Domingo, 14 de março de 2018.
4h11 – Gilmor Homes, Sandtown
Baltimore, EUA.
Eu podia ouvir o barulho da chuva fraca do lado de fora. Ela batia contra a janela de um jeito melancólico. Olhei a hora no celular ao lado da cama e vi que passava das quatro da manhã, mas alguma coisa me mantinha acordada. A sensação de saudade de algo que nunca chegou a ser meu. Não sabia o que era, mas aquilo me perturbava havia semanas, como se me preparasse para alguma coisa que estava por vir. A antecipação de um vazio futuro.
Espreguicei na cama, me esticando o máximo que consegui. Olhando para o vidro sem cortina, a sombra das gotas de chuva que desciam pela janela era hipnotizante. Eu seria capaz de passar horas encarando aquilo sem me cansar. Olhei novamente para o celular. Quatro e meia. Sentei na cama, colocando os pés no chão frio, e me levantei, tentando não cambalear de cansaço, enquanto tentava ir em direção ao banheiro.
Coloquei a mão na maçaneta, parei em frente à porta e pressionei a testa contra ela, fechando os olhos. Isso estava acabando comigo. Eu só precisava de uma boa noite de sono. Só isso. Abri a porta. Em frente a pia, observei minha imagem refletida no espelho. O rosto tinha olheiras, e o cabelo escuro estava desgrenhado. Suspirei me apoiando no balcão da pia e encarando a mim mesma mais de perto. Minha pele é clara, branca demais, os olhos verdes, mas opacos. Minha expressão é cansada. Cansada não: exausta.
Tinha certeza de que não conseguiria voltar a dormir. Nunca conseguia; minhas noites tinham se reduzido a duas horas de sono no máximo, e muitas outras rolando na cama sem conseguir fechar os olhos. Suspirei, abri a torneira e lavei o rosto com água fria. Os vestígios de rímel ao redor dos olhos apenas acentuavam ainda mais minhas olheiras. Encarei-me no espelho, enquanto a água escurecida pela maquiagem ia embora pelo ralo.
Queria poder lavar também o enjoo que eu estava sentindo. Noites de festas e bebidas realmente não eram sinônimos de “bem-estar”, mas fazer o quê? Era desse jeito que eu conseguia me distrair, fugir um pouco da minha vida chata e entediante. Que se resumia em estudar o dia todo e depois fazer o que me dava na telha. Podia ser uma festa ou uma volta na rua com os meus “amigos”.
Agora eu estava me preparando para entrar no banho, sentindo a cabeça latejar por causa da quantidade de álcool que eu tinha ingerido. Minha boca tinha um gosto metálico horrível, e eu queria muito vomitar. Já tinha me acostumado à essa sensação. A bebida me fazia esquecer, por alguns momentos, quem eu era, e eu precisava disso. O álcool dá essa ilusão de liberdade, mas depois do efeito entorpecente, a realidade volta a nos atingir, nos devastando por completo, e somos obrigados a encará-la novamente.
Sentei-me no piso frio do banheiro, sentindo o jato de água quente bater com força contra as minhas costas. Abracei os joelhos, suspirando. Como é que eu ia começar mais esse dia? Era como se eu estivesse perdida, num modo automático quase permanente, agindo como todos achavam que deveria, mantendo as aparências, correndo atrás do que seria o meu sonho e lutando para chegar lá, mesmo que tivesse que passar por cima de qualquer um para alcançá-lo.
São sete e quinze da manhã, faz frio aqui fora, mas está tão lindo assim, com esse céu nublado, cinza escuro. Sem vestígios do sol. Estou acordada há algumas horas, sentada no meio fio em frente ao prédio ao lado. Não consigo dormir. Não durmo há dias. Odeio isso, odeio insônia mais que tudo na vida; ficar ali deitada, o cérebro funcionando, os pensamentos gritando. Sinto o corpo todo coçar e tenho vontade de esfregar a pele até sangrar.
Quero fugir. Quero pegar a estrada, viajar sem rumo. Queria explorar a Europa como mochileira, ou percorrer toda a costa do Pacífico nos Estados Unidos. Talvez, se eu tivesse feito tudo isso, não teria acabado aqui, sem saber o que fazer. Ou, talvez, se tivesse feito tudo isso, teria acabado exatamente aqui e estaria satisfeita. Mas não fiz tudo isso, claro, porque a mulher que seria minha mãe me abandonou, e estou sozinha no mundo desde então.
Sinto falta do que nunca tive. Sinto falta deles todos os dias. Dos meus pais. Mais do que qualquer coisa, acho. É o grande vazio na minha vida, no meio da minha alma. Ou talvez isso tenha sido só o começo. Não sei. Não sei nem se isso tudo tem mesmo a ver com o fato de eu ser órfã, ou se tem a ver com tudo o que aconteceu depois, e com tudo o que aconteceu desde então.
Preciso encontrar um jeito de me fazer feliz, tenho de parar de procurar a felicidade em outros lugares. É verdade, eu faço isso, sei que faço, e de repente estou vivendo o momento e simplesmente penso: foda-se, a vida é curta.
2 anos atrás:Sábado, 28 de novembro de 2016.14h21 – Sandtown-WinchesterBaltimore, EUA.Não tem nada melhor do que a sensação de flutuar. Ou de o calor de uma mão no meu rosto, alisando meu cabelo. Se pelo menos a vida pudesse ser assim para sempre... Eu poderia viver para sempre aqui, no porão da casa da tia do Jeremy. Só paredes. Nenhuma janela. O lado de fora fica só lá fora. E aqui dentro: Jeremy: o garoto tímido que se esconde do mundo. Thomas: um cara cheio de tatuagens que assusta os normais e atrai os livres. E eu: a poeta na minha mente quando estou chapada. Vim para essa casa por segurança. Mas é só por uma semana. Eles vieram porque o s
Sábado, 28 de novembro de 2016.14h23 – Calhoun St - SandtownBaltimore, EUA.— Eu usava flores no cabelo — digo. Minha voz soa bizarra e distante. E falo de novo só para ouvir a estranheza. — Muitas. — Adoro quando ela faz isso — Thomas diz para Jeremy. Nós três relaxamos na cama grande do porão. Thomas, Jeremy e eu nos tocamos. Só nos tocamos quando estamos chapados ou bêbados ou as duas coisas. Thomas e Jeremy são melhores amigos desde a infância. E podemos fazer isso porque não conta nessas situações. Nada importa quando você se sente sem peso.Thomy passa a mão no meu cabelo de novo. O toque delicado me faz fechar os olhos e querer dormir para sempre. Um verdadeiro êxtase.
Quarta-feira, 12 de setembro de 2018. Quando volto para o abrigo, Lauren - uma garota da minha idade que ainda está no ensino médio e mora conosco - está se arrumando para sair, o que presumo ser algum encontro pago, que ela faz toda noite. Vou para meu quarto e tento estudar, mas com meus pensamentos inquietos sobre um certo garoto, ligo a pequena tv e procuro um filme.— Amy! Estou indo para uma festa — Lauren anuncia, parada na porta do quarto. — Queria muito que você fosse. Juro que não vamos passar a noite lá dessa vez. Vamos ficar só um pouquinho. Se você não for, vou ficar chateada! — Lauren insiste e eu dou risada. Ela continua falando enquanto arruma os cabelos e muda de roupa pelo menos três vezes antes de se decidir por um vestidinho verde que deixa pouquíssimo espaço para a imaginação. A cor forte ca
Mais tarde, decido pesquisar sobre garotas desaparecidas. Vou até à biblioteca pública do outro lado da cidade para poder usar a internet e ver os jornais de dias anteriores.Diante de mim, está uma pilha de impressões de artigos em jornais sobre meninas desaparecidas no estado de Maryland nos últimos doze meses.Dois meses atrás, The Daily Record havia divulgado uma matéria de capa a respeito de uma garota que havia desaparecido do campus da faculdade. A fotografia estava escura demais para que as pessoas tivessem uma ideia de como ela era, mas a descrição dizia que era morena e bonita.The Baltimore Sun: outra garota desaparecida, vista pela última vez em um cinema. Descrita como atlética e atraente. A matéria seguinte era do Baltimore Times: Uma garota desaparecida vista pela última vez perto da propriedade de Highland. Alta, c
Volto ao bar e fico perto o suficiente do Top Gun, para que ele entenda a mensagem. — Posso comprar uma bebida para você? — diz. De perto, ele está mais para o personagem de Anthony Edwards que para Tom Cruise, mas já não me importo com essas coisas. Sorrio de modo doce. — Adoro o Moscow Mule. — Não adoro não, mas a bebida com vodca, refrigerante de gengibre e limão custa pouco e é um jeito mais eficiente de se embebedar do que com as cervejas baratas, quando eu tinha que pagar pelas próprias bebidas. — Adoro seu jeito de dançar. — Top Gun diz. Bebo meu drink tu
Sim. Foi tudo o que ele disse, mas foi o suficiente para me fazer sorrir. Pelo menos eu ainda poderei vê-lo hoje, mesmo que ele esteja estranho. Chego à cafeteria antes dele. Eu estava prestes a mandar outra mensagem para confirmar, quando o vejo chegar. Não consigo evitar o sorriso. — Josh! — Amélia! — diz, imitando meu tom animado antes de sentar na cadeira à minha frente. — Você está muito animada — observa ele. — É a pesquisa — debocho e reviro os olhos, fazendo-o sorrir. Josh parece estar com um humor muito melhor do que antes. Ele queria comer alguma coisa, foi at&eac
Quarta-feira, 19 de setembro de 2018. 15h09 – Universidade de Baltimore, Baltimore – EUA.Os esquilos do campus são muito domésticos; chegam a ser abusados. Não importa o que você esteja comendo, eles sobem em você e tentam tirar a comida da sua mão. Nas quartas e sextas-feiras, eu tenho vinte e cinco minutos entre Literatura e Escrita de Ficção, e, nos últimos dias, eu vinha matando o tempo sentada aqui, na grama, à sombra, aos fundos do prédio da aula de Inglês.Não há com quem se preocupar. Ninguém além dos esquilos. Confiro as mensagens de texto, ainda que o celular não tenha vibrado. Eu não conversei com Josh desde segunda feira e ele não fez nenhum esforço para falar comigo.Eu o sinto em pé ao meu lado quando vejo que o esquilo leva um
Quarta-feira, 19 de setembro de 2018. 21h23 – Casa da Ashley - RemingtonBaltimore – EUA. Quando chego à festa na casa de Ashley, está claro que eu não conseguirei me safar se não beber muito. Entro na cozinha, e meus olhos se arregalam ao ver a quantidade de álcool espalhado ao redor. Shots de vodca, uma bebida vermelha que não tenho certeza do que é, muitas garrafas de cervejas nas bancadas e, drogas, muitas drogas. Uma gargalhada sobre a mesa chama minha atenção: Ashley e Lauren estão sentadas na minha frente, rindo alto de algo que foi dito. Sorrio bêbada, como se tivesse ouvido também.