Sabe aquela sensação de liberdade que as pessoas costumam dizer que os órfãos sentem por não terem ninguém para lhe impor limites, pois é... Nunca tive. Talvez fosse por que eu não era uma órfã propriamente dita já que eu apenas não tinha sido criada pelos meus pais, na verdade eu nem os tinha conhecido, não sei quem foi meu pai, minha vó disse que não o conheceu, e minha mãe... Bom, ela desapareceu do hospital no mesmo dia que eu nasci, uns dizem que ela surtou por causa do uso excessivo de drogas, outros dizem que ela apenas não queria o compromisso de limpar fraldas, eu não sei ao certo o que aconteceu ou por que ela me abandonou, mas apesar de tudo isso ter acontecido comigo eu nunca fui uma adolescente revoltada ou tive crises existenciais, na verdade eu era bem resolvida com isso.
Sentada em uma cadeira estreita demais para o meu traseiro, me senti desconfortável; mas não tão desconfortável como, com certeza, estava à diretora do colégio, que tentava se livrar de um professor pervertido que insistia em dançar com ela na frente de todos.
Levantei-me meio a contragosto, tentando passar despercebida pelos outros, e escapei pela porta dos fundos. Mais alguns metros e eu teria a bendita liberdade que todos os adolescentes almejavam. Olhei para os lados para ter certeza de que não estava sendo seguida, e então pulei no muro que dava acesso aos fundos da escola “Isso, liberdade!”, minha mente gritava em êxtase pela minha primeira fuga da escola bem-sucedida.
Até que virei à esquina e deparei com meu avô; ele tinha as mãos nos bolsos da sua velha calça de sarja e usava sua boina verde escuro; e estava me observando com o rosto sério.
- Eu deveria ter imaginado que fugiria da aula.
- Vovô, essas festas de escola são muito chatas, eu não me enturmo fácil, sabe como é e, bom, tem os garotos eles preferem as meninas populares.
- Sua mãe era popular na escola.
- Sim, ela era, era popular, bonita, inteligente, tinha muitos amigos, a pessoa perfeita.
Meu avô soltou uma gargalhada.
- Tem razão, então ela saiu da escola para ir à faculdade, tornou-se hip e virou a cabeça da sua avó em um inferno. Vivia em bares declamando poemas sombrios e tristes e pelos cantos da cidade usando drogas até que conheceu seu pai, engravidou, e você nasceu.
- Aí, ela fugiu do hospital e me deixou para trás, e nunca mais ouvimos falar dela. Tem ideia de quantas vezes eu ouvi essa história? Por que a está contando pela milésima vez?
- Porque achei que era uma boa hora para mostrar a você a sorte que tem em nos ter para lhe amparar pelo melhor caminho.
- Não vai me obrigar a voltar lá, vai?
- Não, mas deveria. Vamos dar uma volta, logo estará na hora de voltar para casa e sua avó não vai desconfiar que você fugiu.
Abracei meu avô. Ele era, sem dúvidas, o melhor avô desse mundo. Eu sabia que estava errada por fugir, ele também sabia que eu merecia um bom castigo, mas ainda assim ele entendia o meu lado.
“Olá, meu nome é Anna, Anna Elizabeth Rasmus, tenho 16 anos...”.
E era assim todos os anos, quando os professores pediam para escrever um texto sobre nós mesmos. As palavras morriam logo na primeira frase: o que eu iria dizer? Que eu era criada pelos meus avós que, apesar de estarem juntos há 50 anos, viviam de pé de guerra? Que eu tinha tios completamente loucos e que em toda janta de família rolava uma guerra de comida? Que minha tia mais velha estava tentando me enlouquecer dizendo que havia outros mundos por ai e que eu certamente pertencia a outro lugar? Talvez eu devesse escrever sobre a vida louca da minha mãe, que tinha virado hip e fugido do hospital depois de dar à luz, ou falar sobre o meu pai que eu nunca conheci... No fim das contas, não havia nada que eu pudesse escrever de interessante.
A maioria dos textos dos meus amigos era algo como meu pai faz isso, minha mãe aquilo, eu vou fazer faculdade e me tornar um excelente profissional... E lá estava eu tentando pensar nisso e amassando mais uma folha de papel com um texto fracassado.
Eu moro na Finlândia, mais precisamente em Naantaly, aqui faz muito frio e no inverno pode chegar até a – 16 graus, com uma sensação térmica bem menor que isso, como se já não fosse o bastante...
O lado bom de ser quem eu era, era que ninguém ficava me cercando em casa porque achava que eu podia pirar assim como minha mãe tinha pirado e fugir de casa; então, meus tios não pegavam muito no meu pé. Vesti um casaco grosso e comecei a descer as escadas.
- Vocês precisam parar de mentir para ela, ela precisa saber quem é! Desde que ela nasceu, essa mentira tem feito dela uma refém. Não entendem que a estão prejudicando lhe negando a verdade?
- Estamos protegendo ela! Hely morreu porque não intercedemos, porque permitimos que ela soubesse da verdade. Não cometeremos o mesmo erro com Anna.
Morta? Minha mãe estava morta? Mesmo sem conhecê-la, senti um nó no estomago. Por que eles não tinham me contado? O que teria acontecido? Eu não era mais tão criança, tinha o direito de saber o que tinha acontecido com ela. Teria sido um acidente? Ou seria verdade o que todos falavam: que ela era uma drogada; será que era por causa de drogas que ela tinha morrido? Ainda assim, eu merecia saber a verdade. Aproximei-me para escutar melhor, porém, pisei em falso na escada e precisei me segurar com pressa no corrimão para não cair.
- Anna?
Minha avó me olhou séria, parecendo ficar preocupada com o que eu já tinha ouvido. Eu fiquei séria, engolindo minha saliva sem saber se eu corria dali ou se perguntava o que estava acontecendo. Minha tia rapidamente pegou a bolsa e saiu para a rua.
- O que estavam falando sobre minha mãe? – tomei coragem para perguntar ao meu avô, que suspirou longamente e passou a mão no rosto.
- Nada importante querida, sua tia apenas ouviu boatos na cidade e veio nos contar, somente isso.
Eu deveria ter insistido, ter dito a ele que eu tinha ouvido a conversa e que eu sabia que não era isso. Eu devia ter dito que tinha escutado sobre a morte de minha mãe, mas por algum motivo resolvi ficar calada. Durante toda a vida eles tinham feito de tudo para que eu tivesse uma boa educação, se estavam tentando me proteger de algo, então era porque era melhor eu não saber. Ainda assim, eu daria um jeito de descobrir a verdade; o meu jeito, é claro.
Passei o dia no quarto de minha avó procurando pelas fotos de família que eu sabia que ela tinha escondido lá em algum lugar, mas não tive muita sorte. J á estava desistindo, quando uma fotografia caiu de cima do roupeiro; era uma foto de um homem alto, segurando um bebe nos braços. Minha vó entrou no quarto e levou um susto a me ver ali.
- Anna, o que faz aqui?
- Estava procurando fotos de família, preciso de uma foto de minha mãe para um trabalho de escola.
Minha avó empalideceu sem motivo, era apenas uma foto de minha mãe, eu sabia que ela tinha sumido com todas as fotos, mas não era possível que não tivesse sobrado uma.
- Trabalho de que disciplina?
- Filosofia... Ora, qual o problema vovó, é só uma foto!
- Onde achou essa que está na sua mão?
- Ela caiu quando fui empurrar a caixa no lugar, mas não sei quem é.
- Deixe disso, vou encontrar uma foto para você. Agora, saia do meu quarto; não gosto de ninguém mexendo nessas coisas.
Dei de ombros, era melhor não insistir, mas a cada segundo eu ficava mais intrigada com tudo: por que tanto mistério? Por que tantos segredos?
À noite, jantei em silêncio, e quando minha tia se retirou eu fui atrás dela; ela poderia me contar.
- Tia Tarja?
- Diga querida.
- Por que eles não querem que eu saiba que a mamãe morreu?
Minha tia me olhou séria, largando o leptop no mesmo instante e o colocando para o lado.
- Como sabe disso?
- Eu ouvi enquanto conversavam, perguntei para minha avó e ela desconversou; qual é o problema?
- Querida, eu sou proibida de tocar nesse assunto, me perdoe, mas se eu lhe contar, seus avôs me colocam para fora daqui.
- Eles não fariam isso.
- Sim, eles fariam, sinto por não poder ajudar Anna, mas isso é algo que deve saber por seus avós.
- Eles nunca vão me contar a verdade.
- Sinto muito.
Eu me levantei com raiva. Não adiantava brigar com minha tia, ela não tinha culpa, ela não tinha escondido isso de mim, não tinha mentido para mim. Eram meus avós quem eu devia confrontar. Resolvi ir me deitar, porém, não dormi durante toda a noite pensando nos motivos que eles teriam para esconder a verdade de mim. Quando o sol entrou por trás da cortina e uma brisa soprou pelo quarto, eu levantei rapidamente; estava cansada de ficar na cama, queria perguntar a eles a verdade antes que meus tios levantassem. E dessa vez eu não descansaria até que descobrisse tudo.
Desci as escadas e, antes de entrar na cozinha, ouvi claramente quando minha avó reclamou com meu avô.
- Anna está desconfiada, não vai demorar muito para descobrir que não é nossa neta.
- Não seja louca velha, ela nem desconfia que Hely não seja nossa filha.
- Por favor, meu velho, eu a peguei em meu quarto ontem procurando as fotos de família. Eu e você somos ruivos, assim como as tias e tios dela, somente ela e a mãe têm aqueles cabelos pretos e a aquela pele branquinha. E os olhos? Já viu como os olhos dela lembram os da mãe? Azuis, azuis como duas pedras preciosas, qualquer um desconfiaria, é só uma questão de tempo para ela descobrir!
Meus braços caíram pelo corpo e fiquei sem ação. Tudo que eu tinha ensaiado até então não fazia nenhum sentido. Eu não era neta deles? Nem minha mãe sua filha? Então quem eu era? Quem era minha mãe?
- Eu não sou neta de vocês?
Consegui sussurrar tão baixo, que achei que minha voz nem tinha saído. Porém, foi o suficiente para que os dois se virassem e me olhassem assustados. Minha avó levou a mão na boca e deu dois passos para trás, sem saber o que fazer; meu avô veio em minha direção como se quisesse me amparar, porém, eu disparei para o outro lado da cozinha.
- Se eu não sou quem eu acho que sou, então, quem eu sou? Quem é minha mãe? E o que houve com ela?
- Querida, por favor... Acalme-se!
- Vocês mentiram para mim! Mentiram!
Eu estava cega de raiva, irada por ter sido enganada, me sentindo traída e ao mesmo tempo confusa. Tudo que eu queria era sair dali, fugir para bem longe. Meu vô veio ao meu encontro para me segurar, mas eu desviei dele e sai correndo pela porta dos fundos, cruzei o portão de madeira e corri pela calçada como uma doida. Nas ruas, as pessoas andavam para o trabalho e me olhavam assustadas, enquanto eu tentava desviar delas sem muito sucesso; devo ter trombado em uns três. Meus olhos estavam embaçados e minha garganta seca. Limpei o rosto com as mãos e segui correndo. Olhei para trás tentando ver se alguém vinha trás de mim, mas meu avô ficara para trás. Dobrei a esquina, entrando no terreno baldio da casa cinza, a casa abandonada que eu e meus colegas costumávamos morrer de medo de cruzar na frente quando eu era criança; mas eu não era mais criança e, para ser sincera, aquele me parecia um ótimo lugar para chorar em paz. Tinha neve sobre os meus pés e logo a
Peguei a jarra de água em minhas mãos. Logo ela começou a vibrar em uma intensidade grande demais para que eu pudesse segurá-la e sua água passou a se mexer dentro dela, saltando para fora. Soltei a jarra me assustando e ela caiu no chão e quebrou, fazendo cacos por todos os lados da caverna. - Sinto muito, eu não sei como pude deixar cair, eu... - Tudo bem, eu não estava com sede. Na verdade, apenas pedi que me alcançasse à água porque queria fazer um teste com você. - Teste? - Um teste de magia. Apenas aqueles que têm a magia no sangue conseguem dar vida aos elementos, e você tem. Isso faz de você uma bruxa. - Ok, eu não estou ficando louca, eu não estou... - Você é uma delas... Pronto pensei, tudo que ele tinha de lindo ele tinha de louco. - Uma delas? Do que está falando? - É uma Rasmus, não é? Parei para observá-lo. Ele sabia meu sobrenome, ele me conhecia, sabia quem eu era, isso fazia dele um pouc
Quando eu finalmente acordei, o sol se escondia atrás das montanhas rochosas fazendo o pôr do sol mais lindo que eu já tinha visto, sem prédios imensos para estragar a vista, apenas uma imensidão de arvores bem copadas e um campo livre. Foi então que me dei conta de que eu estava em um quarto muito alto do chão. Olhei pela janela vendo quão pequenas as pessoas pareciam do lado de baixo. O que era aquilo? Uma torre? As paredes eram sólidas e um lustre grande brilhava sobre a minha cabeça. O quarto imenso tinha ares de grandeza, muito diferente ao que eu estava acostumada. Um senhor de meia idade adentrou no quarto com algo sobre seu braço. - Senhorita, está acordada! - Sim, onde estou? - Meu senhor a encontrou; estava desmaiada. Preocupado com sua segurança, a trouxe para o castelo. Estamos todos organizando uma festa para o príncipe, o retorno dele nos deixou imensamente felizes. - Príncipe? Eu estou em um castelo então? - Sim, senhorita, aliá
- Eu quero a minha casa, só quero voltar para casa, será que é tão difícil entender isso? Logo, dois pares de asa se acenderam novamente, e com eles mais dois e mais dois e outros; e tudo voltou a ficar claro. Levantei a cabeça e observei a miniatura de fada que dançava na minha frente. Uma, mais gordinha, preveniu aquela que estava mais próxima. - Não se aproxime tanto! Ela pode te atacar! A fada pequena se afastou um pouco... Olhei para ela e enxuguei as lágrimas. - Não vou machucá-las, eu juro. Ela me observou: seus olhos eram tão pequenos que eu mal podia vê-los. - Não vai nos machucar! Quando disse isso, todas as outras, que ainda estavam se escondendo, apareceram e a luz ficou ainda mais forte. - Quem é você e por que está chorando, menina? Olhei para ela e enxuguei os olhos. - Estou perdida, vim mais cedo para esse lugar, não sei como, e não sei como voltar para casa. Quero minha avó...
- O cavalo de um príncipe não deveria ser branco, como nos filmes da Disney? - Não sei o que é esse negócio de filme ou de Disney, mas quanto ao cavalo, eu gosto muito desse. É um animal fiel e benevolente, ele me esperou durante os 60 anos que estive preso, por anos não permitiu que ninguém montasse nele, agora que voltei ele me recebeu como da primeira vez. - Mas isso é impossível! Um cavalo não vive mais do que 30 anos! Como poderia ser o seu cavalo? - Entenda uma coisa Anna, em Taika, tudo é possível, aqui animais não são apenas simples animais há magia. Lá vinha aquela história de magia de novo, será que em dado momento ele voltaria a dizer que eu era uma bruxa? Por que se ele voltasse eu provavelmente saltaria do cavalo e não olharia mais na cara dele. Apoiei minha cabeça no ombro dele e inspirei o cheiro gostoso que vinha daquela pele. Mais um pouquinho e eu poderia tocar em seu pescoço, aquele pescoço... Ele mexeu os ombros ficando des
- Certo, eu prometi lhe contar tudo e vou lhe contar... – Ele fez uma pausa e se levantou. – Há muitos anos, ninguém sabe ao certo quantos, uma mulher dominada pela raiva e pelo ódio lançou uma maldição contra o povo de Taika, está maldição pôs todos para dormir por cerca de 100 anos. - Como em a bela adormecida? - O que? Certo era melhor eu me calar, aquilo não era um conto de fadas, fiz um sinal para que ele prosseguisse por vezes ele me olhava estranho esperando eu soltar mais uma coisa sem sentido. - Essa maldição parecia ter sido quebrada com a chegada de Gerttu, uma descendente de Rasmus que fez todos acordarem. - Descendente de Rasmus? Então minha família tem haver com a maldição? - Isso, a maldição foi lançada devido ao um ódio que a rainha tinha da própria família, a ideia era amaldiçoar todos da família, porém um bebe foi salvo por um súdito e levado a outro mundo. - E é esse bebe quem voltou? - Não exatamente
Quando saímos do quarto, Aila ainda ria para mim. Hermes e Kaarl vinham no corredor e Kaarl me olhou de alto a baixo. - Que roupas são essas? Aila se encolheu, Hermes interveio. - Não sei senhor, deixei lindos vestidos para ela hoje mais cedo! - Eu não os quis! – disse dando um passo à frente – Inclusive os dei para Aila, ela, porém, não os aceitou. Como não tinha o que vestir, fez a gentileza de me emprestar um vestido dela já que não posso usar calças por aqui! Kaarl escondeu o sorriso. - Anna, pedi que Hermes conseguisse os vestidos mais lindos de toda Taika. Jogou todo o trabalho dele no lixo. - Não consigo andar com aquelas coisas, são pesadas e desconfortáveis. Já disse, pode dar todos a Aila, até por que não precisarei deles, prometeu que eu voltaria hoje para casa! Kaarl olhou para Hermes. - Recolha os vestidos e procure por coisas mais confortáveis para a senhorita Anna. Eu deveria t
Senti-me triste, triste por ter voltado, triste porque não acreditavam em mim, não achavam que eu fosse capaz. Minha tia saiu do quarto junto com minha avó, eu era prisioneira dentro de minha casa, isso não podia estar acontecendo Se eu soubesse que seria assim, não teria voltado. Eu entendia que estivessem me protegendo, mas a omissão do quem eu era também era uma forma de destruição. Aquilo que eu tinha feito a pouco tinha acontecido do nada... E se acontecesse um dia, enquanto eu estivesse na aula? E se Kaarl tivesse razão e eles viessem atrás de mim e destruíssem minha cidade? Três dias se passaram, até que finalmente me permitiram sair de meu quarto para ir à escola. Porém, meu avô me levava e ia me buscar para ter certeza de que nada aconteceria no percurso. Ele também deixou todos meus professores avisados de que eu passava por uma crise de identidade e que não deveriam permitir que eu ficasse sozinha. Então, onde quer que eu fosse, eu tinha um guard