dele e inspirei o cheiro gostoso que vinha daquela pele. Mais um pouquinho e eu poderia tocar em seu pescoço, aquele pescoço... Ele mexeu os ombros ficando des
- Certo, eu prometi lhe contar tudo e vou lhe contar... – Ele fez uma pausa e se levantou. – Há muitos anos, ninguém sabe ao certo quantos, uma mulher dominada pela raiva e pelo ódio lançou uma maldição contra o povo de Taika, está maldição pôs todos para dormir por cerca de 100 anos. - Como em a bela adormecida? - O que? Certo era melhor eu me calar, aquilo não era um conto de fadas, fiz um sinal para que ele prosseguisse por vezes ele me olhava estranho esperando eu soltar mais uma coisa sem sentido. - Essa maldição parecia ter sido quebrada com a chegada de Gerttu, uma descendente de Rasmus que fez todos acordarem. - Descendente de Rasmus? Então minha família tem haver com a maldição? - Isso, a maldição foi lançada devido ao um ódio que a rainha tinha da própria família, a ideia era amaldiçoar todos da família, porém um bebe foi salvo por um súdito e levado a outro mundo. - E é esse bebe quem voltou? - Não exatamente
Quando saímos do quarto, Aila ainda ria para mim. Hermes e Kaarl vinham no corredor e Kaarl me olhou de alto a baixo. - Que roupas são essas? Aila se encolheu, Hermes interveio. - Não sei senhor, deixei lindos vestidos para ela hoje mais cedo! - Eu não os quis! – disse dando um passo à frente – Inclusive os dei para Aila, ela, porém, não os aceitou. Como não tinha o que vestir, fez a gentileza de me emprestar um vestido dela já que não posso usar calças por aqui! Kaarl escondeu o sorriso. - Anna, pedi que Hermes conseguisse os vestidos mais lindos de toda Taika. Jogou todo o trabalho dele no lixo. - Não consigo andar com aquelas coisas, são pesadas e desconfortáveis. Já disse, pode dar todos a Aila, até por que não precisarei deles, prometeu que eu voltaria hoje para casa! Kaarl olhou para Hermes. - Recolha os vestidos e procure por coisas mais confortáveis para a senhorita Anna. Eu deveria t
Senti-me triste, triste por ter voltado, triste porque não acreditavam em mim, não achavam que eu fosse capaz. Minha tia saiu do quarto junto com minha avó, eu era prisioneira dentro de minha casa, isso não podia estar acontecendo Se eu soubesse que seria assim, não teria voltado. Eu entendia que estivessem me protegendo, mas a omissão do quem eu era também era uma forma de destruição. Aquilo que eu tinha feito a pouco tinha acontecido do nada... E se acontecesse um dia, enquanto eu estivesse na aula? E se Kaarl tivesse razão e eles viessem atrás de mim e destruíssem minha cidade? Três dias se passaram, até que finalmente me permitiram sair de meu quarto para ir à escola. Porém, meu avô me levava e ia me buscar para ter certeza de que nada aconteceria no percurso. Ele também deixou todos meus professores avisados de que eu passava por uma crise de identidade e que não deveriam permitir que eu ficasse sozinha. Então, onde quer que eu fosse, eu tinha um guard
Assim que entrou no quarto, com cuidado, ele viu uma mulher não muito alta, parada de costas para a janela. Não era uma camponesa, não usava vestido, mas calças; tinha calçados de salto nos pés e postura elegante. Hermes tinha razão. Kaarl não a conhecia, e ao considerar suas roupas ela não devia ser do mundo dele, mas do mundo de Anna. - Eu gostava de ficar aqui, passava horas do dia observando a beleza do sol poente de vocês sem a fumaça das indústrias, apenas o verde das matas. Hely foi uma garota de sorte. A mulher falava sem se virar. Kaarl aproximou-se com cuidado. - Desculpe, mas quem é você? Ela sorriu de canto e então se virou. Seu rosto era familiar, ele conhecia, porém, não sabia quem era. - Hoje, quebrei uma promessa muito difícil de ser quebrada. Eu jurei nunca mais vir até aqui e olha só onde estou agora – Novamente, ela sorriu tristemente. – Sou Tarja, irmã mais velha de Hely, ou melhor, irmã de criação m