Capítulo 2

Sábado, 28 de novembro de 2016.

14h23 – Calhoun St - Sandtown

Baltimore, EUA.

— Eu usava flores no cabelo — digo. Minha voz soa bizarra e distante. E falo de novo só para ouvir a estranheza. — Muitas.

— Adoro quando ela faz isso — Thomas diz para Jeremy. Nós três relaxamos na cama grande do porão. Thomas, Jeremy e eu nos tocamos. Só nos tocamos quando estamos chapados ou bêbados ou as duas coisas. Thomas e Jeremy são melhores amigos desde a infância. E podemos fazer isso porque não conta nessas situações. Nada importa quando você se sente sem peso.

Thomy passa a mão no meu cabelo de novo. O toque delicado me faz fechar os olhos e querer dormir para sempre. Um verdadeiro êxtase.

— De que cores? — Thomy pergunta.

— Rosa e amarelo.

— E?

— Pirulitos. Eu adorava pirulitos.

Quarta-feira, 12 de setembro de 2018.

6h15 – Gilmor Homes, Sandtown

Baltimore – EUA.

Às vezes, não tenho vontade de ir a lugar nenhum, e acho que vou ficar feliz se nunca mais tiver de colocar os pés fora do quarto. Não sinto falta nem de estudar. Só quero continuar tranquila e quentinha no meu porto seguro que é minha cama, sem me mexer.

Ajuda o dia estar escuro e frio e o tempo nublado. Ajuda estar chovendo sem parar desde ontem – uma chuva gélida, torrencial, com ventos que uivam pelas frestas da janela.

Hoje não quero ir a lugar nenhum, não quero fugir, não quero nem ir até o fim da rua. Quero ficar aqui, enfurnada com meus livros, ouvindo música e bebendo café. Mas vou precisar ir para a aula daqui a pouco, claro. Espero que a chuva se acalme.

Em trinta minutos, eu me vesti, peguei meus livros e segui a pé até a universidade. Sete horas é o momento perfeito para caminhar; é quieto e me dá a oportunidade de pensar, relaxar e recarregar as energias. Está nublado agora, sem chuva.

É o clima perfeito.

Quando entro na universidade, ouço uma discussão acalorada que chama minha atenção. De início, só vejo uma Mercedes estacionada e um homem mais velho, de costas para mim. Ele está na frente de Josh, gritando furiosamente com ele.

Fico atrás de uma árvore grande, e observo a discussão, protegida em meu esconderijo. Dá para ver que Josh está furioso, com os punhos cerrados. O homem mais velho usa um terno escuro e balança os braços, agitado, enquanto grita uma série de xingamentos horríveis e ofensivos.

Então ele dá um passo à frente, levanta o punho, e vejo Josh levar um soco na cara – a força do golpe faz sua cabeça se inclinar para trás. Ele não revida; permanece impassível.

— Minha nossa — sussurro.

Procuro alguém à minha volta, mas não há ninguém além de mim… apenas eles. Antes que eu possa sair correndo para ajudar, o homem entra em seu carro e arranca, cantando os pneus. Josh caminha até uma árvore do outro lado e desmorona no chão, segurando a cabeça entre as mãos.

Discuto comigo mesma sobre o que fazer.  Josh acabou de levar um soco. Fico olhando para ele durante vários minutos, e percebo que sua boca está sangrando. Meu coração dói e, antes que meu cérebro consiga registrar, meus pés estão indo automaticamente na direção dele.

Ele não me ouviu se aproximar. Me agacho diante dele, pego uma garrafa de água e tiro meu velho lenço que está envolto no pescoço. Ao ouvir meus movimentos, Josh levanta a cabeça. Sangue pinga de sua boca, e os dentes perfeitamente brancos estão manchados de vermelho.

— Josh… — sussurro. Ele não diz nada, só fica olhando para mim, entorpecido.

Tiro a tampa da garrafa de água, molho o lenço, e inclino-me para frente até ficar ajoelhada entre suas pernas jogadas. Hesitante, coloco o lenço em seus lábios e limpo o excesso de sangue, que vem de um corte no canto de seu lábio superior.

Aplico pressão e volto meu olhar para ele. Seus olhos azuis penetram nos meus, e vejo conflito e desolação virem à tona. Quando seus lábios param de sangrar, passo a água para ele.

— Enxágue sua boca, Josh. O gosto de sangue não é agradável.

Ele pega roboticamente a garrafa, fazendo o que eu peço. Sento-me ao lado dele sobre a terra, compartilhando o encosto improvisado na árvore. Não digo nada. Não quero arriscar que ele fique pior.

Só não quero que ele fique sozinho.

Depois de um tempo, ele relaxa a postura rígida e fica olhando para o nada. Eu não posso mais suportar a tristeza e, vendo que ele precisa ser consolado, pego em sua outra mão. Ele olha para nossas mãos e sutilmente aproxima mais os ombros.

Eu sei que mal nos conhecemos, mas nesse momento, só consigo pensar em apoiá-lo de todas as maneiras que ele possa precisar. Depois do que parece uma eternidade, Josh pergunta:

— Quanto você viu?

Deito a cabeça no ombro dele, notando uma hesitação leve em sua respiração.

— O final  — respondo. Ele apoia a cabeça no tronco da árvore, e fecha os olhos com força.

— Quem é ele? — pergunto.       

— Meu pai.

Levanto a cabeça, profundamente surpresa.    — Seu pai? — digo, chocada. Josh não olha para mim. Eu não sei dizer se é por constrangimento ou tristeza. Voltamos a ficar em silêncio.

— Você está bem? — pergunto.

Josh me encara, os olhos angustiados.

— Não.

— Quer falar sobre isso?

Ele faz que não com a cabeça.

— Ele te bate muito?

Dando de ombros, ele responde:

— Ele não... não fazia isso, antes de... Ele estava irritado com algo que eu não fiz como ele queria. Saí muito cedo hoje para — ele engole — e ele veio atrás e… bem, você viu o resto.

Viro-me de frente para ele.

— O que foi que aconteceu de tão ruim para ele te bater daquele jeito?

— Dinheiro, decepção, não ser um filho obediente. O de sempre. Mas ele nunca tinha ido tão longe antes. Nunca o vi tão irritado.

— Mas você é filho dele! Como ele ousa te tratar assim? O que você fez para merecer um soco?

Ele aperta os lábios. Josh não vai responder mais nada. Ele parece tão perdido, e o muro que ele construiu está rachando, expondo suas fraquezas.

Eu preciso mudar de assunto. Reparo na camiseta dele e levanto uma sobrancelha.

— Você joga beisebol?

Uma pequena centelha de alívio surge em seu rosto com a virada na conversa. Ele acena que sim.

— Ganhamos ontem. Mas eu fui um merda.

— Você não jogou bem? — pergunto. Josh passa a língua sobre o lábio, sentindo o corte recente, e pega um graveto, batendo com ele sobre o punho cerrado.

— O jogo foi um maldito pesadelo.

— Bem, você é humano — dou de ombros.      — Nunca comecei uma temporada tão mal antes. Parece que está dando tudo errado.

— Por que está indo tão mal?

— Porque eu não consigo finalizar nenhum passe. Estou decepcionando o time. Meus pais... desde que... — ele suspira, mas não continua. Depois diz: — Minha cabeça está confusa, não consigo dormir nem me concentrar, e uma certa gar... — Josh se interrompe de novo. — Eu fico acordado toda noite. Todas as malditas noites. — A voz dele fica quase inaudível.

Ficamos em silêncio por um tempo. Com uma batidinha em minha perna, Josh se levanta e me puxa pela mão para me levantar.

— Vamos.

— Para onde? — pergunto. Josh me olha como se eu tivesse três cabeças.

— Como para onde? Para a aula, ué.

Solto uma risada sem graça.

— Josh… tem certeza de que não quer ir para casa ou fazer outra coisa? Podemos conversar mais, se quiser. O que você precisar.

— Não. Nós vamos para a aula.

***

Todos na sala pareciam ansiosos esperando por essa matéria. Era como se esperassem o início de um concerto. Ou a estreia de um filme.

Quando a professora Parker entra na sala, a primeira coisa que reparo é que a mulher é mais baixa do que parecia ser nas fotos que vi nas orelhas de seus livros. Li todos os livros dela.

Pessoalmente, o seu cabelo não é um castanho brilhante, mas manchado de cinza e mais frisado do que nas fotos. É tão pequena que precisa de um esforço a mais para sentar em cima da mesa.

— Então — diz ela, olhando para o rosto de cada um. — Bem vindos à aula de Escrita de Ficção. Fico feliz por estarem aqui.

Ela fala com tanta suavidade que precisamos ficar imóveis para escutá-la:

— Temos muito a fazer neste semestre, então não vamos perder tempo. Estão prontos? — Quase todos assentem. — Vou começar com uma pergunta que não tem uma resposta: Por que escrevemos ficção?

— Para nos expressar — sugere um aluno.

— Claro — diz a professora. — É por isso que você escreve? — pergunta ela. O cara faz que sim.

— Certo… por que mais?

— Porque gostamos do som das nossas vozes — diz uma garota.

— Isso — a professora ri. — É por isso que eu escrevo, sem dúvida. Todos riem com ela.

— Por que mais?

            Por que eu escrevo? Tento pensar em uma resposta profunda, sabendo que não a direi em voz alta, se a encontrar.

            — Para explorar novos mundos — alguém diz.

            — Para explorar os antigos — outra pessoa acrescenta. A professora concorda.

            Para poder ser outra pessoa, penso.

            — Então… talvez para que as coisas façam sentido para nós? — sugere Parker.

            — Para nos libertarmos — diz uma menina.

            Para nos libertarmos de nós mesmos.

            — Para mostrar para as pessoas como é dentro das nossas mentes — diz outro.

            — Suponho que elas queiram saber — Parker acrescenta. Todos riem.

            — Para fazer as pessoas rirem.

            — Chamar a atenção.

            — Para parar de ouvir as vozes dentro da nossa cabeça — fala o garoto que está sentado na minha frente.

Para parar, penso. Parar de ser qualquer coisa em qualquer lugar.

            — Para deixar nossa marca — diz uma aluna, animada. — Criar algo que viva além de nós!

            Tento colocar em palavras como me sentia ao escrever, o que acontecia quando dava certo, quando saía alguma coisa, quando as palavras jorravam de dentro da minha mente antes mesmo de saber que existiam, borbulhando para fora, como rima, como pular corda, pular antes que a corda lhe atinja o tornozelo.

— Por que escrevemos ficção? — pergunta a professora novamente.

            Olho fixamente para minha carteira.

            Para desaparecer.

            — Para desaparecer — arregalo os olhos ao ouvir a voz sussurrando essa resposta.

Josh.

Parece que ele ouviu meus pensamentos.

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